Não conheço ninguém
que viva num lar. Mesmo que seja possível, isso de viver num lar. Dizem que há lares que são mesmo Lares. Espero nunca vir a precisar, nem para mim própria, nem para os meus mais queridos. Até à presente data, os meus
dois únicos familiares com necessidade de acompanhamento permanente numa
determinada fase da sua vida tiveram a possibilidade, afortunada, de ficar em
casa até ao fim da agonia. Na impossibilidade de afastar as doenças, terríveis as duas, o segundo privilégio foi a agonia não se ter prolongado por
tempo demasiado indecente. Há um tempo minimamente decente para aguentar uma espécie de coisa
que já não é vida. Para quem resiste e para quem assiste, impotente, mesmo que faça todo o possível para fazer muito mais. E quem passa pelo horror da experiência, passa por ela de
forma diferente, pelo que não há muito mais a dizer. A não ser que não tenho medo de
envelhecer. Creio que nem sequer tenho um medo estapafúrdio da morte. Tenho
pena de deixar de viver, e tenho medo de deixar de viver muito antes da morte
chegar. Comungo da ideia de que a morte não chega exactamente com o último
sopro.
Entre os mais desprotegidos dos mais desprotegidos, continuam os mais velhos, os mais doentes e os mais pobres. Prepara-se outra etapa de combate à pandemia que, temo, ameaça tornar-se num outro remendo. Mas nada disto é fácil. Inevitavelmente, com o SNS à beira do colapso, o Governo decretou o recolhimento obrigatório em alguns dos concelhos com maior número de infectados. Parece que andamos a portar-nos muito mal. Talvez seja, não sei. Sei que andamos a usar as máscaras mal desde o início. Já não sei se isso chega para explicar tudo. Tenho tido – como todos – muita dificuldade em equilibrar o deve e o haver (se posso dizer assim) da nossa gestão desta pandemia que o final de ano não vai levar, afinal. Nossa, enquanto país, nossa, individualmente. Nesta fase, imagino, serão poucos os que ainda não conhecem alguém doente. No mínimo. Talvez sejam mais os que ainda não perderam ninguém para a doença. Para outras doenças, atiradas para um canto por esta. Cada um de nós terá tido a sua dose. Mais uma vez, pessoal e intransmissível. Acresce que também não vejo os meus pais há muito mais tempo do que queria – do que quereríamos e do que nos devemos – e debato-me entre a vontade de os abraçar e o medo de poder contaminá-los. Fala-se muito sobre a liberdade que os nossos pais e avós devem ter, impreterivelmente, de decidir se querem ou não abdicar dos seus afectos em favor de um imperativo maior que é viver sanitariamente o tempo que têm pela frente. Eu concordo com isso, mas só em parte. Ou melhor: não é tanto uma questão de concordar ou não concordar, é o que fazer com a culpa que fica depois, caso haja esse depois que ninguém deseja; que eu, pessoalmente, não quero sequer equacionar. Será egoísmo meu.
O celebrado milagre
português – que, afinal, não foi bem – foi forjado sobre os ombros dos
profissionais de saúde dedicados e com enorme espírito de sacrifício; parece-me
bastante certo. Além, claro, da nossa vontade de ficar em casa; motivada pelo
medo, sim. Maioritariamente, talvez. Do mesmo modo que, agora, por exemplo, muitas escolas
se têm aguentado à custa da dedicação e espírito de sacrifício de professores e
funcionários. Claro que não de todos, evidentemente, não há nenhuma classe
profissional livre da sua nodoazinha de marca. Mas dos suficientes para o caos
não ser maior ainda. Há funcionários a reduzir, por iniciativa própria, as suas
pausas para almoço, para conseguirem (outro exemplo) limpar todas as salas entre
horários de manhã e tarde, quando rodam as turmas. E professores a duplicar parte
das tarefas, porque, aparentemente, em alguns concelhos toda a turma fica em
casa quando há um ou mais alunos infectados e, noutros concelhos, só ficam em
casa os alunos infectados: a restante turma continua com aulas presenciais e
não há dois professores diferentes para o efeito. Entretanto, o Governo
continua a falar nos computadores que chegam aos alunos mais carenciados, e há
escolas aonde não chegaram, ainda, nem computadores nem professores. Evidentemente,
um sistema de colocação de professores obsoleto e apodrecido pesa nas contas cada
vez mais inconciliáveis.
E, sim, nos últimos dias andei obcecada com as eleições americanas. É-me indiferente (talvez "quase indiferente" seja mais honesto) o rumo da política na América, assunto sobre o qual percebo pouco mais que nada. Para mim, a questão não era essa. Há maldade e maldade, escuridão e escuridão, trevas para além das linhas que nos arrancam pedaços, ou da sombra negra das nuvens antes da tempestade perfeita. Donald Trump é maldade na sua forma nauseabunda. Ventura é um menino de fralda. É esse o grande legado de Trump. Não só por cá. Veremos por quanto tempo. Fico aliviada com a vitória de Biden (mesmo que Trump e a sua corja esperneiem e possam, ainda, ressuscitar), não porque Biden seja uma competentíssima promessa, mas porque tenho mais facilidade em explicá-lo a ele à criança que pus no mundo e que vou tantando educar. Não tem nada a ver com ser boazinha. Também já fui capaz de o ensinar a não bater em ninguém por sua iniciativa, aconselhando-o, contudo, a que se alguém lhe batesse primeiro, que pensasse duas vezes entre ir, ou vir, fazer queixinhas, ou defender-se também pela força física: da primeira vez, pode resultar bem em ambos os casos, mas é bem possível que apenas no segundo o problema se resolva logo de vez. Sou um mãe cheia de incongruências. Mas a vida sem os nossos demónios talvez também não seja bem vida.