sábado, 5 de janeiro de 2019

Um País à Mercê de "Entertainers" e De Futebol

Ontem, comentadores, cronistas e telejornais comentaram, escreveram e noticiaram a presença de um criminoso, racista, adepto de Salazar – de Hitler, também – num programa da TVI. Entre indignações, labaredas, incêndios e guerras de audiências, houve esmolas para todos os santos. Ainda assim, houve tempo para repartir – pelo menos, na televisão – com outro acontecimento da maior importância para o país: a saída de Rui Vitória do Benfica, uma espécie de já morreu, mas ainda não sabe. Pois lá soube, finalmente, e, desde anteontem, tal como há um mês, altura em que falecera, foram horas e horas e horas de análise e opinião requentadas e servidas, em horário nobre, semi-nobre e assim-assim.

    Deixo o futebol para quem dele gosta e dele percebe. Neste momento, preocupa-me um pouco mais a guerra de audiências, o jornalismo e essa entidade abstracta a que chamamos liberdade de expressão, e a coberto da qual é possível transformar convictos promotores do ódio em fazedores de opiniões polémicas.

    Dizem as más línguas que o motivo por que Manuel Luís Goucha convidou (ele diz que não foi ele, o que, para o caso, é de somenos) para o seu programa um adepto da caça ao preto e, já agora, aos gays – é bom chamarmos os bois pelos nomes, pois, pese embora as inquietações da PETA e do PAN, Goucha já deixou claro que o politicamente correcto é perigoso – dizem as más línguas, dizia eu, que o motivo é a aquela rica menina da Malveira, que se mudou para a SIC, desferindo um rude golpe nas audiências da TVI. Como em tempo de guerra, mesmo de audiências, não se limpam armas, cada um usa os truques mais rentáveis e eficazes para abater o inimigo. Dizem que foi qualquer coisa assim.

    O ilustre convidado do senhor Goucha cumpriu pena de prisão efectiva, entre outros crimes, por envolvimento na morte de Alcindo Monteiro, um cabo-verdiano de 27 anos. Alcindo Monteiro, é bom lembrar, foi morto por ser preto e porque Machado e os seus comparsas não gostam de pretos. Alcindo foi pontapeado na cabeça, estômago, peito e testículos, com botas de biqueira de aço. Tufos do seu cabelo ficaram presos na sola de uma das botas. Os valentes, brancos e hetero skins só pararam quando lhes apeteceu, saciados. Talvez o Goucha não se tenha lembrado que, aquele bando, liderado pelo não seu convidado, também não gosta de gays. Mas, é importante não branquear conversas, e o politicamente correcto é muito perigoso. Não posso estar mais de acordo. Como estamos todos em sintonia, a TVI emitiu um educado, delicado e democrático comunicado onde, entre outras coisas, fala “das opiniões e visão histórica de Mário Machado” e assegura que “o debate entre diferentes correntes de opinião, por mais criticáveis que as mesmas sejam, faz parte de uma sociedade democrática, plural e tolerante, comprometida com o respeito pelas liberdades individuais”, aproveitando “a oportunidade para reafirmar simultaneamente a importância da liberdade de expressão para o projeto editorial da TVI e o compromisso editorial desta com o respeito pela dignidade da pessoa humana e com a condenação do racismo e da xenofobia”. Muito bem dito. E, no entanto, é por aqui que me perco um pouco. Não percebo bem como é que dar palco a um criminoso, racista, cruz suástica ao peito (ou tatuada no braço), perseguindo negros, matando por ódio, se enquadra na liberdade de expressão e na pluralidade democrática e tolerante.

    Há quem defenda que Donald Trump e Jair Bolsonaro chegaram sem que déssemos por eles, precisamente, porque os subestimámos. Ignorámos o perigo que podiam representar, para a democracia, desprezámo-los como se isso bastasse para que caíssem por si, pelo seu ridículo absurdo. Não foi assim, pelo contrário. Talvez por isso andemos tão perdidos.

    É possível que, como escreve João Miguel Tavares, “aquilo que um dia pode empurrar Portugal para os braços de populistas da extrema-direita ou da extrema-esquerda” seja “os deputados que dizem que estão no Parlamento e não estão”; “as líderes de juventudes partidárias eleitas apesar das fraudes nos currículos; “as PGR competentes afastadas por serem incómodas para o poder político”; “os políticos condenados que demoram anos a ir para a prisão”; “os políticos corruptos protegidos pelos partidos”; “as leis que faltam para combater a corrupção”. Mas, para combater extremismos precisávamos de um jornalismo mais sério e de uma informação que fosse além dos sensacionalismos de ocasião e dos resultados da bola. E que se esteja nas tintas para as audiências.