domingo, 31 de maio de 2020

George Floyd

Um homem foi executado, ao vivo e em directo, por um polícia. Ouço. Leio. Não fui capaz de ver o vídeo e não consigo ver a fotografia do caçador subjugando o seu troféu sem um misto de horror, náusea e uma raiva em crescendo que me esforço por engolir, para não ceder ao mesmo ódio. Não sei quando é que voltámos a odiar-nos tanto. Tão intensamente e com tanto desprezo pela diferença e, sobretudo, pela verdade. A discussão cedeu lugar à fúria descontrolada, surda, colapsou ao peso esmagador da hostilidade insana. Não é novo; estávamos, apenas, esquecidos, no conforto do nosso admirável mundo ocidental, alheios às atrocidades das guerras alheias. Os corpos esfrangalhados que nos entram em casa pela TV ou à boleia das páginas dos jornais pareciam-nos demasiado longe para que lhes concedêssemos demasiado direito a incomodar-nos. Eventualmente, o tempo de vociferar meia dúzia de sentenças indignadas, e a vida continuava. Entretanto, o mundo foi-se alvoroçando e não demos por isso. Ou não quisemos. Fingíamos ser civilizados. Deixámos que o ódio medrasse, alimentámo-lo com a nossa indulgência, conivência, às vezes, exigindo pouco da sociedade e do poder político, permitindo o abuso, cedendo espaço à corrupção que oportunistas e populistas trataram de abocanhar, fingindo-se cavaleiros de valores tradicionais que servem para tudo e o seu contrário, dependendo a quem (ou quanto) vale a tradição. Não sei se foi assim que chegámos ao assassinato de George Floyd, servido ao estilo reality show macabro. Nem sequer é a primeira vez. O mal voltou a ser aceitável. Culpa das vítimas, claro, que continuam a pôr-se a jeito; tardam em aprender. Entretanto, li esta esta crónica de Ferreira Fernandes. Sim, o racismo estará a ser filmado, não a piorar, necessariamente, não sei, pertenço a esse grupo de gente que, dificilmente, veria o seu pescoço debaixo do joelho de um polícia, asfixiada até à morte, mesmo que tivesse sido apanhada em flagrante no crime de pagar uma conta com uma nota falsificada de 20 dólares, parece que disso era suspeito o homem assassinado. A América está acorrentada, a ferro e fogo, com um presidente irado contra um vírus que ameaça implodir o seu império – seu, dele, de Donald Trump, que só tem interesse na parte da América que lhe preste culto, está-se nas tintas para tudo o resto. São todos boa gente se o bajularem. Caso contrário, são uns proscritos. Trump dixit.  Isso sim, independentemente da cor, religião, ou género, que até os cretinos têm princípios, como se sabe.

sábado, 30 de maio de 2020

E os milhões de Bruxelas?



Para já, ainda não há. São apenas um processo de intenções que não colhe grande simpatia entre alguns dos Estados-Membros. Os frugais não querem sustentar os vícios dos, outrora, pigs e, depois, há alguns que se esforçam (ou fingem, toda a gente sabe como, às vezes, é preciso) por encontrar pontes de entendimento e, no caso em apreço, recuperar alguma da nobreza desse projecto europeu de que beneficiam até (às vezes, principalmente) os que o desprezam com esmerado nojo.
Dito isto, que não interessa nada, tendo a concordar com o Miguel Sousa Tavares, meio a sério, meio a brincar: e “uma união dos países do Sul da Europa mais os do Norte de África, e os ricos que fossem à sua vida. A primeira medida que a “minha” União faria era instituir um imposto altíssimo a qualquer cidadão dos ricos do Norte que quisesse entrar no Sul. “Querem vir ao Club Med, ver o sol, embebedar-se nas nossas esplanadas,querem ver se somos infelizes? Paguem, paguem caro!”. O que também não interessa nada. E, nada por nada, até há um nadinha de verdade quando nos acusam de mal-empregar dinheiros de Bruxelas. Sabemos que a memória é curta, mas, se fizermos um esforço, chegamos lá. Por exemplo, à proliferação de cursos de formação sobre coisa nenhuma, na proporção de taxas e tachos a distribuir, mais os quilómetros de auto-estradas redundantes e vazias cuja inutilidade o Estado se encarrega de compensar na forma dos nossos impostos, e por aí fora, sem esquecer os comboios e respectivas linhas e os demais et ceteras com que Miguel Sousa Tavares – hoje deu-me para isto – entreteve, há anos, uma amiga estrangeira, no correr duma viagem, não sei se reais, se imaginadas. A viagem e a amiga. Já o absurdo que ali se descreve ali é bastante real. De modo que, se realmente chegarem milhões de Bruxelas, a ver se, desta vez, os gastamos menos pornograficamente, e não me refiro às mulheres do senhor Dijsselbloem. De resto, também concordo com a generalidade do que se escreveu aqui (e eu a dar-lhe). E é bom que comecemos a ser mais exigentes com os políticos que nos governam e que gerem o nosso dinheiro, se não queremos continuar a ser chamados a pagar os vícios do(s do) costume. Dizem que somos um povo manso, mas, até os mansos têm o seu momento de revolta e, normalmente, tende para um lado mais sinistro.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Fontes de Inspiração


