Nunca vivi longe do
mar. Não sei se seria capaz de viver longe do mar. É uma intransigência (não é
bem) um pouco desentoada, porque o uso apenas como abrigo e repouso. Para o ver
e o ouvir nas histórias que conta. Como a daquele casal (do que parece ter-se
convencionado chamar “de idade”) sentado em frente àquela imensidão de azul,
cada um na sua cadeira portátil, de azul petróleo, a dela, de riscas coloridas
como um arco-íris, a dele, colocadas lado a lado entre as pedras das arribas
que o Sol inunda generosamente antes da hora do recolher. Conversam
serenamente, com o mar como uma tela de fundo, os dois de jeans e
pulôver de malha, encostados à altura do ombro, sem pressa, perdidos em si mesmos
e, imagino, no balanço das ondas que o mar agita, também num compasso próprio e
alheio a angústias. Não sei se já o faziam antes desta peste. A conversa
íntima, de frente para o mar, entre as pedras e as ervas rasteiras, no conforto
das cadeiras trazidas de casa. Nunca os vi antes, e passo naquela estrada
tantas vezes que já lhes perdi a conta. Passo, fico, pasmo e, por vezes, também
converso. Talvez o faça mais agora, sim. Talvez o façam eles mais agora, também.
Entre os que
passeiam ao longo da linha de mar, não há ninguém de rosto enfiado no écran do
telemóvel. Bem sei que, normalmente, quem procura encontrar-se com o mundo real
– eventualmente, procurando refúgio em passeios ao ar livre, enchendo de vida a
vida que se agarra com desejo – é menos tentado por distracções daquele género.
Mas, ainda assim, creio que sempre vi algum prevaricador fortuito. Não é,
agora, o caso. Há uma comunhão de vontades, um quadro perfeito, que dispensa
devaneios estéreis.
Na tranquilidade
aparente do tempo, aproveito para ajustar a leitura. Não costumo deixar um
livro antes de o terminar. Mesmo quando me desiludo às primeiras páginas, o que
nem era o caso daquele que tinha em mãos. Mas, estava desatenta e, a propósito
de listas de livros que revisito e actualizo com regularidade, (re)apareceu-me o Cosmos
de Carl Sagan. Já não sei bem quando o li pela primeira vez. Sei que foi há
muitos anos e, apesar de o considerar um dos mais belos livros que já li – de
Ciência, mas não só – apercebi-me de que nunca tinha lá voltado. Para ler outra
vez, de uma ponta à outra, sem batota, como se fosse a primeira vez. Na
verdade, não é difícil. Não é nada difícil. E sorrio sempre quando recordo a curiosidade teimosa de Eratóstenes. Aquela curiosidade astuta, de desconfiança sadia, não a
dúvida torpe dos livres pantomineiros, enlameados no embuste novo-chique
do finjo que penso, logo, se assim não penso, nada disso existe.