quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A razão da sua fúria




O livro – quase não chega a ser um livro – mais recente de Bernard-Henry Lévy não se lê em duas horas, mas quase. Mesmo pesando as palavras e as denúncias, bebendo (in)tranquilamente da sua fúria enganadoramente suavizada numa escrita fluida, mas densa em vários aspectos, “Este Vírus Que Nos Enlouquece” não esgota uma tarde. Pelo menos, no que toca ao tempo que corre no relógio da sala. Li-o no passado Sábado, já depois de ter lido a entrevista que o filósofo e escritor deu ao Expresso.

Não gosto do título do livro. Eu teria escolhido a sua penúltima frase, esta é a razão da minha fúria (nesse caso, Lévy ver-se-ia obrigado a procurar uma outra frase para o quase desfecho), mas gostei muito de o ler.

Nas suas próprias palavras, o que mais o impressionou não foi a pandemia, este tipo de desastre, afinal, sempre existiu. Impressiona-o, sim, a forma como estamos a reagir desta vez. Estranha-a; pela dimensão do medo que caiu sobre nós e nos domou. Pela rapidez com que se esvaziaram grandes cidades, pela facilidade com que passámos das demonstrações sinceras de civilidade e entreajuda, ao nojo ao outro, ao desconhecido, ao terror dos abraços, dos apertos de mão, à suspensão ordenada e prontamente obedecida dos afectos.

O isolamento, o confinamento, o uso de máscara, o distanciamento físico, praticamente todas as medidas em que assenta o nosso medo e o nosso nojo foram praticadas no passado, nos mesmos desastres que Lévy evoca nas primeiras páginas do seu pequeno livro, que é também um manifesto da sua fúria. Da gripe espanhola à gripe asiática. O que mudou, então, sendo evidente que o pandemónio profiláctico desta pandemia se assemelha mais ao da primeira do que ao da segunda, para além de que a primeira ocorreu há mais de 100 anos e nem sequer era espanhola-espanhola? Esta é a grande questão, que muitos atribuem a conspirações maquiavélicas mais ou menos sofisticadas, outros, a uma preocupação genuína no início que degenerou numa sede governamental diabólica, mundialmente generalizada, de impor regimes ditatoriais até onde eles não existiam, pela calada da noite que reina sobre as nossas desesperanças, e, os restantes, a um espírito irritantemente domável, capaz de paralisar qualquer assomo de intentada mas pouco rebeldia.

Estive a reler algumas das notícias de Março, por altura da decisão de encerrar as escolas. Portugal contava com 78 casos de covid-19 e a doença ainda não tinha provocado mortos entre nós. Pela mesma altura, Itália somava mortos a um ritmo desolador; a cada dia de maior número de mortos, seguia-se outro e outro e era impossível ficar indiferente ao caos. Os 78 casos, sem mortes, em Portugal faziam daquela precaução uma quase histeria, mas o objectivo era, precisamente, evitar um cenário idêntico aos de Itália e, depois, Espanha. Claro que somos mais sensíveis às mortes dentro de portas, só somos (quase) perfeitos geneticamente; genericamente somos normais e a normalidade não produz heróis em série. As mortes que resultam da miséria humana que Lévy vai desfiando no seu pequeno livro (alguma testemunhada em primeira mão), os massacres na Nigéria, a guerra do Iémen, a da Síria, as condições miseráveis em que se empilham as vidas das migrações em massa, as manobras de bastidores de Erdogan, Putin, Orbán, a imposição à bruta e às claras do regime de Pequim em Hong Kong sem que isso levante uma onda suave que seja de indignação ou, pelo menos, de solidariedade, choca-nos indecentemente menos do que a possibilidade mais próxima de nos morrer amanhã e sem aviso, alguém que amamos e nós sem tempo para a despedida e o luto. Como se a morte não fizesse parte da equação desde o primeiro momento da vida de cada um. Mas não costumamos lembrar-nos dela em uníssono, em notas de rodapé corridas ad nauseam nos blocos de notícias. Lévy lembra que até o Daesh declarou a Europa uma zona de risco para os seus combatentes.

Porquê, então, este terror generalizado que se espalhou pelo mundo, escancarando as portas a esta urgência, às vezes insana, às vezes infame, de nos mantermos a salvo, seja lá o que isso for? Se foi preciso – e eu acho que foi, embora tenha resistido ao máximo, no início – encerrarmo-nos em casa (os que temos casa!) para tentar conter um vírus desconhecido, altamente contagioso, cuja taxa de mortalidade entre os tais grupos de risco ameaçava fazer colapsar o SNS, em que ponto é que passámos a querer viver empalhados, numa bolha permanentemente esterilizada? Tem que haver um meio termo entre a ignomínia dos bolsonaristas e suas majorettes e a aspiração absurda, patética, de viver a risco zero.

Claro que, há 100 anos, o mundo não estava ligado 24 horas por dia, 7 vezes por semana, 365 dias por ano, 366 a cada quatro, e o que acontecia em Las Vegas ainda ficava em Las Vegas por muito tempo, não corria à velocidade da melhor oferta das operadores de telecomunicações. Tal como a mentira – e as fake news – as pandemias sempre existiram. Tal como na mentira – e nas fake news – o maravilhoso mundo das tecnologias e da internet encarregam-se de multiplicar os seus efeitos. E é por isso que tenho sempre muita dificuldade em aceitar os argumentos de que o problema são só as pessoas. A educação, a tal arma mais eficaz para combater atrasos, fanatismos e políticos sabujos, a que foi ferida de outra morte nesta loucura, não demora um clique a produzir os seus efeitos.