quarta-feira, 30 de junho de 2021

Eduardo Cabrita, quem mais?

Pergunto-me em que outro país europeu sob um regime que se supõe democrático seria possível manter em funções como Ministro da Administração Interna alguém como Eduardo Cabrita. Não é um cadáver adiado, como já ouvi, porque há cadáveres que merecem respeito. Eduardo Cabrita é um mono apodrecido: para memória futura, devo deixar registado que esta figura, no lugar que ainda ocupa, me envergonha à náusea. Como é que, enquanto sociedade civil, aturamos isto sem um sobressalto, é coisa que ultrapassa, não só o meu entendimento, mas a minha boa vontade.

Aparentemente, o cadastro daquele senhor à frente do MAI não é escabroso o suficiente para inflamar de indignação os ânimos dos portugueses, em rede ou sem rede. Não é bem a mesma coisa que proibir, o que seria, os festejos do Sporting em tempos de pandemia ou defender o isolamento profilático da Selecção Nacional porque o João Cancelo testou positivo, que absurdo, enfim, coisas de suma importância, como é sabido e tolerado, para um país soberano como o nosso e, então sim, capazes de erguer uma onda de protestos capaz de nos fazer deslocar em manifestações massivas, senão a Sevilha, ao Terreiro do Paço. Mas, uma morte é apenas uma morte, outra morte é apenas outra morte, o Movimento Zero é um ondular fofinho em águas calmas guiado por gente de bem e um Ministro da Administração Interna é só um Ministro da Administração Interna, Portugal é um país seguro, a ordem pública é coisa, por cá, fácil de manter. O povo é manso, o futebol é rei, o Presidente é afectuoso, a oposição não existe, temos o Cristiano Ronaldo e a França também não chega aos quartos de final. Estamos perdoados e o Mundial é amanhã. O resto são detalhes. 

António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa sentem-se confortáveis chamando ministro a Eduardo Cabrita, quem sou eu para lhe chamar outra coisa qualquer que me apeteça? E apetece-me...

domingo, 27 de junho de 2021



sábado, 26 de junho de 2021

 

"Não sei se é o sonho que me faz escrever ou se o sonho é o resultado de um sonho que vem de escrever. Estamos nós plenos ou ocos? Quem és tu que me lês? És o meu segredo ou sou eu o teu segredo?"

Clarice Lispector

Este circo absolutamente alarve por parte dos maiores (??) representantes da Nação, em torno da Selecção Nacional, é tão indecoroso, tão miserável, que nem sei por onde começar. Se calhar, por desejar a "nossa" derrota dentro das quatro linhas enquanto ainda for possível contê-la apenas por aí... 

sexta-feira, 25 de junho de 2021

A minha Lua permanece a mais bela de todas as luas. Ainda há pouco, ao início da madrugada, era uma imensa gota de madrepérola, redonda, redonda, suspensa de um céu morno e sem nuvens, inundando de luz a superfície do mar. E o mar amoroso deixando-se banhar. Uma vasta tela de seda, liso, liso, quieto, excepto no limiar das sombras, onde o luar fervilhava em borbotos descompassados como cócegas. Tão brilhante, tão brilhante, o meu Céu aclarando-se tão descaradamente, que, por momentos, pensei ter esquecido uma lâmpada acesa na varanda. Mas não. Era apenas uma parte do Mundo a existir lá fora numa aguarela prateada, alheio à minha existência.


terça-feira, 22 de junho de 2021

Às vezes leio como quem ama. Bebo das mesmas palavras onde receio naufragar. Também há dias em que o meu céu desmaia em cores suaves, como o bater das asas de uma borboleta. Aveludado. Um instante, e depois outro, e depois outro. Quantos batimentos até explodir a mais indomável das desordens? Há uma muralha inacabada de nuvens ainda densas e baças que se arrasta em direcção ao mar como um vestido de noiva, como numa peregrinação. Lentamente, enquanto conto os silêncios que fazem as coisas que não podem ser ditas. Um a um, como quem conta as pétalas de uma história adiada. Não dei pelo dia mais longo, e nem sempre o meu coração bate devagar.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

 


domingo, 20 de junho de 2021

 


"E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz"

"(...) caminho como um remo que se afunda."

