Invoco a cidade de Roma. Ainda a propósito dos contos de John Cheever e das suas múltiplas referências a Itália, e a Roma em particular. São referências, pouco mais. Não há lá nada da minha devoção imoderada pela cidade eterna.
Ignoro se vivemos outras vidas. Se vivemos, já fui de Roma. Já vivi a infâmia burlesca aclamada freneticamente na arena sangrenta do Coliseu; já passeei pelos corredores empedernidos do Fórum Romano; já percorri todos os extensos caminhos da Via Appia, afagando as pedras maciças e largas, e serão seguramente meus alguns dos ossos confiados piedosamente às entranhas da terra, no coração das catacumbas, entre túneis labirínticos, lúgubres, que o guia relembra não podermos fotografar. Espreito as criptas escavadas nas paredes, a diferentes alturas e momentos, talhadas pelo cunho do tempo ou pelo punho do homem, à medida, algumas adornadas de símbolos e gravuras e dos frescos que ainda resistem na companhia dos mortos que veneram e guardam, entre santos, e mártires, e pontífices devotos. Sobressaltam-me os ruídos metálicos, os rugidos enrouquecidos que sobem de tom sobre o eco do silêncio que se impõe, subitamente, como um espírito que se houvesse materializado entre muros e túmulos para desassossego dos vivos.
Já
adorei noutra época o êxtase de Santa Teresa, sob o olhar atento de Gian
Lorenzo Bernini, perdida na mesma fantasia que, pelo brilhantismo da arte, o
escultor materializou numa estátua repleta de erotismo pouco católico,
expressão mais que divina da exaltação do prazer espiritual, sim, mas eminentemente (iminentemente?) físico, que uns chamam de profano, por pudor ou por despeito, tanto faz, pois assim o descreveu Teresa, aludindo
ao anjo que lhe apareceu, de beleza nunca vista, cuja longa lança de ouro
lhe penetrou o coração e as entranhas, numa dor tão grande que a fez gemer,
muitas vezes, em voz alta, não querendo, porém, livrar-se da doçura dessa dor
excessiva, desse prazer tão grande que nenhuma felicidade terrestre poderia
oferecer-lhe, do amor imenso que sentiu por Deus, quando, finalmente, o anjo
tirou de si a sua lança: Bernini traduziu-o magistralmente.
Roma é a minha cidade italiana. Nem sei bem porquê. Florença é uma cidade magnífica, e toda a região da Toscana é de uma beleza encantadora, temperamental no bom sentido do termo, sem o desplante descortês do Sul. Toda a Itália é temperamental, na verdade. Mas Roma é quase decadente e entranhou-se-me na pele, encheu-me os sentidos de espantos e a alma de uma loucura insaciável. A cidade é suja, caótica, os italianos em geral e os de Roma em particular, não são tão acolhedores como se diz. Cumpro a penitência com deleite. Basta-me a imponência das ruas, as rugas do tempo riscado a cada esquina a que me rendo sem dor, o burburinho da História narrada sobre as pedras, o cheiro dos séculos passados que me transporta à dimensão imperial da época, em memórias guardadas como relíquias.
E gosto cada vez mais de Itália. Sem mas nem porquês. Ponto. Hei-de
ir ao Carnaval de Veneza, e hei-de voltar a Roma, de onde nunca chego realmente a partir.