O meu Ensaio Sobre a Cegueira voltou à minha estante, depois de anos perdido até eu me lembrar de a quem o tinha emprestado: uma grande amiga que dizia não conseguir ler Saramago desde os tempos de Memorial do Convento. Convenci-a de que talvez não tivesse lido o livro certo e emprestei-lhe (e, entretanto, ofereci-lhe) aquele que continua a ser um dos melhores livros da minha vida. Tinha-lhe perdido o rasto, ao livro, não à amiga, embora seja uma amiga que vive mais longe do que eu gostaria se eu tivesse voto em matéria de distâncias do género, e encontramo-nos esta semana, não para que me restituísse o livro, mas aproveitando a oportunidade. E mandava a falta de oportunidade que se vive que não o relesse, não de momento, não neste tempo, mas não fui capaz de resistir. Continua a provocar-me, a inquietar-me, a devorar-me.
O mesmo tempo mandava que não regressasse a Março de 2020, mas, mais uma vez, desobedeci.
Li apenas um livro Gonçalo M. Tavares. Talvez tenha também escolhido mal, como a minha amiga (para que conste, gostei bastante de Memorial do Convento, mas não sou exemplo, como sabe qualquer um que por aqui se perca), mas não me rendi. E não sei se vou insistir. De momento não vou insistir. Pelo menos no que ao romance diz respeito. A vida é miseravelmente curta para fingir prazeres, até de leitura: preciso de linhas que me revolvam por dentro, por motivos diferentes em períodos diferentes, às vezes para fingir que não vejo o que arde lá fora. Fora das páginas dos livros que escolho.
Ainda assim.
Ainda assim, acabei por comprar o seu “Diário da Peste”. Não é bem um livro livro, e eu sou assim,
cheias de incoerências também literárias. Fui seguindo, mais ou menos, aquelas crónicas publicadas no Expresso, que surgiram no tal odioso Março de
2020. Precisava de muitos e variados olhares sobre a materialização do absurdo
– como acontece outras vezes, com outros absurdos –, e revia-me em alguns
daqueles atordoamentos do corpo e da alma. Comprar alimentos, conduzir
o carro, fazer o essencial e voltar, a praça de São Pedro vazia, os
hospitais em erupção, os hospitais em carruagens de comboio, o Palacio
de Hielo convertido em morgue, os nossos velhos moribundos a
engrossar a lista de mortos, fantasmas de novos números e de velhas
estatísticas, a vida limitada aos écrans das salas de zoom. O vermelho e branco das fitas que nos domesticaram os hábitos: outra das mordaças indispensáveis
para nos mantermos a salvo. O nosso milagre, o nojo do Outro,
os sermões telediários, as epifanias em catadupa, melosas, os sinais divinos e
o renascimento (não era?) de um mundo que haveria de vir, sarado e em paz,
depois de atender, enfim, aos avisos do Além.
Em
tudo isto estávamos, e eu sem saber nada de contrições.
Passaram-se dezoito meses, dezanove meses – mais dia, menos dia, mais número, menos número, "um ano e meio de merda", valha-nos a clarividência de alguns candidatos a presidente de câmara – e continuo sem ser capaz de enunciar o que aprendi, ou deveria ter aprendido, com o apocalipse. Não descobri talentos, e ansiava por vários, nem o caminho para a remissão dos meus pecados, e padeço de tantos. Há aquela coisa de aprender que nada é garantido – como se eu não o tivesse aprendido há muito, e não fosse essa a expressão mais descarnada do lugar-comum devoluto que só assiste aos privilegiados. Aprende-se ciclicamente que nada é garantido, mesmo existindo longe da obscenidade da fome e da guerra, da tragédia dos incêndios e das cheias. O horror tem muitas faces, muitas formas, muitas maneiras de se reinventar porque habita no fundo de nós, no lodo adormecido dos nossos vícios e dos nossos medos. Ausento-me na tentativa de conhecer os meus, uma necessidade voraz, às vezes infame, de recolher pensamentos. Meus e de outros. Até de pensamentos inventados e verbos pontiagudos, que posso, pelo menos, usar como contraponto, o ensaio em branco que me permite aferir do meu afastamento ao prelúdio de um outro normal. Há muito que não há um normal. O mundo é um manicómio não muito diferente das metáforas de Saramago.
Morreu ontem Isabel da Nóbrega, de quem alguns disseram que abdicou da sua própria carreira literária para impulsionar a de José Saramago, com quem viveu um romance escandaloso à época, antes de Pilar del Rio. Também dizem que foi por causa dela que Blimunda se chamou Blimunda. Foi ao ler a biografia de José Saramago, de Joaquim Vieira, que conheci parte da paixão e da mesquinhez de Saramago: ordenar à Editorial Caminho que eliminasse das novas edições todas as dedicatórias que fizera a Isabel da Nóbrega. Numa das edições que tenho de O Memorial do Convento (descobri que tenho duas, e não é caso único), ainda consta uma dessas dedicatórias: "À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova". Depois, as contracapas encheram-se de dedicatórias a Pilar del Rio. É sabido que, pelo menos, o amor pode ser bastante volátil, e as biografias (também) servem para mostrar que é sempre da maior sensatez distinguir a obra do criador, independentemente de qual venha a sobreviver à leitura.