Daniel Faria

sábado, 19 de junho de 2021

 


Falta-me esse outro talento, o de conciliar imagens e palavras, mesmo que sejam minhas ambas. É o meu princípio da incerteza aplicado ao mundo do visível, do macroscópico. Há uma ameaça de conflito este sim, invisível para lá do microscópico – que fere a possibilidade de me encontrar, simultaneamente e com precisão, no encantamento traduzível das duas.

Até Lisboa se confina nos recantos da minha memória.


quinta-feira, 17 de junho de 2021

Pulo do Lobo

Só porque andei a remexer em fotografias antigas.






A actualidade não se recomenda...

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Sabor a sal. Cortante. Húmido. Um quadrado fino de chocolate negro a morrer-me na boca. O canto profundo e grave do vento. O pranto morno da chuva como areia fina, lamurienta, escorrendo pelo dorso despido da duna. O meu banco de tábuas estreitas, de frente para o mar, possuindo-se de espantos. E o mar em sobressalto. Ou mudo, de dias quietos. E a luz da lua cheia, enamorada, tingindo-o de prata. O despontar da alvorada enfeitada de véus estriados em amarelo-limão, a longa cauda evaporando-se em espasmos violeta. O cheiro a terra molhada e o rugir ensandecido da tempestade depois do relâmpago. O sol suave de Outono, numa carícia dourada e lenta, a água fresca que jorra da fonte numa torrente insubmissa e a luz que se estilhaça em vitrais multicolores. Cristalinos. Arco-íris perfeitos. O estalar do tempo num arroubo de saudade. O cheiro intenso do café amargo acabado de fazer. Sempre. E o silêncio. Ressoando como preces.

Deus, Pátria e Coca-Cola

Roubei outro título. Para me solidarizar com o Cristiano Ronaldo, o Deus do futebol e, portanto, da pátria portuguesa, com toda a certeza. O Presidente da República lá saberá o que é importante para o país. Foquemo-nos, por isso, na Selecção e no Euro-2020 que, por motivos que interessam cada vez menos, tem lugar em 2021. Além disso, tal como o nosso CR7, não aprecio Coca-Cola. Não aprecio nada. E ganhámos. Temos entretimento para os próximos dias. Notícias, análises, mais notícias, mais análises. Os ajuntamentos, a falta de máscara e a lotação do estádio Puskás-Arena não provocou comoção para lá da emoção desportiva. Não se ouviram os sermões novo-normais, jornalísticos e outros, porque estamos quase, quase de volta ao velho normal. As polémicas – por mais cabeludas – esvaziam-se ao primeiro apito. Apito é uma palavra horrível, por sinal. Mas, entre outras coisas que vão fazendo a nossa história, já sem as armas e os barões, Fernando Medina pode dormir descansado. Sobreviverá como presidente da Câmara Municipal de Lisboa. E Cotrim Figueiredo pode continuar a organizar arraiais e a praticar “tiro ao alvo” sobre os alvos que lhe aprouver. Na verdade, também o entendo. Enquanto pratiquei tiro – já lá vão uns anos –, por mais do que uma vez me senti tentada a personalizar o papelucho cheio de circunferências concêntricas, tanta era a gente a merecer a minha devoção; and counting, como dizem os ingleses, que, como é sabido, também apreciam futebol. Arraiais, não sei.

Sugeri-o, até, ao meu instrutor à época, isso de colar umas carinhas nos alvos, mas, talvez por eu ser a única mulher naquele grupo, esse meu capricho nunca foi tratado com a atenção e o respeito que merecia. Dizia-me, apenas, que eu tinha jeito para aquilo. Quando ao suposto jeito comecei a associar um certo prazer, desisti. Nunca fiando, diz o povo sabiamente.

