quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Blonde

Aguentei a primeira hora. São quase três.

Não sei se gosto, não sei se volto. Ana de Armas é extraordinária. Talvez volte.




segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Mahsa Amini

A liberdade das mulheres muçulmanas usarem o (ou um) véu islâmico quando vivem fora dos países que o impõem como norma de conduta “decente” não é a mesma liberdade das mulheres muçulmanas que ousam, como agora nas ruas do Irão, rejeitá-lo ostensivamente, sabendo bem o risco que a sua escolha implica: poderem ser presas, agredidas, torturadas e assassinadas às mãos das autoridades que zelam pelo seu “bom comportamento”.

Não é ignorância, porque a Carmo Afonso não é propriamente ignorante. É aquele mas que tenta comparar o que não é comparável, para validar a conclusão que nos é mais útil ou mais cara.




sábado, 24 de setembro de 2022

O Outono é meu



Pergunto pelo bebé. Em não-frases curtas – ela praticamente não fala português e entende-o pouco, e eu não falo nada de ucraniano.

Diz-me que o bebé "bem, hoje seis meses, gordo", e rabisca um número na parede em frente, com a ponta do indicador direito: "estos quilos", mas percebo demasiado tarde e fico sem saber quantos são os quilos, afinal. "Gosta muito sopa", e enche as bochechas de ar. Ri de olhos fechados, em quase silêncio.

O bebé é neto. Pergunto pela filha. Está bem. "E a N., como está?". Encolhe os ombros, num assento resignado. Sei que o ex-marido continua a viver na Rússia; o filho homem também.

Se a palavra “guerra” não estivesse proibida na Rússia, Putin tê-la-ia proferido no seu recente discurso à nação e ao Mundo: declaro que declaro guerra ao Ocidente encarnado na Trinidad EUA-NATO-UE, qualquer coisa assim, que tem pouco de santa, é verdade, mas continua a escapar-me a equivalência entre um e os outros, e os outros também sou eu. Prefiro este lado imperfeito, se se trata de escolher um lado. A neutralidade é um luxo ao alcance de poucos, e a racionalidade que se poderia impor para evitar ter-se chegado ao que se chegou esgotou-se. Ninguém vai ganhar, porque ninguém ganha quando o cenário é um quadro vivo de Bruegel, mas eu continuo a torcer pela Ucrânia, na sua democracia impura.

O Mundo nunca foi um lugar seguro e o que sobrar não deve ficar melhor – só não nos entendemos quanto à atribuição (ou "distribuição"  não há realmente santos, mas uns são menos bárbaros do que outros) da culpa: ouvindo alguns dos mais acérrimos defensores da virgindade de Putin, dos apelos à Paz, só a Paz e nada mais do que a Paz, anseia-se pelo futuro só para ouvir a História contar a história destes dias; de como o “Mundo Ocidental” se deixou manipular pelos EUA, pela NATO e pelo presidente Zelensky, amputados cavaleiros do apocalipse, capazes de levar a Mãe Rússia a esventrar várias cidades ucranianas contra a vontade do seu presidente, Vladimir Putin, o mais injuriado dos mártires; de como a prepotente Ucrância foi capaz da maior agressão ao seu próprio Estado, soberano contra a vontade do seu povo, torturando-o, violando-o, matando-o, de Bucha a Izium, sob a complacência do Ocidente, Belzebu, interessado apenas em vender armas, ensaiar palcos de guerra e ungir um herói: pode ser, mas é uma hipótese mais retorcida do que a da febre imperial de Putin. 