Tropecei nisto por acaso. Nem sou grande fã, mas foi um acaso feliz no meio de um imenso caos que parece disseminar-se com um erre-tanto-faz maior do que o do próprio vírus que nos tem a vida, ou em suspenso, ou em modo asséptico-virtual e, francamente, não consigo encontrar-me em nenhuma das formas. 

Agradeço aos que ainda conseguem ensaiar alguma normalidade, velha, nova, híbrida, é-me indiferente, desde que resista ao escalar do ódio que cai como um manto espesso e viscoso e parece agradar cada vez mais.

domingo, 24 de maio de 2020

Maria Velho da Costa

E daí?




“Primeiro a Bíblia, depois a Constituição. Dos quatro livros que Bolsonaro tinha em cima da sua mesa, no seu primeiro discurso de vitória, a partir de sua casa e através das redes sociais, a Bíblia mereceu o primeiro lugar. “O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, haveria de repetir e reforçar.
Bolsonaro presidente falou de respeito pela Constituição brasileira, pela democracia e pela liberdade. Bolsonaro candidato tinha falado, com saudade, da ditadura militar, das virtudes da tortura e da obediência que as minorias devem às maiorias, entre outras coisas.  Entre os que apoiaram o capitão e que rejubilam, agora, com a eleição do mito, há, creio, dois tipos de gente: os que querem, realmente, sangue, e anseiam pela exterminação implacável de todos os vícios e os que, a coberto de um enorme desespero e impotência, viram no Messias o único caminho para reverter a situação dramática em que o Brasil mergulhou. Para estes, do que Bolsonaro diz, nem tudo se escreve e, por isso, desvalorizam o discurso mais extremo de hostilização dos negros, dos homossexuais, dos pobres e das mulheres.
Bolsonaro saiu à rua, mais ou menos, para agradecer a Deus e aos brasileiros a sua eleição. Deram-se as mãos e rezaram. Afinal, “essa é uma missão de Deus”. Bolsonaro lê o discurso de vitória.  “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. E a exultação da verdade arranca um ámen da boca da recém primeira dama, mesmo ali ao lado, com os olhos postos no marido e no céu. Deus é mesmo brasileiro e voltou a descer à Terra pela mão de Jair Messias Bolsonaro.
O novo presidente do Brasil foi eleito pelos seus pares. Apesar de tudo, não me parece que seja uma vitória baseada, apenas, em notícias falsas. É preciso fazer uma reflexão mais profunda. A confiança das pessoas nas instituições democráticas está profundamente abalada e é impossível continuar a olhar para o lado, chamando de ignorantes, ditadores e fascistas todos os que procuram alternativas radicais.
O Brasil elegeu um mito. E, agora? Agora, esperemos pelo melhor e façamos todos um exame de consciência.”