Portugal segue nos próximos capítulos, que é como quem diz e o povo também, nos próximos jogos.

Entretanto, por qualquer motivo que não sou capaz de explicar, entre ontem e hoje, o número de visualizações deste blogue disparou (mais ou menos, que ainda vai havendo bom senso) lá para os lados da Suécia. Não é a primeira vez, mas, desta vez, é bastante expressivo. Neste exacto momento, só no dia de hoje, este blogue conta com quase quinhentas visualizações a partir daquele país e pouco mais de cento e setenta desde Portugal. Um escândalo em qualquer dos casos, que esta é uma casa humilde. Ou isto é obra de pirataria informática, ou, decididamente, o mundo está perdido. Pelo sim, pelo não, agradeço a todos os que perdem parte do seu precioso tempo a ler isto. Suecos e não suecos.

Do Togo. Um destes dias, tinha duas visitas do Togo. 

E aquele livro merece ser lido. Mesmo por quem não gosta de Coca-Cola.

terça-feira, 15 de junho de 2021

"Procurar

Não é um verbo mas sim uma vertigem. Não indica acção. Não quer dizer ir ao encontro de alguém mas sim jazer porque alguém não vem."

Alejandra Pizarnik

"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro."

Clarice Lispector

domingo, 13 de junho de 2021

 


Depois, exausto, o Céu levantou-se numa manhã esgotada. Branca, branca, vaporosa, como a pele de um fantasma.

 


Aurélia de Souza, Visitação

"O sonho é a pior das drogas, porque é a mais natural de todas. Assim se insinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova sem se querer, como um veneno dado. Não dói, não descora, não abate — mas a alma que dele usa fica incurável, porque não há maneira de se separar do seu veneno, que é ela mesma. 

Como um espectáculo na bruma

Aprendi nos sonhos a coroar de imagens as frontes do quotidiano, a dizer o comum com estranheza, o simples com derivação, a dourar, com um sol de artifício, os recantos e os móveis mortos e a dar música, como para me embalar, quando as escrevo, às frases fluidas da minha fixação."

Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego


sábado, 12 de junho de 2021

O menino dorme um sono tranquilo, enrolado na manta branca e macia. Está esgotado da viagem. As chamas bailam, insubmissas, moldando os toros de pinheiro acabado de rachar e o calor vai emprestando ao ar da sala um suave odor a resina, enquanto a madeira geme baixinho em estalidos secos e quentes que embalam a conversa solta e fora de horas. É um tempo de recordação e memórias, de lembrar um passado que se fez de mais de um século e que finda agora como, daí a pouco, a chama amarelecida da lareira que, por ora, afaga suavemente a face apaziguada do menino.

Dizem as gentes da terra que já não há mulheres assim. Daquelas que dão à luz sozinhas, parindo nada mais chegar do campo, com uma ligeira indisposição, talvez seja a hora, vou a casa, ver se isto passa ou se, pelo contrário, aqueço, antes, a água na panela, enquanto ato, numa pressa, um lençol grande a duas cadeiras, para ajudar a amparar a menina, para o caso de estar mesmo a chegar. E o caso é que lá chegou, assim foi, num enorme pranto, cheia de vida acabada de colher no meio da sala, num lençol limpo, não demasiado esticado, é preciso uma tesoura, escaldada, pelo sim, pelo não, também lá está, logo ali à mão, e a menina sozinha com sua mãe, como se, à época, fizesse falta qualquer outra coisa mais. Talvez a parteira, que já não veio a tempo, é certo, mas, ao menos, só para ter a certeza que as duas estão bem de saúde. Está tudo como deve ser. E a dorzita passou, afinal. Calhando, amanhã, ainda volto ao campo… 

Seguramente, ainda haverá mulheres assim. Era bom que já não houvesse, que fôssemos realmente todas iguais.

O menino ainda dorme, sob o olhar amoroso. 

