segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Entre conversas comigo mesma

Enquanto nos entretemos entre provocações obtusas que não servem para nada a não ser para aborrecer, ou entreter alguns, o mundo vai definhando à nossa volta. Quando, finalmente, levantarmos os olhos dos insta-não-sei-quê em que inventamos a vida que gostaríamos de ter, bajulamos os que têm (ou talvez não) a vida glamorosa que nos servem em bandejas de luxo e de lixo – seja nas fotos falsificadas a troco de uns dinheiros atirados aos falsificadores de serviço, seja vendendo os filhos a retalho desde o momento da concepção (lembras-te daquele colégio em que gostaste tanto de andar, ouvi uma influencer-barra-mãe-barra-viceversa-barra-tantofaz dizer, um dia qualquer, num telejornal) – quando emergirmos do nós podemos ser maus, mas vocês são bem piores, quando, finalmente, quisermos deixar de rosnar uns contra os outros e quisermos fazermos um esforço para colar o que sobra, não terá sobrado nada. Não deixámos que sobrasse. A liberdade devorou-nos sem darmos por isso, porque decidimos que a liberdade está ao nível da ignomínia. Pusemos a ciência ao nível da vigarice, exigindo provas suadas e herméticas à primeira e boa lábia redesocialgénica à segunda; consentimos na presunção de comparar a opinião ao insulto, a apologia do ódio à manifestação de um simples diferendo de vozes igualmente atendíveis, até chegarmos ao absurdo de vermos gente aparentemente decente hipotecar a decência a formalismos da treta, desde que isso permita manter – ou fingir – um certo distanciamento da histeria das massas. Se há uma multidão de gente a dizer que é horrendo, vamos dizer que não é nada, não vão os outros pensar que não temos cabeça, ou, pior, que como repudiámos este crime e não repudiámos aquele, seja qual for um e outro, somos uns incoerentes histéricos, no mínimo, e, portanto, o melhor é não repudiar nenhum; deixemos as coisas seguirem o seu rumo sem nos comprometermos com causa nenhuma, para não sermos acusados de não nos comprometermos com todas.