quinta-feira, 29 de abril de 2021

O acto de ficar sem máscara durante o tempo que dura um café seduz-me, afinal, bastante menos do que julgaria possível. E refiro-me apenas ao café porque não me atrevo, ainda, a outros vícios em público amontoado. A permanência em espaços povoados, repousadamente, onde a possibilidade de ficarmos de cara despida por períodos alargados de tempo, à mercê do bicharoco que por aí circula, desse pelo menos, metamorfoseando-se a seu bel-prazer aquém e além-mar, aflige-me. Esgoto o pouco que me sobra de resignação no tempo do supermercado. Sei que o posso fazer online, o supermercado, mas não quero. E no supermercado circula-se de cara tapada, em princípio; se for bem cedo, tolera-se com a devida resiliência.

Nesta espécie de atordoamento – parte dele auto-infligido, já não sei bem se com hífen se sem ele –, deixei escapar duas peças de teatro a que queria muito assistir. “Ricardo III”, com o Diogo Infante, e “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, de Tiago Rodrigues. De momento. E pensei que correria de volta às salas de cinema agora que a pandemia me livrou de todo o mal que me assalta quando ouço o estraçalhar sinistro das pipocas que brota quase em fúria dos assentos vizinhos. Como quem roga pragas. Pois não voltei ainda. Ao cinema. Confio pouco no meu semelhante. Aliás, vejo-me pouco semelhante. Aquele que é capaz de pendurar as patorras sobre o pescoço da cadeira da frente, metralhar os joelhos contra as costas da nossa cadeira até nos consumir a (pouca; a minha é muito pouca) paciência – uns e outros e mais – alheio às mais básicas regras de civilidade, dificilmente será capaz de manter a mordaça composta, obedientemente, no escurinho do cinema. Mesmo sem pipocas ou dropes de anis. Desisto. E as pipocas deviam ser vendidas com um alerta de catástrofe, dramático, com bolinha vermelha, e um aviso do género: não aconselhável a ingestão em público a maiores de, sei lá, 10 anos. E já estou a abusar.

De resto, não me tem apetecido muito escrever. Parece-me tudo demasiado vazio. Na melhor das hipóteses. Nas outras, o tal meu semelhante tem-se revelado um exterminador de boas-vontades implacável. Estou naquela fase de cansaço extremo, em que me custa até lembrar-me de mim. Ausento-me. Perco-me. Existo pouco para lá do trabalho. Poder trabalhar é um luxo. Poder fazê-lo em tempos de pandemia é um privilégio que chega a doer. Se não gostasse tanto do que faço, não sobreviveria. 

A propósito de privilégios, Augustin Hadelich é capaz de ser das coisas mais bonitas que me mostraram nos últimos tempos (agradeço-te outra vez?).




E o Google Photos, meu aliado perverso, devolveu-me mais algumas fotografias. Dos meus céus de natas e algodão-doce. E uma gaivota vaidosa. E pedaços de gente do mar.