Celebraram-se os 110 anos da implantação da República Portuguesa. Como habitualmente, teceram-se elogios e teceram-se
críticas e a data foi assinalada com a pomposa anormalidade, já que este ano nada
é normal. Nem a pompa, nem a circunstância. Nem o tempo. Não sei se serei a
única a quem estes últimos meses parecem décadas, um atropelo de acontecimentos
e estados de alma que há que gerir com pinças, além das máscaras, antes que o equilíbrio
que vamos tentando nos esborrache como mosquitos. Adiante.
Os monárquicos que criticam os que
criticam a monarquia apontam o dedo aos mesmos vícios que os republicanos (não
os da variante trumpesina, que esses são uma mutação genética que ainda carece
de explicação científica, social e etc) vêem na manutenção de um regime
de Suas Altezas Reais: servem ambos burguesias instaladas, com a única diferença
de que, pelo menos, a Realeza tem uma coisa que se chama berço, ou lá o que é. Ou,
como me dizia há uns anos um amigo espanhol, sim, nós temos que suportar,
com os nossos impostos, uma família real inteira, incluindo descendentes e
animais de estimação, mas, vocês, portugueses, suportam coisa idêntica, nas regalias vitalícias
de todos os Presidentes da vossa República, e talvez o saldo não seja muito melhor.
Mais ou menos isto. É possível, sim; mas, pelo menos, somos nós, como povo, que os elegemos e os demitimos, os presidentes, pelo nossa vontade
e direito de voto. Se não o fazemos bem, isso já é outra coisa, e é uma coisa que urge mudar para (muito) melhor, é outro facto.
Entre as arrelias do momento, a direita acusa a esquerda – e o PS em particular – de usar o Estado para servir os seus interesses pessoais e políticos. Infelizmente, os jobs criados para os boys, a família e os amigos que enchem o círculo político não são práticas exclusivas da esquerda ou do PS, antes de uma forma medíocre e generalizada de estar na política portuguesa: alterna-se o poder, alteram-se os jobs e alternam-se os boys, mas o fedor permanece. Isso nota-se mais nos governos de esquerda do que nos governos de direita? Dizem que sim, e é provável. Mas não fiz as contas. Não me apeteceu, ainda; ando há muito de costas voltadas ao poder político e, apesar de saber o perigo – a injustiça, até…eventualmente... – em que se incorre ao afirmar que eles são todos iguais, na verdade, se fossem substancialmente diferentes, não haveria Marquês, não haveria BES, não haveria Lux, nem outras operações de regeneração dos poderes da política, da democracia e da justiça, fingindo que não se tinha, até aí, dado por nada, nem à direita nem à esquerda. É verdade, o caso de Sócrates é o mais obsceno (é?; entre o Marquês e o Lux, venho o diabo do senhor Salgado e escolha). Por quase tudo e por mais alguma coisa, como essa que nos obriga à presunção de admitir que é possível o primeiro-ministro de um país ter um amigo como Santos Silva, muito rico e muito abnegado, e uma mãe como a dona Adelaide, herdeira de fortunas e prédios e andares, dona de cofres generosos no acto de (en)cobrir as despesas de um filho esbanjador, que não tem nada de seu porque não precisa, que o homem nem é de luxos. Ámen, bando de crentes, que a justiça ainda não disse de sua justiça.
Mas, estava na diferença entre monarquia
e república, entre a direita e a esquerda, não necessariamente por esta ordem,
nem respectivamente, afinal, já li que o ideal monárquico tem colhido adeptos dos mais estranhos quadrantes (a sério?), e há monárquicos convictos (ou assim-assim) em "cargos políticos de topo" na nossa república. Ninguém pode servir a dois senhores, mas, figurativamente por figurativamente, talvez se possa servir a duas senhoras. E eu gosto da Cecília Meireles. Mais do que gosto de Paulo Portas.
A nossa miserável sorte é que, da esquerda à direita, a melhor nata da política nacional, passando, ainda, pela banca e pela fina flor da advocacia, parece ter sempre uma mancha de carácter. E, também por cá, caminhamos para um extremar de posições que inquinam qualquer tentativa de discussão séria. Quando o que mais precisávamos – na hora de apontar a tal bazuca – era de um governo rigorosamente alinhado com o interesse público e de uma oposição atenta e competente no seu dever de intervenção política e de escrutínio disso a que chamam de acção governativa, entretemo-nos em lutas na lama.
E isto tudo a propósito da notícia da não recondução no cargo do presidente do Tribunal de Contas, no seguimento do parecer daquele órgão sobre as alterações à lei contratação pública. Não é assim que é dito, mas é o que parece. Tendo em conta o que já fomos capazes de esbanjar, para não usar piores termos, e os maus exemplos que vão enchendo páginas de notícias sem que nada de substancial mude, as preocupações de quem vê nisto uma ameaça de "assalto aos fundos europeus" podem não estar alienadas da realidade. Infelizmente. Entre tralhas que guardo, algumas são revistas que, por este ou aquele motivo, insisto em manter nas gavetas. Ou é a cor, ou o cheiro, ou o crepitar das folhas, ou uma memória que me interrompeu. Ou a indignação que sobra quando se vê do que alguns são capazes, sobre os escombros da vida dos outros. Sim, num país em que houve gente a usar a solidariedade e a generosidade que embalaram, em lágrimas, a tragédia de Pedrogão, para recuperar barracos há anos em ruínas, falsificando moradas com o maior despudor, todos os cuidados são poucos, no que toca à gestão do dinheiro que há sempre quem julgue que cai do céu. Cairá para alguns, de facto.
E, já que estou nisto, António Barreto falava, ontem, no PÚBLICO, sobre "corrupção e legitimidade democrática", e, aí, ia dizendo que "os portugueses são complacentes com a corrupção, mesmo quando não a praticam". Estou de acordo. Noutras coisas, já concordo menos, nomeadamente, que seja "perfeitamente possível que uma determinada ditadura tenha menos corrupção do que uma democracia", a não ser no âmbito de um exercício teórico, que foi o que ali se fez. E da lista de coisas que fazem com que o nosso país seja particularmente corrupto, elejo a ineficácia da justiça. A estrondosa ineficácia da justiça, que permite a sensação de prazenteira impunidade aos maiores prevaricadores.
De resto, foi um dia novo normal, como os últimos. Excepto que já me vesti de Outono. Disse que gosto das mudanças de estação e que até já me reconciliei com o Verão, mas podia viver um ano inteiro de outonos, em serenos sobressaltos, como no poema de António Gedeão, de quem me lembrei, não sei se por ser também dia dos professores, ou pelas aves que gritam, à minha janela, sobre uma tela perfeita de nuvens cinzentas. Como aquela pedra, ali.
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.