quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Tenho tanta coisa para ler que precisava que o meu dia tivesse mais duas ou três horas. Sem máscara. Despir a máscara depois de entre 8 a 12 horas amordaçada, dependendo dos dias, é mais que um alívio. Nos últimos dias, de frio picante, tem sido quase um prazer. A noite já noite, descer as escadas a correr, arrancá-la a caminho do carro e o vento gelado, em cheio na face, fino e afiado com um fio de navalha, um acto de remição por todas as horas de cansaço acumulado.

 

Alguém me enviou um print da mensagem daquele senhor ou senhora que confessou fazer a sua vida quase-normal, paranormal, sabendo-se infectado ou infectada, que o importante é guardar segredo sobre o assunto e continuar a fingir que está tudo bem, e lembrei-me daquela amiga, há tantos anos que já parece noutra vida, que, estando sozinha com as duas filhas pequenas, enfiou uma colherada de brufen pelas goelas da mais nova e mandou-a para a creche. Seriam apenas umas horas, de manhã. O marido trabalhava, na altura, fora do país, a pequenita adoecia porque sim e porque não também, ela já faltara ao trabalho até ao limite da indecência e havia uma reunião na empresa, mais uma reunião na empresa, a que não podia voltar a faltar se quisesse manter o emprego. Não, a amiga não era nenhuma irresponsável, inconsciente, ou mais um punhado desses mimos que gastamos, quase todos, com os outros em algum momento; eu, pessoalmente, em muitos desses, mea culpa. Era só, na altura, uma mulher esgotada. Como andamos todos, nos dias de hoje. Ainda assim, sim, é preciso algum descaramento.

 

Mas, eu queria mais duas ou três horas no meu dia, era isso, para arranjar tempo para ler. Tempo tempo, não aquele tempo que desfiamos entre tarefas, numa pressa esgadelhada. Não sei ler assim. Cometo, no entanto, um pecado enorme: arrisco um zapping – posso dizer assim, zapping, para os livros? – por algumas páginas do Sentir e Saber, do António Damásio. Quero lê-lo desde a entrevista. Era capaz de jurar que havia qualquer coisa sobre uma sociedade deslassada, mas devo ter-me confundido. Lembro-me que era muito próximo do que sinto. Uma sociedade deslassada. Deslaçada, também.

Entretanto, vou largando rabiscos em pedaços de papel que, depois, não sei bem onde pouso, e deixo-me consumir no receio de que alguém se atreva a desnudar-me a alma.

 

Também ouvi qualquer coisa sobre a demissão de um ministro cabo-verdiano na sequência das reportagens que a SIC andava, ou anda, a exibir sobre os corredores obscuros por onde se movem os vermes que se acardumam no Chega. Ah, sim, para mim são vermes, lamento, e sei que não vale insultar, mas, a premissa é válida para ambos os lados e qualquer português de bem, mesmo de bem, se sente insultado a ouvir o clone do senhor Trump.

 

Afinal, “reconfinamos”, mas as escolas mantêm-se abertas. Enganei-me.

Devo dizer que esta espécie de cárcere não me desassossega em demasia. Sempre apreciei o silêncio e, além disso, aturo-me bem. Mesmo que, por vezes, haja menos silêncio e demasiada gente. Não é bem um verso da Maria Guinot.

Não fecham as escolas e parece-me bem, francamente. Mas, temo o que por aí vem. Um país em ruínas.

 

E ontem – ou anteontem – li uma bela declaração de amor. Uma belíssima declaração de amor. Hoje, já não sei bem o que li. O que ouvi.

O amor como um acto de redenção. E o orgulho como uma arma de defesa; porque, se dermos mais um passo, corremos o risco de nos despedaçarmos. Mas, talvez seja só eu que o vejo assim.