quarta-feira, 31 de maio de 2023



Também tenho qualquer coisa a dizer sobre “Rabo de Peixe” na Netflix: não passei do segundo episódio.

É possível que seja defeito meu, mas acabei por me perder no meio de tanto vernáculo, e não foi por pudor, foi mesmo por fastio. Praguejar é uma arte. Requer saber e talento ao alcance de poucos e vai muito além de um guião corrido a palavrões a cada três sílabas. A excentricidade do acontecimento nesse distante Junho de 2001, tão surreal que encaixa com ironia apurada naquela categoria em que a realidade é capaz de superar a ficção, torna bastante difícil, suponho, compor e dar forma a uma narrativa empolgante que não se esgote logo ali, num carregamento de meia tonelada ou mais de cocaína que deu à costa numa praia dos Açores, junto a uma pequena vila de pescadores onde nunca se passa(va) nada – really?, diria o narrador na sua voz cavernosa. Todo o exagero depois disso é consonante e assumido, bem sei, mas não me convenceu. Mea culpa.


quinta-feira, 25 de maio de 2023

Ainda ando nisto...



 

Era a cabine de primeira classe: um cubículo acabrunhado e despido, com excepção dos dois conjuntos de beliches desengonçados, as armações tortas e descascadas. Sobre cada uma das camas, uma almofada amarrotada e uma manta demasiado curta, de cor indistinta, entre a poeira ocre do deserto e restos de um passado recente de outros viajantes imprevidentes. Sobrava o luxo fosco de não dividir o espaço com as cabras e os carneiros que homens rudes e trelas frágeis de corda gasta guiavam com pressa entre corredores apinhados, em busca de um qualquer espaço livre para repousar até ao destino final. Fatal, para os bichos murchos intuindo o fim. No meio do mosaico engelhado de corpos e cheiros e vozes, a pequena cabine abafada e quase nua, de salubridade engenhosa, era um pequeno pedaço de paz. As minhas mãos cheiram à tangerina do almoço, mas não me atrevo a procurar as casas de banho. Nem sei se haverá qualquer coisa a que possa chamar casa de banho. A noite anuncia-se longa, mas já sei que não me permitirei dormir. Basta-me um canto minúsculo da cama por desfazer; poder sentar-me algumas horas até ao nascer o dia e, depois, ver o sol ainda brando avançar sobre as muralhas vermelhas da cidade velha. Aproveitar o sossego da praça antes que a praça regurgite os seus mortos, antes que os vivos encham o palco e corrompam os versos guardados nas esquinas das sombras que agora despertam, que conheço tão bem.


quarta-feira, 24 de maio de 2023

Magnífica







A primeira é a primeira música em que penso sempre que penso em Tina Turner; a segunda é uma das minhas preferidas.

Estou naqueles dias. Não "naqueles" dias; naqueles dias. Indigno-me superficialmente, entre as gordas dos títulos apocalípticos e os ecos da mais fina análise política da actualidade. Desde que comentadores e jornalistas, analistas e especialistas, começaram a tratar-se pelo nome próprio, por tu não raras vezes (“ouve lá”, já ouvi duas vezes, em horário nobre e igual matéria), a avaliação do estado do Estado, a que chegamos e para onde (não) vamos, passou da Ciência Política à conversa de café.

É possível olhar para o esquartejado caso-TAP e pensar que ninguém tem razão? Pois, também estou nesses dias. António Costa avisou: habituem-se. Marcelo Rebelo de Sousa morreu pela boca, belíssimo ditado, olhem que eu sou, olhem que eu posso, olhem que eu faço, então faça lá agora, senhor presidente, ou cale-se para sempre. Como é que ninguém viu isto chegar também é espantoso. Sempre havia um lobo, mas não era Marcelo. Uma comunicação social alcoviteira, mais emp(r)enhada em entreter do que em informar, fez muito do resto, até chegarmos a este estado quase anedótico de coisas. Eu disse "quase"?

Ouve-se o líder do PSD e aquilo é tudo tão pobrezinho, tão pobrezinho, que já desconfio que Marcelo Rebelo de Sousa tem mais medo de Luís Montenegro do que de André Ventura. Valha-nos Deus… Um qualquer.


sábado, 13 de maio de 2023

Hugo Lopes

Já li isto três vezes. Continua a parecer-me uma história incrível. Tempo e sensibilidade, arte e talento. A Esperança é caprichosa, mas resiste; insiste. 