Fui reler o texto que escrevi em Outubro de 2018, depois da vitória de Bolsonaro nas presidenciais brasileiras. Deixo-o ali, como interlúdio para o que se me oferece dizer, depois de ter ouvido a verborreia de estrume, literalmente, com que o capitão encheu os ouvidos dos seus (a bem ou à força) ministros numa espécie de reunião de Estado. E o que se ouviu de alguns dos seu ministros. Uma classe. Em vários sentidos do termo. Fica aqui a gravação, porque também é (in)digno de ser ver.



É que eu estava enganada. São mesmo ignorantes, ditadores e fascistas todos os que procuram alternativas radicais. As dúvidas começaram a dissipar-se depois da absolvição de Donald Trump, esse outro enviado, empalideceram com o “E daí?” do Messias face ao avolumar da tragédia e, esta semana, sucumbiram sem regresso diante do discurso (se lhe podemos chamar assim) histérico de um homem tresloucado, apostado em impor a sua vontade a qualquer custo – a vida que seja, desde que não a sua – e a pilhar o Brasil para satisfazer os seus delírios. Não é a corrupção do PT que preocupa Bolsonaro e o seu séquito. Ou melhor, é. Mas não por causa da corrupção. Se for a sua não há qualquer indecência, pelo contrário. Se puder favorecer um filho, vai fazê-lo, sim, e daí? Se tiver que trocar ministro, vai trocar sim, e daí? Se tiver que interferir, vai interferir sim, e daí? Vai escutar atrás da porta, claro, então, a filha depois engravida e como é que fica? A sério. É surreal. 

Já tive algumas discussões com pessoas de quem gosto e que respeito sobre as intenções do presidente do Brasil. O clássico. Era impossível continuar a votar em gente corrupta como o PT; o que ele diz não é para ser levado à letra; ele até quer fazer, mas o Senado não deixa. E, claro, a descontextualização. Dizer a uma mulher que não merece ser violada por ser demasiado feia e que o problema da ditadura foi não ter matado mais uns quantos milhares, são afirmações que carecem de contextualização.
É preciso tentar perceber, e tentei. Se há (ou havia, até agora) gente séria a defender energúmenos como trumps e bolsonaros, é necessário escutar os argumentos, atentamente e sem falsos moralismos. Já se percebeu aonde nos leva tentar o contrário. A questão é que já não há argumentos credíveis que sustentem a tese ou a boa-vontade de alguns dos seus apoiantes. É claro que não é o combate à corrupção que move estes homens de Estado, desde que Estado lhe preste vassalagem. Nem qualquer espécie de luta anti-sistema, excepto se o sistema não lhes (leia-se "os", é mais exacto) servir. O que os move é a ambição mais selvagem, mais abjecta, porque pretendem o mesmo que todos os ditadores inebriados de poder: obtê-lo a todo o custo, usando de todos os ardis, mentindo descaradamente, desdizendo-se sem corar, sem um arrepio de arrependimento, insultando e escarnecendo de todos os que ousarem contrariá-los. A tenebrosa diferença é a possibilidade cada vez mais real de chegar o momento em que já nem precisem de mentir ou fingir. Sim, que se F#dam todos os outros, os pobres, os doentes, os velhos, os bandidos que não nos venerem, todos excepto os meus, digo-o, defendo-o e instituo-o com o poder de herdei de deus e dos homens, e daí? E o "e daí?" parece fazer o seu caminho com uma tranquilidade assombrosa, implacável. Quanto faltará para o "e daí?" já não causar qualquer sobressalto que mereça ser dissimulado, nem sequer na forma tentada?

Mais acima, Donald Trump ameaça abrir as igrejas à revelia dos governadores, se necessário for. Não é muito claro como o possa fazer, mas isso não interessa nada, como se sabe. Trump é outra entidade omnisciente, omnipotente, e também não admite contrariedades, não restam dúvidas. A explicação do presidente dos EUA para a necessidade de abrir as portas dos templos é simples: a América precisa de mais orações, não de menos. Sim, Donald Trump é capaz de ter razão, já dizia o ex-ministro Mandetta, o melhor é rezar. E até ele se deve ter arrepiado ao ouvir o gémeo dos trópicos. Pelo nível reles do vernáculo, quero dizer. Afinal, Trump sempre vai parecendo alguém com, pelo menos, parte da escolaridade obrigatória, como lembrava quase assim Pedro Mexia, num dos Governo Sombra, ainda não(?) se imaginava o que por aí vinha.

