Talvez o caso – por dizê-lo assim, desajeitadamente – George Floyd não mereça a exacerbada atenção mediática que se lhe tem prestado. Não pela vida arrancada de forma tão repelentemente leviana – uma vida é uma vida –, mas por todas as outras vidas esgotadas: umas que sucumbem sob a nossa ignorância, sem repulsa, outras de que apenas temos conhecimento de passagem, no tempo entre notícias de diferentes humores e que relevamos com distanciado desprezo. Como a morte de Ihor Homeniuk ou a morte da pequena Valentina. E falo apenas das desse género. Das impessoais. Outra expressão desastrada.
A comoção intensa, generalizada, não resulta apenas de uma onda, ou de uma moda ao melhor estilo USA – e, a mim, indispõem-me todos aqueles escândalos Oprah-like, tão enjoativamente americanos, os desgostos espiolhados em directo, as correntes e grupos de auto-ajuda e inter-ajuda, enfim, tudo o que mesmo remotamente se assemelhe a qualquer tipo de contrição, redenção e remissão em horário nobre e em modo streaming; mas isto sou eu, que nem gosto do António Zambujo, nem vejo o programa do Bruno Nogueira.
A comoção, dizia, resulta também (talvez mais) da
violência atroz das imagens. Do tempo e do modo. Da pose, da soberba, da frieza.
Do fim, por fim. É o modus operandi das execuções e decapitações do Daesh, sem o aborrecimento
do sangue. Muito branco e muito limpo. Não é bem, mas é o que me ocorre.
Fico, por isso, feliz (isto
hoje está caótico, eu sei; mas não festejo) pela condenação de Derek Chauvin, como fico feliz pela
condenação do pai e da madrasta da pequena Valentina. Lamento. Não pertenço ao
grupo dos que oferecem facilmente a outra face. Procuro mais justiça do que vingança, e não
sou de guardar rancores. Quando perdoo, perdoo e esqueço, embora haja coisas
que não perdoo, mesmo que, eventualmente, venha a esquecê-las. Mas não sou
capaz de jurar que não procuraria nunca uma vingança. Dependeria do crime. Por isso, em princípio, aprecio as
regras do regime democrático. Se não por outra coisa, por funcionarem como uma baliza aos
nossos piores instintos. Às vezes. Aos meus, pelo menos, já que não sou – nem pretendo
– livre de pecado.
E tudo isto a propósito de justiça. Em particular, a propósito da nossa. Dos estilhaços, ainda, à volta da Operação Marquês e, também, das almas abnegadas que defendem a inocência de José Sócrates rasgando as vestes num arrebatamento salomónico, como se o homem tivesse sido arrastado pela lama por capricho, sem qualquer outro motivo que não a mais vil calúnia. Não me refiro aos que se resignam ao estatuto de inocente decorrente da aplicação da Lei. Aos que se escudam – e bem! – na garantia da Ordem e do Direito: se não foi possível provar qualquer acto ilícito – o que não é, ainda, o caso, note-se –, absolva-se o animal, por mais feroz. Ponto. Não. Desse exercício, eu também sou capaz. Sei que não parece, mas tenho um lado perfeitamente racional. Não. Refiro-me aos fofinhos que acreditam mesmo (a sério, acreditam mesmo?) no piedoso amigo Santos Silva, na herança da mãe, no tio do almanaque e nas contas em papel pardo. Ou parvo. E no primo; não esquecer o primo.
Chego a ter inveja dessa gente digníssima, de alma pura e incorrupta.
Não há justiça que sobreviva ao tempo que leva a fazer a nossa. A não fazer a nossa. Não é possível. E não é só uma questão de tempo; são todos os expedientes utilizados para ajuizar uma coisa e seu contrário, com base nas mesmíssimas linhas, muito para além da inevitável subjectividade de quem julga. E, apesar da repulsa que me causa a campanha montada contra o juiz Ivo Rosa – independentemente da competência ou incompetência que possa estar subjacente à sua decisão no caso do ex-primeiro-ministro e seus derivados – não há presunção de inocência que resista ao eterno arrastar de processos e prazos que, na prática, torna impossível qualquer acto de justiça. A não ser, obviamente, nos casos em que não se possa pagar os honorários adequados.
E veremos se é desta que criminalizamos o enriquecimento ilícito. Sem embustes. E veremos se isso serve para alguma coisa. Afinal, teremos sempre o Isaltino.