Transcrevo o artigo da Bárbara Reis, onde os descobri:


"Na dieta de cinco minutos diários de Twitter e LinkedIn, tive a sorte de apanhar o post de Carlos Diniz, professor na Universidade Nova SBE, em Carcavelos, onde conta esta história:

“Ontem à tarde, ao entrar na Nova School of Business and Economics vi isto. É impossível ficar indiferente.”

“Isto” é um vídeo de um rapaz a tocar no piano de cauda que há no átrio da universidade uma música que faz lembrar The Sacrifice, de Michael Nyman. Lembra-se da banda sonora do filme O Piano, de Jane Campion?

O professor ouve, fica impressionado e vai falar com o rapaz. Numa escola onde 60% dos alunos são estrangeiros, dirige-se-lhe em inglês:

May I film you playing?

Yes…

What’s your name?

— Hugo.

— És português?

— Sim.

— És aluno aqui da Nova SBE?

— Não.

— Como é que vieste aqui parar?

— Piano público.

— Que idade tens? Estudas?

— Tenho 21… gostava de acabar o 9.º ano… Gostava de seguir e estudar electrónica. Mas não dá… vidas…

— Então e o piano? A música!? Isto que estás a fazer é incrível… Estás a tocar sem pauta… só de ouvido?

— O que eu queria era estudar… Piano aprendo sozinho em pianos públicos. Tenho mesmo vontade de tocar.

— Como é que descobriste este piano?

— Fui copeiro no restaurante aqui em cima… agora estou à procura de emprego.

No fim do post, o professor faz mais duas coisas. Partilha a morada de Hugo Lopes, o copeiro/pianista, no Instagram, e diz que, “mais tarde, soube que a ideia do piano público foi do Pedro Santa Clara”, que “houve quem tentasse que fosse vedado e trancado”, mas que “não deixaram!”.

Fui à conta de Hugo Lopes no Instagram (hugo_cloud.g) e lá está ele a fazer o mesmo que fez no átrio da Nova SBE. A tocar em pianos públicos. Há um Yamaha de cauda onde, parece-me, ele tocará com frequência. O piano está dentro de uma loja de roupa, parece ambiente de centro comercial. Vêem-se as roupas nos cabides e os cartazes com as promoções.

Num vídeo, Hugo Lopes toca Dramatic Piano Music, Snowball Effect que — vi depois na Internet — é um tutorial popular. Noutro, na mesma loja, toca Una Mattina, que Ludovico Einaudi escreveu para o filme Intouchables. Há tutoriais dessa música no YouTube, como há tutoriais para aprender a tocar Nyman que, quando eu era adolescente, todos no meu liceu conheciam, independentemente do tipo de música de que gostavam (eu nunca gostei desse minimalismo delicodoce, mas isso é irrelevante).

Escrevi a Hugo Lopes, mas ele deve estar a trabalhar na copa de um bar e ainda não me respondeu. Queria saber se alguma vez teve aulas de piano.

Como não sei nada de música, gravei no telemóvel e mandei o vídeo a dois amigos pianistas que, como são artistas, não estão no LinkedIn. O primeiro diz que sentiu que “aquilo não tem escola, é dele, é visceral, vem de dentro” e que a música “contínua, circular, que parece que não vai acabar, é como se ele dissesse: ‘Só estou aqui a tocar porque preciso mesmo de tocar’”.

​“Ele é bom”, diz o primeiro pianista​. ​​“Se nunca teve uma aula de piano, ele é extraordinário.”

O outro pianista foi ainda mais veemente. A medo, disse-me que veria o vídeo, mas que “as pessoas muitas vezes dizem: ‘É incrível’, ‘isto e aquilo’ e eu vou ouvir e é muito banal ou mau. Mas manda que eu vejo”. Passado um bocado, liga e diz: “Olha, foi uma surpresa. Ele é impressionantemente musical”, “tem imenso talento” e “até alguma elaboração técnica”.

Resolvida a primeira parte: o miúdo que trabalha na copa do bar da Nova SBE é bom pianista.

Agora a segunda: impressionou-me a frase “tenho mesmo vontade de tocar”. Como Hugo Lopes não tem dinheiro para um piano, sai de casa e vai tocar para pianos públicos.

Vai tocar para a rua porque tem de tocar. Há o talento e há o “talento da determinação”. Hugo Lopes tem os dois.

Sim, esta história serve para iluminar Hugo Lopes e ver se alguém se inspira e inventa uma forma de o pôr numa escola e a ter aulas de piano e de música.

Mas também serve para outra coisa: imaginem as nossas cidades com pianos públicos como o da Nova SBE.

