Enquanto
nos entretemos entre provocações obtusas que não servem para nada a não ser
para aborrecer, ou entreter alguns, o mundo vai definhando à nossa volta.
Quando, finalmente, levantarmos os olhos dos insta-não-sei-quê em que
inventamos a vida que gostaríamos de ter, bajulamos os que têm (ou talvez não)
a vida glamorosa que nos servem em bandejas de luxo e de lixo – seja nas fotos
falsificadas a troco de uns dinheiros atirados aos falsificadores de serviço,
seja vendendo os filhos a retalho desde o momento da concepção (lembras-te
daquele colégio em que gostaste tanto de andar, ouvi uma
influencer-barra-mãe-barra-viceversa-barra-tantofaz dizer, um dia qualquer, num
telejornal) – quando emergirmos do nós podemos ser maus, mas vocês são
bem piores, quando, finalmente, quisermos deixar de rosnar uns contra os
outros e quisermos fazermos um esforço para colar o que sobra, não terá sobrado
nada. Não deixámos que sobrasse. A liberdade devorou-nos sem
darmos por isso, porque decidimos que a liberdade está ao nível da ignomínia.
Pusemos a ciência ao nível da vigarice, exigindo provas suadas e herméticas à
primeira e boa lábia redesocialgénica à segunda; consentimos
na presunção de comparar a opinião ao insulto, a apologia do ódio à
manifestação de um simples diferendo de vozes igualmente atendíveis, até
chegarmos ao absurdo de vermos gente aparentemente decente hipotecar a decência
a formalismos da treta, desde que isso permita manter – ou fingir – um certo
distanciamento da histeria das massas. Se há uma multidão de gente a dizer que
é horrendo, vamos dizer que não é nada, não vão os outros pensar que não temos
cabeça, ou, pior, que como repudiámos este crime e não repudiámos aquele, seja
qual for um e outro, somos uns incoerentes histéricos, no mínimo, e, portanto,
o melhor é não repudiar nenhum; deixemos as coisas seguirem o seu rumo sem nos
comprometermos com causa nenhuma, para não sermos acusados de não nos
comprometermos com todas.