A Europa não goza de grande saúde e não sei se resiste. Gosto da ideia de Europa, mas é um projecto a ameaçar ruína. Ontem, à hora de almoço, cruzei-me com um discurso de final de campanha de Giorgia Meloni  a Itália que não tem medo da gente de bem; a Itália produtiva não tem medo; não têm medo os que sonham com uma Itália orgulhosa, os que querem voltar a ter orgulho na sua nação, da sua gente, da sua bandeira; essa Itália não tem medo, essa Itália está pronta – e eu, com excepção da gente de bem que não sei bem o que seja, não vejo ali tanto escândalo (o mesmo não digo daquele ar plastificado de Silvio Berlusconi, logo ao lado) e essa é parte do problema: a ideia de que todas as urgências que enfrentamos se resolvem ignorando o descontentamento crescente de um fatia cada vez mais significativa da gente de carne e osso. Há-de haver um equilíbrio entre o chilique enjoado dos Albertos Gonçalves porque a sereia Ariel agora é negra, vejam bem, e esta tentativa de doutrinação absurda que confunde o direito à igualdade com a imposição de uma forma de pensar "boazinha", que não admite deslizes de linguagem, sob pena de nos tornarmos uns proscritos. Há uma diferença entre "não gostar de" e "atentar contra", no limite, ser idiota não é crime e do Crime deve tratar a Justiça, e a Justiça é outro pilar sem o qual uma Democracia não é uma Democracia. Ainda hoje li que "há mais de três anos que o tribunal tenta notificar João Vale e Azevedo". Já me tinha esquecido da pessoa. Já para não falar dos outros. Não é bem o CHEGA de André Ventura que ameaça a nossa Democracia, o que não desmerece em nada o desprezo que se tenha por aquilo, e eu tenho.


sexta-feira, 23 de setembro de 2022

 


Photograph: Xinhua/Rex/Shutterstock 


A imagem (ouvi falar também de um vídeo, mas a fotografia já é suficientemente repugnante, por isso, nem procurei) da mulher coberta de formigas num lar da Santa(?) Casa da Misericórdia de Boliqueime é de um horror obsceno. Não é uma “falha humana” (mas qual “falha humana”!?; falha humana era a senhora ter caído da cama num infeliz momento de desatenção), é o exemplo acabado da ausência absoluta de humanidade e virá a ser outro crime sem culpados, porque a indignação só é indignação quando deixa de ser possível fingir que não se sabe, não se vê, não se ouve, e as punições implacáveis, o investigue-se tudo até ao fim doa a quem doer, tem tudo para acabar como já sabemos.


Mahsa Amini



quarta-feira, 21 de setembro de 2022



segunda-feira, 19 de setembro de 2022

“Does it matter? Do I bother?”



Voltei ao cinema para ver “Moonage Daydream”, o documentário que não é bem um documentário, com David Bowie no princípio, no meio e no fim, nas linhas, nas entrelinhas, no visível e no invisível. David Bowie para quem gosta de David Bowie e para quem não gosta de David Bowie. É fabuloso seja qual for o ângulo. Um caleidoscópio de sons e imagens, de vida e de morte, do tempo e da arte. Obviamente camaleónico. É absurdamente bom e, não, não pode ser visto noutra sala que não numa sala de cinema. Demorei a decidir-me. Outra vez. A pandemia – não sei se ainda se pode dizer – tornou-me mais avessa ainda a espaços fechados com muita gente e, no caso dos cinemas, secou irremediavelmente a minha pouca paciência para todo aquele aparato quase sinistro e ritualista das pipocas e afins, incluindo os donos das pipocas independentemente da idade e do género. Estive quase quase a levar máscara, mas, escolhi a última sessão, fui espreitar os lugares ocupados antes de comprar os bilhetes e imediatamente antes de sair de casa, e, no total, éramos três cadeiras ocupadas: acabei por refrear a paranóia. Acabámos por ser cinco numa sala com mais de 400 lugares – o que também não deixa de ser espantoso –; e ninguém comeu pipocas.


domingo, 18 de setembro de 2022

 

Conta-me. Dos caminhos cruzados onde os nossos silêncios se encontram. Da saudade inacabada, do fogo lento da ausência, punição redenção quarto escuro geada, e o canto da maré cheia quando a noite se encerra numa solidão de túmulo onde batem todos os sentidos e a esperança se despe dos excessos da promessa, até que o amanhecer se levanta e as cinzas se desvanecem no rubor da aurora. Conta-me.


sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Move-se com o roçagar áspero do voo das traças contra a luz baça dos candeeiros de rua. É velha, muita velha, de uma idade corrupta, sem a solenidade do Tempo e da Memória, e tudo nela me repugna, a pele encarquilhada e lívida, o cheiro acre, fermentado, a voz num assobio agudo como o silvo dos répteis. Mas é, sobretudo, o assombro com que me olha; com a devassidão da cobiça. Detesto-a, detesto-a. Torna-se-me insuportável. 

