Ontem, comentadores, cronistas e telejornais comentaram, escreveram e noticiaram a presença de um criminoso, racista, adepto de Salazar – de Hitler, também – num programa da TVI. Entre indignações, labaredas, incêndios e guerras de audiências, houve esmolas para todos os santos. Ainda assim, houve tempo para repartir – pelo menos, na televisão – com outro acontecimento da maior importância para o país: a saída de Rui Vitória do Benfica, uma espécie de já morreu, mas ainda não sabe. Pois lá soube, finalmente, e, desde anteontem, tal como há um mês, altura em que falecera, foram horas e horas e horas de análise e opinião requentadas e servidas, em horário nobre, semi-nobre e assim-assim.
Deixo o futebol para quem dele gosta e dele
percebe. Neste momento, preocupa-me um pouco mais a guerra de audiências, o
jornalismo e essa entidade abstracta a que chamamos liberdade de expressão, e a
coberto da qual é possível transformar convictos promotores do ódio em
fazedores de opiniões polémicas.
Dizem as más línguas que o motivo por que
Manuel Luís Goucha convidou (ele diz que não foi ele, o que, para o caso, é de
somenos) para o seu programa um adepto da caça ao preto e, já agora,
aos gays – é bom chamarmos os bois pelos nomes, pois, pese embora as
inquietações da PETA e do PAN, Goucha já deixou claro que o politicamente
correcto é perigoso – dizem as más línguas, dizia eu, que o motivo é a aquela
rica menina da Malveira, que se mudou para a SIC, desferindo um rude golpe nas
audiências da TVI. Como em tempo de guerra, mesmo de audiências, não se limpam
armas, cada um usa os truques mais rentáveis e eficazes para abater o inimigo.
Dizem que foi qualquer coisa assim.
O ilustre convidado do senhor Goucha
cumpriu pena de prisão efectiva, entre outros crimes, por envolvimento na morte
de Alcindo Monteiro, um cabo-verdiano de 27 anos. Alcindo Monteiro, é bom
lembrar, foi morto por ser preto e porque Machado e os seus comparsas não
gostam de pretos. Alcindo foi pontapeado na cabeça, estômago, peito e
testículos, com botas de biqueira de aço. Tufos do seu cabelo ficaram presos na
sola de uma das botas. Os valentes, brancos e hetero skins só pararam quando
lhes apeteceu, saciados. Talvez o Goucha não se tenha lembrado que, aquele
bando, liderado pelo não seu convidado, também não gosta de gays. Mas, é
importante não branquear conversas, e o politicamente correcto é
muito perigoso. Não posso estar mais de acordo. Como estamos todos em sintonia,
a TVI emitiu um educado, delicado e democrático comunicado onde, entre outras
coisas, fala “das opiniões e visão histórica de Mário Machado” e assegura que
“o debate entre diferentes correntes de opinião, por mais criticáveis que as mesmas
sejam, faz parte de uma sociedade democrática, plural e tolerante, comprometida
com o respeito pelas liberdades individuais”, aproveitando “a oportunidade para
reafirmar simultaneamente a importância da liberdade de expressão para o
projeto editorial da TVI e o compromisso editorial desta com o respeito pela
dignidade da pessoa humana e com a condenação do racismo e da xenofobia”. Muito
bem dito. E, no entanto, é por aqui que me perco um pouco. Não percebo bem como
é que dar palco a um criminoso, racista, cruz suástica ao peito (ou tatuada no
braço), perseguindo negros, matando por ódio, se enquadra na liberdade de
expressão e na pluralidade democrática e tolerante.
Há quem defenda que Donald Trump e Jair
Bolsonaro chegaram sem que déssemos por eles, precisamente, porque os
subestimámos. Ignorámos o perigo que podiam representar, para a democracia,
desprezámo-los como se isso bastasse para que caíssem por si, pelo seu ridículo
absurdo. Não foi assim, pelo contrário. Talvez por isso andemos tão perdidos.
É possível que, como escreve João Miguel
Tavares, “aquilo que um dia pode empurrar Portugal
para os braços de populistas da extrema-direita ou da extrema-esquerda” seja
“os deputados que dizem que estão no Parlamento e não estão”; “as líderes de
juventudes partidárias eleitas apesar das fraudes nos currículos; “as PGR
competentes afastadas por serem incómodas para o poder político”; “os políticos
condenados que demoram anos a ir para a prisão”; “os políticos corruptos
protegidos pelos partidos”; “as leis que faltam para combater a corrupção”. Mas, para combater extremismos precisávamos de um
jornalismo mais sério e de uma informação que fosse além dos sensacionalismos
de ocasião e dos resultados da bola. E que se esteja nas tintas
para as audiências.