segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Inquietude

Talvez não tenha sido um acaso, lembrar-me do homem do café. Aquele que dava vida aos restos negros, aguados, que ficavam no fundo, no fim daquele primeiro momento de prazer. Findo aquele instante, breve para quem olhava sem ver nada, deitava a chávena sobre o pires, inclinando-a com a delicadeza firme e apaixonada que guia a mão dos artistas. Com um pincel fino, muito fino, despia com amorosa minúcia o acidental excesso tombado no corpo branco da pequena chávena de louça, e desenhava, num caderno de argolas, o que os seus olhos admiravelmente anteviam naqueles restos de café espesso, inerte e frio ainda há pouco, vivo agora, torrencial, enchendo de desejos encarnados as páginas brancas e lisas do bloco.

 

Ele sabia que eu o observava. Em silêncio inquieto. Pasmada diante daquela imensidão de mundo que cabia e, porém, vazava do caderno de argolas.

 

Embalada por recordações antigas, descobri-me a rever fotografias de outros tempos. Das que revelava, ainda, antecipando essa mesma ansiedade inquieta do desconhecido. Consumida de vontades inadiáveis, sim, mas sem a insipiência precisa do rigor digital de agora.

Organizava-as em álbuns. As fotografias. Inventários de capa dura e páginas decoradas com bolsinhas de plástico sobranceiras às linhas rectas onde vertia, deslumbrada, o meu encantamento pelos dias passados.

Voltei a passar as mãos pelas folhas. Senti o cheiro das memórias. Deixei-me tomar pelos encantos que imortalizei a cada época, a cada página, em frases simples, tão simples, de uma ingenuidade tão completa e eloquente que quase me desconheço. Ou talvez não. Talvez me reencontre, apenas, entre essas recordações. “Pareces una niña, es que te encanta todo!”.

E encantava-me. Encanta-me, ainda, não sendo já tão menina. As rugas dos rostos que se cruzam comigo, e os sulcos da terra que me sustenta e me embala. Sem pressa. O sussurro das vozes carregadas pela brisa ansiosa e meiga, a que ofereço a face, rendida, para que me mime e me acalente. As montanhas soberbas, escarpadas, arrogantes como a vida que se vive sem amarras, ao sabor dessa gente que descobrimos sem querer e sem pedir; e sem pedir nem querer nos preenche os sentidos com a mesma avidez sem aviso que recordo quando rio. Quando choro. Vou procurando o equilíbrio no tempo que roubo para mim, resgatada entre os instantes em que me ouço. Como ouço as preces dos pássaros. E a sofreguidão do vento, rouco, que me agarra e me confunde, que me sopra ao ouvido segredos que não ouso descobrir.

Li e reli, vezes sem conta, perdendo-me, encontrando-me, absorvendo cada palavra como o ar que me falta por momentos.

 

Recordei rostos queridos, passados, que a Morte apressada nos seus insondáveis caprichos, resolveu levar sem aviso nem demora. E dou por mim a pensar, tonta, que o homem do café talvez desenhasse para mim. Às vezes. Perturbando o meu sossego, sem que o pudesse imaginar.