Não acredito em anjos. Se acreditasse, talvez fosse fácil imaginá-los assim, aquecidos pelo lume da lareira, ouvindo histórias de encantar, num sono quieto e venturoso.

sexta-feira, 11 de junho de 2021


 

"Y yo sola con mis voces, y tú, tanto estás del otro lado que te

confundo conmigo."

Alejandra Pizarnik


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Entre as dezenas de livros que fui adquirindo ao longo dos últimos meses (sem incluir na contabilidade os que me foram oferecidos), consta O Latim do Zero, do professor (e et cetera) Frederico Lourenço.

Não vou aprender latim. Nem tentar, suponho. Creio, antes, que sofro da mesma síndrome que Arturo Pérez-Reverte: compro livros que já li, compro aqueles que vou ler e os que nunca lerei; mas preciso que estejam todos ali. Mesmo que a minha biblioteca nem chegue bem a ser bem uma biblioteca: já vou empilhando livros onde posso, com a dignidade possível para ambas as partes, até me ver obrigada a refazer, finalmente, uma obra que ando a adiar há anos. E talvez ainda volte a Pérez-Reverte, a quem gosto mais de ler o que escreve nas crónicas do que o que escreve nos livros, na verdade. Mas isto sou eu, que faço tudo o que dizem que não se faz no que a leituras – e a escrituras – diz respeito. Desde logo, não raras vezes, rabisco os meus livros; sublinho; e, se preciso for, posso encher de gatafunhos o verso dos marcadores mais aquelas cintas elegantíssimas (desde que pouco “enceradas”) que trazem alguns. Até dobro, pasme-se – raramente, é certo –, o canto de algumas páginas. Não vá alguém vir aqui ao engano.

Mas, a propósito de latim. Tinha ouvido falar da página de Facebook de Frederico Lourenço há algum tempo; e, um dia qualquer, o livro saltou de uma estante da Fnac para as minhas mãos. Não sou supersticiosa, mas os tempos andam estranhos. E não tenho Facebook. Adicionei-o à lista.

Às primeiras páginas, a proposta é ambiciosa: “O projeto Latim do Zero propõe 50 lições que, passo a passo, visam dar as bases gramaticais para ler, na língua original, a Eneida de Vergílio – sem sombra de dúvida, a maior obra da literatura latina.” Na língua original. É o que sempre me tenta. Poder ler um autor na sua língua original. Para não ser traída. Nem seduzida pela astúcia inflamada, possivelmente, dos galanteadores. Seria tão bom, se pudesse.

Ainda não cheguei à primeira lição. Ainda estou cheia de ilusões.

Hoje também seria dia de celebrar Portugal e o Poeta, e estive quase, quase a escrever qualquer coisa digna. Depois, tropecei na comunicação de Fernando Medina, a desculpar-se pelo “erro lamentável” de se ter enviado para a Rússia dados pessoais de activistas russos residentes em Portugal, aproveitando para – como vem sendo apanágio de detentores de cargos públicos que se julgam dispensados de prestar contas ao país – acusar a oposição, ou o que, infelizmente, dela resta, de delírio e aproveitamento político. A melhor estratégia para "enfrentar" críticas e fugir às (ir)responsabilidades é encenar indignações apopléticas. Ninguém tem o exclusivo, PS, PSD, o que seja. E, de repente, tudo o que se me oferecia dizer talvez não caiba neste espaço, que, apesar de tudo, ainda tenta manter o mínimo de compostura. De modo que, achei por bem calar-me. Mais ou menos. Decididamente, é urgente distinguir Portugal dos portugueses. Destes. Dos de p pequenino. Minúsculos.

Mas tenho um exemplar belíssimo, antiquíssimo, de Os Lusíadas. De vez em quando, retiro-o do seu refúgio. Com esforço. É um livro grande e pesado, os Cantos inaugurados em ilustrações magníficas. Sinto-lhe o cheiro dos anos, as pregas do tempo e da História. Obviamente, não o rabisco. Nem lhe dobro os cantos das páginas. Adoro-o como merece.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

 


terça-feira, 8 de junho de 2021

Outras vezes, obrigo-me a não acreditar. Não saberia o que fazer se acreditasse.