Há uns anos, em Praga, fiquei a ouvir um homem tocar num piano de parede que estava encostado na lateral de um museu, cá fora, na rua. Eram umas sete ou oito da noite, as pessos andavam de um lado para o outro, o homem estava de sobretudo, tinha uma mochila aos pés, percebia-se que tinha saído do trabalho e ia para casa. Parou, tocou 15 minutos e foi-se embora.

Vi o mesmo em Berlim. Em Viana, no Verão, há pianos de cauda na Praça dos Direitos Humanos e no bairro dos museus, uma ideia do projecto Open Piano, e desde 2018 que o festival Wir Sind Wien (Nós Somos Viena) leva um piano de bairro em bairro no Verão.

Em muitas cidades de muitos países, vêem-se pianos em lugares públicos com o letreiro “Community piano — stay and play” ou simplesmente “Play me — I am yours”.

Em centros comerciais, lojas de roupa, estações de comboio, aeroportos, centros culturais, hotéis, universidades e na rua.

Já sei — não se pode confiar nas pessoas, eles vão estragar o piano em dois tempos, isto é irrealista, bom nos países ricos, impossível em Portugal. Certo.

Mas imaginem um piano na Rua de Santos-o-Velho, em Lisboa, em frente à embaixada de França. Está lá sempre um polícia. Ou um piano no Largo Conde Pombeiro, onde está a embaixada de Itália. Ou na Rua António Maria Cardoso, onde está o Consulado-Geral do Brasil. Ou na Avenida de França, onde está o consulado-geral do Brasil no Porto. Ou na Rua Alexandre Herculano, onde está o consulado de Angola no Porto. Ou na Rua Portas Serra, onde está o Consulado de Cabo Verde em Portimão. Ou na Avenida Ministro Duarte Pacheco, onde está o consulado de Espanha em Vila Real Santo António.

E por aí adiante. Podem acrescentar-se as mil instituições, empresas públicas ou bancos privados, que têm protecção policial 24h por dia.

Fica resolvido o risco de vandalismo.

A seguir, dirão: é muito caro, não há dinheiro para pianos, que luxo asiático, o país está em crise. Calma. Isto não é fazer um elevador no pé da ponte 25 de Abril. Um piano acústico vertical da Yamaha — não é um Steinway, mas é consensualmente bom — custa quatro mil euros se for usado, sete ou oito mil se for novo.

A Câmara Municipal de Lisboa não tem oito mil euros para oferecer um ou dois pianos à cidade? O mesmo para a Câmara do Porto ou a Câmara de Vila Real Santo António. É possível comprar um bom piano de cauda por 20 mil euros. São mais caros e pouco práticos para pôr na rua. Mas são óptimos para pôr nas estações de comboio, nos aeroportos e nos centros comerciais. A beleza que seria o futuro Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian reabrir com um piano público. Já imaginou?

Os leitores sérios, que lêem todos os dias, podem ir a uma biblioteca pública levantar um livro novo sempre que querem. Devolvem e requisitam livros sucessivamente. Não gastam dinheiro, mas não deixam de ler por não terem dinheiro ou por não terem estantes suficientes ou por, simplesmente, não quererem comprar livros todas as semanas. Porque não usar o mesmo princípio para quem gosta de tocar piano e não tem dinheiro ou casa para ter um?

Um piano público é mais do que acesso à música. É educação pela arte, é salvar crianças da pobreza pela música, é elevador social através da educação e da cultura, é qualidade das nossas cidades. Há jardins públicos e há bibliotecas públicas — bens de beleza e cultura. Porque não também pianos públicos?

Um piano por escola seria inteligente e uma maravilha, mas é uma utopia. Mesmo um piano por agrupamento escolar custaria quatro milhões de euros. Há 800 em Portugal. É dinheiro.

Podemos começar por 20 pianos públicos, de norte a sul do país. Entre público e privado, há com certeza 100 mil euros em Portugal.

Para Hugo Lopes ter aulas de piano, claro, é preciso bem menos."

Bárbara Reis, PÚBLICO

 

quinta-feira, 11 de maio de 2023

quarta-feira, 10 de maio de 2023




 

sábado, 6 de maio de 2023

Porque sim, porque alguém mo recordou



"Estar cheio de si mesmo, não no sentido do orgulho mas da riqueza, ser atormentado por uma infinitude interior e por uma tensão extrema: nisso consiste viver intensamente, até nos sentirmos morrer de viver. Tão raro é esse sentimento, e tão estranho, que deveríamos vivê-lo aos gritos."

Emil Cioran

terça-feira, 2 de maio de 2023