sexta-feira, 4 de junho de 2021

É a invulgar serenidade do lugar que permite que me perca tranquilamente na contemplação pura da arte. Há obras que não imagino possíveis apenas pela mão de artífices terrenos, por mais hábeis. Há, numa certa vertigem criadora, artística – material, evidentemente –, na pintura, naquelas pinturas, naquelas estátuas de mármore impressionantes, nos gessos, na perfeita harmonia das cores e das formas, algo de divino. De sobrenatural.

Não é a primeira vez que encontro maior beleza nos santuários proscritos dos tradicionais circuitos turísticos; naqueles em que se tropeça por acaso, sem dia marcado, nem data, nem hora. Nem guia. Num passeio ocasional e descontraído. Daqueles templos em que simplicidade enganadora da fachada principal não desperta grandes paixões à primeira vista. Como uma amante ardilosa, surgem, muitas vezes, com falsa timidez. Apropriadamente angelicais. Expõem-se em toda a sua volúpia apenas quando os mais incautos se deixam seduzir pela sua singeleza, numa espécie de apelo oculto, silencioso. Há uma impiedosa volúpia na arte sacra. Cruzamos o umbral e estamos irremediavelmente perdidos.  

A nave. Exuberante. Os dois anjos ajoelhados; os santos mártires; a derrota dos rebeldes e as almas do Purgatório. Os anjos acolhendo São Francisco Xavier. O massacre dos inocentes, a adoração dos magos, a derrota da heresia, as magníficas capelas, à esquerda e à direita, com os seus maravilhosos altares que me deixam sempre embrutecida de espanto. Sempre. Como se cada vez fosse a primeira.

Uma orquestra de reflexos e sombras vertidas pelas escassas entradas de luz animam um fantástico maestro que, com destreza divina, alinha as cores dos frescos com as formas dos mármores, enchendo de vida as pinturas e as estátuas, numa muda e estranhamente vibrante coreografia. A perfeição espantosa das linhas pintadas que tudo parece tornar vivo. Os anjos descendo dos tectos para cortejar as imponentes estátuas mais abaixo; e, estas, suavizando-se, sucumbindo com deleite ao despudorado namoro, uns e outros alheios aos actores secundários, escassos, que, arrebatados e em silêncio, desfrutam do prazer sublime da contemplação. Na última capela, à direita, a Madona segura o menino, por cima do altar.

A leve penumbra do espaço ajuda ao êxtase celestial, confundindo-me mais. Fundem-se os traços pintados com os mármores esculpidos, não se sabendo já onde começam uns e acabam outros, uma coexistência perfeita e encantadora. As figuras mexem-se. Embalam o tremeluzir das velas como sussurros soprados ao acaso numa sinfonia encantada. Os gessos pincelados criam deformações ilusórias, simetrias inexistentes e, ainda assim, reais e vertiginosas em cada esboço, em cada detalhe. Uma beleza que enrouquece. Mas são sobretudos os tectos, pintados com admirável perícia e arte, que para sempre cativam os mais imprudentes. Contemplá-los é ficar sem fôlego; voltar atrás no tempo, fazer parte das histórias eternizadas na bíblia, em que, ironicamente, não creio. Não totalmente; não nesse sentido.

Posso passar horas em admiração, esmagada pela beleza lasciva da igreja desconhecida da mole usual de turistas. Depois, preciso de sair e deixar-me ruir numa existência mundana.