"Había que escribir sin para qué, sin para quién.

El cuerpo se acuerda de un amor como encender la lámpara.

Si silencio es tentación y promesa."


Alejandra Pizarnik

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Há muito tempo que não lia um livro de um trago. Desses livros que não nos dão descanso enquanto não virarmos a última página e no fim ainda nos deixam a latejar. Numa espécie de embriaguez. Só mais uma página, como um ébrio diria mais um copo. Li ontem A Trilogia da Cidade de K., de Agota Kristof, e ainda estou de ressaca.

Eu sei que o acto de ler deve fazer-se sem impaciência. No tempo do texto, das linhas, das regras. No tempo da história. Como quem saboreia um bom whisky de malte: observar-lhe a cor, sentir-lhe o cheiro, sorver um pequeno gole e mantê-lo na boca o tempo suficiente, apenas, para que se espalhe generosamente sobre a língua. Engolir. Repetir. Agora um pouco de água – gelo, nunca  e repetir. Degustar. Também se aplica à leitura. Às vezes. Outras vezes, a leitura é sôfrega como a sede.

Não é um livro fácil, apesar de se fazer sobre frases curtas e simples e linguagem clara. Aliás, não é bem um livro, são mais ou menos três livros, e é, precisamente, na linguagem clara, seca, que reside grande parte da sua dureza. A outra parte é o que sobra da condição humana, talvez não só em tempo de guerra. É o equilíbrio entre a necessidade e a imoralidade, entre a ingenuidade e a devassa, a provocação e a ausência. Ausência de afecto, ausência de amor. Sobretudo, ausência de amor. Mesmo cumprindo um dever, sobra apenas a rudeza de uma intenção crua. É objectivamente perverso: a necessidade acima de tudo. Sobreviver. A guerra tem sempre histórias terríveis para contar, reais ou imaginadas.

Já não posso dizer o mesmo de O País dos Outros, de Leïla Slimani. Não gostei nada. 

Parte do encantamento a que me entrego quando leio como passatempo  seja lá o que isso for, e será coisas muito diferentes para quem gosta realmente de ler faz-se de acreditar. Enquanto dura, acreditar. Sem reservas. Não foi o caso, com aquele livro. Não acreditei suficientemente. Não acreditei na intensidade nem do amor nem do ódio. Não acreditei na Mathilde nem no Amine, mesmo sabendo do abismo que separa as relações entre os dois mundos. Do cheiro a couro e a decomposição que sufoca as ruas estreitas da medina, não apenas da medina de Meknés. Da figura sinistra dos talhantes com os aventais cobertos de sangue, pelo fim do Ramadão. Tive (não "tive"; não eram meus) dois ou três cordeiros guardados vários dias na garagem do meu prédio e o local habitual de sacrifício dos bichos era no terraço comum que ficava mesmo por cima do meu apartamento. 

Não acreditei na Selma saída do estudo acompanhado, mesmo sabendo que Selma, provavelmente, mentia sobre o assunto para escapar à fúria do irmão Omar. Não acreditei em demasiadas coisas. Se calhar porque Marrocos foi, em tempos, o meu país, mas, que sei eu, tão longe daqueles anos do protectorado francês, uma estrangeira, tratada como estrangeira, protegida como uma estrangeira. Apesar de todos os desafios, de todos os obstáculos, o meu Marrocos foi um conto de fadas. A minha comparação é pouco justa. Vale o que vale. Nada.

E vi Mare of Easttown. Kate Winslet é tudo o que Miguel Esteves Cardoso diz dela, e mais ainda. Acreditar. Também serve para séries de televisão.

domingo, 6 de junho de 2021


 

sexta-feira, 4 de junho de 2021

É a invulgar serenidade do lugar que permite que me perca tranquilamente na contemplação pura da arte. Há obras que não imagino possíveis apenas pela mão de artífices terrenos, por mais hábeis. Há, numa certa vertigem criadora, artística – material, evidentemente –, na pintura, naquelas pinturas, naquelas estátuas de mármore impressionantes, nos gessos, na perfeita harmonia das cores e das formas, algo de divino. De sobrenatural.

