O livro – quase não chega a ser um livro
– mais recente de Bernard-Henry Lévy não se lê em duas horas, mas quase. Mesmo
pesando as palavras e as denúncias, bebendo (in)tranquilamente da sua fúria
enganadoramente suavizada numa escrita fluida, mas densa em vários aspectos, “Este
Vírus Que Nos Enlouquece” não esgota uma tarde. Pelo menos, no que toca ao
tempo que corre no relógio da sala. Li-o no passado Sábado, já depois de ter lido a
entrevista que o filósofo e escritor deu ao Expresso.
Não gosto do título do livro. Eu teria
escolhido a sua penúltima frase, esta é a razão da minha fúria (nesse caso, Lévy ver-se-ia obrigado a procurar uma outra frase para o quase
desfecho), mas gostei muito de o ler.
Nas suas próprias palavras, o que mais o impressionou não foi a pandemia, este tipo de desastre, afinal, sempre existiu. Impressiona-o, sim, a forma como estamos a reagir desta vez. Estranha-a; pela dimensão do medo que caiu sobre nós e nos domou. Pela rapidez com que se esvaziaram grandes cidades, pela facilidade com que passámos das demonstrações sinceras de civilidade e entreajuda, ao nojo ao outro, ao desconhecido, ao terror dos abraços, dos apertos de mão, à suspensão ordenada e prontamente obedecida dos afectos.
O isolamento, o confinamento, o uso de
máscara, o distanciamento físico, praticamente todas as medidas em que assenta o nosso medo e o nosso nojo foram praticadas no passado, nos mesmos desastres
que Lévy evoca nas primeiras páginas do seu pequeno livro, que é também um
manifesto da sua fúria. Da gripe espanhola à gripe asiática. O que
mudou, então, sendo evidente que o pandemónio profiláctico desta pandemia se
assemelha mais ao da primeira do que ao da segunda, para além de que a primeira
ocorreu há mais de 100 anos e nem sequer era espanhola-espanhola? Esta é
a grande questão, que muitos atribuem a conspirações maquiavélicas mais ou
menos sofisticadas, outros, a uma preocupação genuína no início que degenerou
numa sede governamental diabólica, mundialmente generalizada, de impor regimes
ditatoriais até onde eles não existiam, pela calada da noite que reina sobre as
nossas desesperanças, e, os restantes, a um espírito irritantemente domável,
capaz de paralisar qualquer assomo de intentada mas pouco rebeldia.
Estive a reler algumas das notícias de
Março, por altura da decisão de encerrar as escolas. Portugal contava com 78
casos de covid-19 e a doença ainda não tinha provocado mortos entre nós. Pela
mesma altura, Itália somava mortos a um ritmo desolador; a cada dia de maior
número de mortos, seguia-se outro e outro e era impossível ficar indiferente ao caos. Os
78 casos, sem mortes, em Portugal faziam daquela precaução uma quase histeria, mas o
objectivo era, precisamente, evitar um cenário idêntico aos de Itália e,
depois, Espanha. Claro que somos mais sensíveis às mortes dentro de portas, só
somos (quase) perfeitos geneticamente; genericamente somos normais e a
normalidade não produz heróis em série. As mortes que resultam da miséria
humana que Lévy vai desfiando no seu pequeno livro (alguma testemunhada em
primeira mão), os massacres na Nigéria, a guerra do Iémen, a da Síria, as condições
miseráveis em que se empilham as vidas das migrações em massa, as manobras de
bastidores de Erdogan, Putin, Orbán, a imposição à bruta e às claras do regime
de Pequim em Hong Kong sem que isso levante uma onda suave que seja de
indignação ou, pelo menos, de solidariedade, choca-nos indecentemente menos do que
a possibilidade mais próxima de nos morrer amanhã e sem aviso, alguém que
amamos e nós sem tempo para a despedida e o luto. Como se a morte não fizesse parte
da equação desde o primeiro momento da vida de cada um. Mas não costumamos
lembrar-nos dela em uníssono, em notas de rodapé corridas ad nauseam nos
blocos de notícias. Lévy lembra que até o Daesh declarou a Europa uma zona de risco
para os seus combatentes.
Porquê, então, este terror generalizado que
se espalhou pelo mundo, escancarando as portas a esta urgência, às vezes
insana, às vezes infame, de nos mantermos a salvo, seja lá o que isso for? Se
foi preciso – e eu acho que foi, embora tenha resistido ao máximo, no início –
encerrarmo-nos em casa (os que temos casa!) para tentar conter um vírus
desconhecido, altamente contagioso, cuja taxa de mortalidade entre os tais
grupos de risco ameaçava fazer colapsar o SNS, em que ponto é que passámos a
querer viver empalhados, numa bolha permanentemente esterilizada? Tem que haver
um meio termo entre a ignomínia dos bolsonaristas e suas majorettes e a aspiração
absurda, patética, de viver a risco zero.
Claro que, há 100 anos, o mundo não
estava ligado 24 horas por dia, 7 vezes por semana, 365 dias por ano, 366 a
cada quatro, e o que acontecia em Las Vegas ainda ficava em Las Vegas por muito
tempo, não corria à velocidade da melhor oferta das operadores de
telecomunicações. Tal como a mentira – e as fake news – as pandemias
sempre existiram. Tal como na mentira – e nas fake news – o maravilhoso
mundo das tecnologias e da internet encarregam-se de multiplicar os seus
efeitos. E é por isso que tenho sempre muita dificuldade em aceitar os
argumentos de que o problema são só as pessoas. A educação, a tal arma mais
eficaz para combater atrasos, fanatismos e políticos sabujos, a que foi ferida
de outra morte nesta loucura, não demora um clique a produzir os seus efeitos.