Distrai-me o ressoar lamuriento do vento nos tubos de aço do andaime em frente à Igreja, um colossal corpete de varas metálicas amparando-lhe a ruína de séculos. O ar sabe a penitência. Sexta-feira de cinzas. 

Volto o rosto e já não a vejo, sumiu-se numa nuvem de agoiros, como as bruxas dos contos que não se contam agora. Ainda a detesto.


"Governo decreta três dias de luto nacional pela morte de Isabel II"


Portugal é uma piada. Das más. Não se ria se chore.

sábado, 10 de setembro de 2022

"Tutti li miei pensier parlan d’Amore"


Vita Nuova
 
Dante

sexta-feira, 9 de setembro de 2022



Verde, Amarelo, Decadente

Mantenho desde passado Março uma aposta (mais ou menos) com uma amiga brasileira: ela garante-me que Bolsonaro sairá democraticamente pelo seu pé se perder as próximas eleições no Brasil, e eu garanto que não, que Bolsonaro ensaiará o seu 6 de Janeiro, com consequências talvez mais trágicas. E ela, a minha amiga, que eu sei que há-de apoiar Bolsonaro pelo menos até ao acto de votar (embora ela nunca chegue a assumi-lo frontalmente – coisa a que, evidentemente, não está obrigada), pergunta-me que faria eu se me visse confrontada com a decisão de escolher entre José Sócrates e André Ventura. Não é muito fácil, de facto, embora eu veja Sócrates como mais patife que Lula e Ventura como menos cretino que Bolsonaro. Além de que os brasileiros têm outros candidatos à Presidência do Brasil; talvez entre um corrupto como dizem ser Lula, um energúmeno como eu digo ser Bolsonaro, e outra criatura qualquer, outra criatura qualquer não fosse pior opção.

Não sei quase nada das outras criaturas que se candidatam. Ainda arrisco um “então e o Ciro Gomes?”, mas devo ter dito uma besteira de todo o tamanho, porque a minha amiga ficou roxa, “outro corrupto?”, vociferou, e se calhar também é, sei lá eu.

Claro que, tudo isto, foi antes do dia de ontem. Anteontem, este texto ficou pendente.

Bolsonaro não é "Trump sem a escolaridade obrigatória", como gracejou, uma vez, Pedro Mexia: ao lado do presidente “imbrochável”, vocábulo magnífico, Trump começa a parecer um tipo quase decente. Ver Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa, acompanhar, sorridente, aquele circo é bastante penoso. Havia mesmo necessidade?

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Dos Entardeceres que bastam...

... já o celebrava o poeta.



Judite


Judite Decapitando Holofernes, Artemisia Gentileschi

Fui rever a história de Judite, de quem o Papa Francisco gosta por ser "uma mulher inteira”, “capaz de cortar a cabeça ao inimigo”. Maria, a Virgem, vem em segundo lugar. Fica com Maria, mas já é tarde. Não admira que lhe chamem herege. 

Ocorrem-me dois ou três sítios para onde me sentiria tentada a enviar em missão uma Judite. 

Se me perguntassem agora mesmo com quem gostaria de jantar hoje à noite? responderia com o Papa Francisco, e não é pela Judite nem pela Virgem Maria. É apenas por Francisco – ou Bergoglio, nunca sei onde acaba um e começa outro – ser um conversador apaixonado e apaixonante, magnético, desconcertante. 