Não é a primeira vez que encontro maior beleza nos santuários proscritos dos tradicionais circuitos turísticos; naqueles em que se tropeça por acaso, sem dia marcado, nem data, nem hora. Nem guia. Num passeio ocasional e descontraído. Daqueles templos em que simplicidade enganadora da fachada principal não desperta grandes paixões à primeira vista. Como uma amante ardilosa, surgem, muitas vezes, com falsa timidez. Apropriadamente angelicais. Expõem-se em toda a sua volúpia apenas quando os mais incautos se deixam seduzir pela sua singeleza, numa espécie de apelo oculto, silencioso. Há uma impiedosa volúpia na arte sacra. Cruzamos o umbral e estamos irremediavelmente perdidos.  

A nave. Exuberante. Os dois anjos ajoelhados; os santos mártires; a derrota dos rebeldes e as almas do Purgatório. Os anjos acolhendo São Francisco Xavier. O massacre dos inocentes, a adoração dos magos, a derrota da heresia, as magníficas capelas, à esquerda e à direita, com os seus maravilhosos altares que me deixam sempre embrutecida de espanto. Sempre. Como se cada vez fosse a primeira.

Uma orquestra de reflexos e sombras vertidas pelas escassas entradas de luz animam um fantástico maestro que, com destreza divina, alinha as cores dos frescos com as formas dos mármores, enchendo de vida as pinturas e as estátuas, numa muda e estranhamente vibrante coreografia. A perfeição espantosa das linhas pintadas que tudo parece tornar vivo. Os anjos descendo dos tectos para cortejar as imponentes estátuas mais abaixo; e, estas, suavizando-se, sucumbindo com deleite ao despudorado namoro, uns e outros alheios aos actores secundários, escassos, que, arrebatados e em silêncio, desfrutam do prazer sublime da contemplação. Na última capela, à direita, a Madona segura o menino, por cima do altar.

A leve penumbra do espaço ajuda ao êxtase celestial, confundindo-me mais. Fundem-se os traços pintados com os mármores esculpidos, não se sabendo já onde começam uns e acabam outros, uma coexistência perfeita e encantadora. As figuras mexem-se. Embalam o tremeluzir das velas como sussurros soprados ao acaso numa sinfonia encantada. Os gessos pincelados criam deformações ilusórias, simetrias inexistentes e, ainda assim, reais e vertiginosas em cada esboço, em cada detalhe. Uma beleza que enrouquece. Mas são sobretudos os tectos, pintados com admirável perícia e arte, que para sempre cativam os mais imprudentes. Contemplá-los é ficar sem fôlego; voltar atrás no tempo, fazer parte das histórias eternizadas na bíblia, em que, ironicamente, não creio. Não totalmente; não nesse sentido.

Posso passar horas em admiração, esmagada pela beleza lasciva da igreja desconhecida da mole usual de turistas. Depois, preciso de sair e deixar-me ruir numa existência mundana.

 



quinta-feira, 3 de junho de 2021

 


Há um passado revisitado no cheiro que sobra do tempo que passa.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Passeios (mais ou menos) Silvestres

O rapaz garante-me que a máquina carece apenas de uma boa limpeza. Fico na dúvida quando o vejo numa atrapalhação pegada para acertar com o encaixe da segunda objectiva. Falta-me pôr os óculos..., desculpa-se-me. Talvez fosse. A verdade é que sobreviveram ambos.











terça-feira, 1 de junho de 2021

 



"Alguém entra no silêncio e me abandona.
Agora a solidão não está sozinha.
Tua falas como a noite.
Anuncias-te como a sede."

"Alguien entra en el silencio y me abandona.
Ahora la soledad no está sola.
Tú hablas como la noche.
Te anuncias como la sed."


Alejandra Pizarnik