Li um
bonito tributo a Vasco Polido Valente. E, sim, também li os Fidalgos da Casa
Mourisca, de Júlio Dinis, embora nunca tenha estudado Ciência Política. Em
contrapartida, cresci numa casa cheia de livros, e estes
sempre foram grandes companheiros de férias, demasiado longas no Verão, e eu
sem grande paciência para dias de praia. Pode ler-se na praia, eu sei, mas é
arte que não está ao meu alcance. Leio ou releio com a avidez dos loucos, impelida
por uma certa obsessão ritualista que me impede de ler de qualquer maneira ou
em qualquer lugar. Não leio na cama, não leio para descontrair –
pelo contrário, preciso de estar no pleno uso dos meus sentidos, alerta como um
vigilante – e sou incapaz de ler naqueles dez ou quinze minutos perdidos numa
pausa entre labores; eventualmente, uma ou outra notícia de jornal, mas só.
Caprichos. Como não beber vinho num copo sem pé, nem tomar café num copo de
plástico. Já o escrevi, exactamente assim, num outro canto. As férias grandes eram – são, ainda – o meu tempo e espaço de leitura de eleição.
Para que
conste, não nutria – nem antes, nem depois – especial simpatia pela pessoa de Vasco Pulido Valente. Não
sei se do ar demasiado desleixado com que o via nos últimos tempos, se do
eterno cigarro entre os dedos – uma mácula arrogante como ele de um vício que
sempre me causou uma despropositada repulsa –, se do mau feitio que cultivava com
propositado brio no trato e na prosa que vertia em colunas de opinião. Dizem
que fora delas, também. E era precisamente,
a prosa que me enlevava, suspensa de um delicioso enguiço bailado entre letras,
e verbos, e pontos, e vírgulas, e uma inteligência ácida, assertiva e
indecorosa que não poupava ninguém; nem o próprio. Não se faz. Não voltará a
fazer-se. Não com tamanha indecência e desfaçatez, e a primorosa e aprimorada arte
de nos manter atentos à forma, mesmo discordando, no limite, de tudo o resto.
Mas, a
morte foi apenas um pretexto. Tenho passado pouco por cá, e creio ser verdade o
que já ouvi dizer, mais de uma vez: parte da inspiração para escrever, vem da
rotina de fazê-lo assiduamente. A outra parte – a que realmente faz a diferença
– vem do génio, do género de gente como Vasco Pulido Valente, a quem as
palavras obedecem com resignada humildade, sem nunca perderem, porém, a
insolência, ou a elegância. Também dizem que não se trata só de jeito ou de um
dom soprado à nascença; antes, de esmerado labor, de disciplina intransigente e
uma busca insaciável pela perfeição. Seja. Continua ao alcance de
poucos, de mau ou bom feitio. Imperdoável.
Os
últimos dias trouxeram outras mortes, outros elogios fúnebres que dão sempre
boas linhas. Como se, de repente, os mortos suscitassem simpatias impossíveis
em vida, qualidades subitamente descobertas, inusitadas, antes, qual bela
adormecida na apatia da nossa existência rude e indígena, de matizes
ignorantes, trôpegas, anestesiada pela espuma dos dias mornos, peçonhentos. Tenho tido
muitos desses.
Sendo a morte inevitável, também, mas não por isso, se falou de eutanásia. Essa morte que tantos como eu entendem como boa, sem o sofrimento
desnecessário e vil que nos torna pouco mais que um corpo em fim dessa
extraordinária viagem que é a vida vivida plenamente.
Não é um
tema fácil, e merece que se discuta com a elevação própria, sem ruído de fundo,
popularucho, obsceno, até, como se o que houvesse fosse um punhado de gente à
espera de permissão para assassinar velhinhos fastidiosos, ou uma imposição aos
médicos para que realizem execuções sumárias, convenientes e sob receita. A pedido. Outra
coisa, bem diferente, é questionar a legitimidade de se aprovar em Assembleia
da República uma lei que, aparentemente, nenhum partido político inscreveu no
seu programa eleitoral.
Temos sempre uma certa tendência para alimentar
polémicas para lá do necessário. Dispensava-se. Mais ainda, quando o assunto é realmente
sério e envolve toda a sociedade.
E também
houve aquele outro episódio de racismo que, a princípio, todos fingiram não
ver. Não fosse Moussa Marega insurgir-se contra os insultos, batendo a porta
com estrondo, e seguiria a dança, embalada pelos costumeiros urros grotescos a
que uns jornaleiros – por imbecilidade ou ignorância – tendem a apelidar de cânticos,
como nos meninos de coro, de gente imprudente, apenas, toldada de exaltações futebolísticas
avassaladoras e, por isso, perdoáveis no calor desmedido da paixão. Isso sim, com
a bênção de alguns juízes que consideram admissível a injúria cuspida dentro de
campo, uma espécie de permissão paternalista e higiénica à barbárie, ao abrigo
de fervores (anti)desportistas. Finda a orgia, aprumam-se casacas e gorros, e
ruma-se a casa com a tranquilidade dos devotos, sem confissão nem penitência,
que, quem assim grunhe, não merece castigo. Além disso, parece que Marega não é
flor que se cheire, mas é preto que se enxovalhe, seguindo uma certa (des)ordem
natural de etiqueta e más maneiras que parece que engrandecem a festa do desporto-rei. Fica
o registo, para ir recordando.
A bem da
liberdade de expressão e das boas práticas democráticas, a TVI resolveu
convidar André Ventura a explicar-se sobre a hipocrisia dos portugueses
indignados com o episódio e solidários com Marega, e foi o que se viu. Para
quem viu. Ninguém vai calar o Ventura porque ele não deixa. Literalmente. Por
muito que Miguel Sousa Tavares o tent(ass)e.
Entretidos
entre umas e outras coisas, enaltecendo as nossas virtudes e denunciando
os defeitos dos outros, carpindo escrupulosamente mágoas contra os
pecados da globalização, e esquecemo-nos, outra vez, que há vicissitudes para
lá do nosso umbigo. Um vírus manhoso resolveu destruir a pálida rotina dos dias, sem
conta, nem peso, nem medida, tornando-se numa séria ameaça à saúde pública
global, às ambições da China como nova-mas-não-tanto potência económica no mundo e ao
fenómeno da tal globalização que tantos vêem como uma ameaça à soberania e
sobrevivência dos Estados. É possível que Deus exista e não jogue, de facto,
aos dados. Ou isso, ou os EUA descobriram a melhor forma de refrear as
aspirações de Xi Jinping, mais efeito colateral, menos efeito colateral. É
menos glamoroso do que mandar assassinar um general iraniano, mas, como teoria da
conspiração, dava um filme. Não sei se precisa de asterisco. O texto, não o filme.
Por
falar em filmes e nos EUA, Donald Trump continua a disparar em todas as
direcções. Se Bernie Sanders(?) não for capaz de correr com o homem em Novembro,
temo que aquela expressão assuma um sentido menos figurativo do que o
desejável. Não tarda nada, os piedosos pastores evangélicos convencem-se e convencem-nos de que, mais do que enviado por ele, Trump é o próprio, sentado à direita de si mesmo,
em eterna glória, julgando vivos e mortos, implacável, incansável e insaciável, esmagando todos quantos ousem
contrariá-lo. R.I.P., America.