Nada disto abona a favor da minha coerência – essa virtude tão exaltada pela gente prenhe de lisura, que nunca erra nunca prega nunca aponta –, deixar-me deslumbrar assim pelo representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana. Há anos que nada me liga à Igreja; passei a vê-la como um organismo obscuro, hipócrita, mais do que qualquer outra coisa, e enoja-me tudo o que se sabe e o que se desconfia sobre os criminosos abusos sexuais sobre as crianças à sua guarda. Se existir esse Inferno bíblico, desejo que esses homens de Deus lá apodreçam, os criminosos e os cúmplices, pela acção ou omissão, numa putrefacção eterna perpétua infinita, sem redenção nem misericórdia, não sem antes padecerem agonias idênticas nesta vida pela justiça da Lei. 


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

"A palavra e a pele
em uníssono pedem
que lhes pegue"

David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Não saberia o que fazer com um blog “popular”. A ideia de uma legião de seguidores, e adoradores, é tentadora para muitos, mas não para todos; desde logo, não para mim. O que não é exactamente o mesmo que assumir ser-me indiferente que haja ou não haja quem se faça presente e me empreste do seu precioso tempo, aqui e ali no meu email: não é. Se fosse, manteria esta página oculta a motores de busca, acho que é assim que se diz. 

Não passa aqui muita gente, mas passa aqui gente de quem gosto muito. Diria que me basta, mas na verdade é mais, porque é mais do que suficiente e sinto-me bastante grata por isso: por voltarem; mesmo quando não estou, mesmo quando não estive. Obrigada, é o que quero realmente dizer.




 


Dera Allah Yar, Pakistan 

Photograph: Fida Hussain/AFP/Getty Images


Salman Rushdie

O primeiro amuo sério – a sério! – que tive com a minha irmã foi a propósito d’Os Versículos Satânicos: eu tinha acabado de ler o livro, fascinava-me (talvez não seja o melhor verbo) tudo aquilo de uma forma que eu não sabia ainda dizer, inclusive a fatwa – era uma miúda na altura, parecia-me coisa acabada de sair das páginas das mil e uma noites.

Tanto contei que (aparentemente) encantei, e uma amiga da minha irmã pediu-lhe que mo pedisse. Emprestei-o e nunca mais o vi; penso que à amiga também. Não sei se foi quando decidi não voltar a emprestar os meus livros a ninguém, mas é verdade, não empresto os meus livros a ninguém: se for alguém que mereça, ofereço um novo exemplar. Por coincidência, precisamente, tinha voltado a comprar para mim um novo exemplar de Os Versículos Satânicos no início deste ano. Não queria acreditar quando soube do atentado contra Salman Rushdie; não por duvidar dos fanáticos, nunca duvidar dos fanáticos, mas por tudo o resto, a idade do rapaz, a facilidade com que levou a cabo o ataque e, sobretudo, o tempo que separa aquela extraordinária condenação à morte desta quase execução. Só não falo dos urros de embrutecido êxtase dos que celebraram o quase assassínio, porque tentar racionalizar o absurdo talvez seja mais absurdo ainda.

Salman Rushdie vem recuperando do bárbaro ataque, e ainda bem. Quase tive um acesso de ciúme e soberba, como Taika Waititi com a febre recente de Running Up That Hill (também gosto de Running Up That Hill, por sinal) e os novos estranhos fãs de Kate Bush – mas quem são estes fedelhos, que descobriram Rushdie agora e correram a comprar-lhe O livro, a carpir as suas dores, sem fazerem ideia da obra (ou do homem, mas sou quase sempre mais pela obra)? Para me redimir, recomecei os versículos, deixei Quichotte na linha de sucessão e pus na lista de compras Os Filhos da Meia-Noite. É imperdoável que nunca tenha lido Os Filhos da Meia-Noite. No fim de contas, também eu sou uma fedelha.

De resto, o jejum prolongado de actualidade requer, como o outro, moderação na hora de ser quebrado. Ainda convalesço.