Entretanto, fica a questão: "como é que chegámos a isto"? E aonde iremos parar, sendo quase certo que, pelo menos, nos EUA, Donald Trump dificilmente deixará de ser reeleito?

sábado, 23 de maio de 2020

Novo Banco, Velhos Vícios


Nem sempre subscrevo as opiniões de Daniel Oliveira. É o bom de ainda vivermos em democracia: podemos concordar (é o caso), discordar, sem pertencer a lugar nenhum onde nos queiram confinar. Certo, uma excepção, talvez, para aquilo a que chamamos lar, que será sempre mais do que casa. Adiante. Referia-me ao juízo sobre o Novo-Velho Banco, esse que apelidaram de Bom e, ainda assim, ninguém quis, até o Governo oferecer as carnes tenras em saldo e aceitar roer os ossos, se sobrassem. Se sobrarem. 

Já me explicaram que nada poderia ter sido feito de maneira diversa. Desde o princípio do fim que era sobejamente sabido que os abutres – chamam-lhes assim e diz quem sabe que não será por acaso – tudo fariam para rapar com gula o fundo da resolução, resolutamente, sem remorsos nem espasmos de consciência, essa coisa de que apenas padecem os idiotas. E que, se não fosse assim, não seria de outra maneira, ninguém se sentaria no banco, mesmo no Bom, que, do Novo, já ninguém se fiava, salvo-seja, ainda o Mau mal abalara. E que não há direito a qualquer escândalo no pagamento de dividendos a gestores que gerem coisas – parece que instituições bancárias e outras de igual nível – que somam prejuízos como quem come cerejas, uma atrás da outra, sem palavra que lhes valha, mas dotados de competente génio, capazes de progressos admiráveis que não se convertem instantaneamente em ouro (excepto para os próprios), mas que cumprem objectivos como quem toma hóstias: com devoção e fé num bem maior, ou Bom, que se aguente. E aguenta. Haja fundos que nunca falham a quem percebe da coisa. Não merecem, portanto, ver as suas expectativas defraudadas, ora essa. Exigir o contrário, pensá-lo apenas, é sacrilégio populista. Não se admite. E o que dizer do aumento de 75%, mais coisa, nunca menos coisa, da remuneração base desses competentíssimos gestores de topo, (o que se podia fazer com isto, e não me refiro ao dinheiro) logo ali ao lado dos muitos milhões de euros de prejuízos? Nada. Não se pode. Pior que o populismo, só a inveja. Ou o asco, de vermos como nos deixamos ludibriar sem um arrepio. “Nos”, nós, todos. Portugueses, Povo, População, Estado. Menos aqueles que também chafurdam no poço fundo das várias resoluções que vão alimentando a orgia do gozo que é fazer bons negócios com timbre de estado, assim, em minúsculo como apraz a quem deve dar de mamar, perdão, de comer, e calar.

Pode ser tudo muito legal, inevitável, o mal menor, mesmo que nos tenham garantido que o Mau já não pesava na balança da afronta. Pode ser. Mas, como muito bem escreveu Ana Sá Lopes, não deixa de ser um escândalo. Fosse isto um penalti roubado a um dos outros donos disto tudo - ou um frango, mas dos mal metidos em baliza alheia - e era ver a indignação vertida em horas e horas de programas de comentário e análise

sexta-feira, 22 de maio de 2020

(Des)Encantamentos



J.K. Rowling escreveu um tuite onde confessa jamais ter pousado os pés, os olhos que fosse, e não foi, na famosa e fabulosa livraria Lello, no Porto, onde viveu durante, ainda não percebi se dois se dez anos; é irrelevante para o mito que se estraçalha. E, depois de espetar a faca, à traição, torceu-a com deleite, maquiavelicamente, afirmando que esse espaço, com que se maravilha quem lá entra pela primeira e por todas as outras vezes, “não tem nada a ver com Hogwarts”. Diz-se que os fãs, desenganados, lambem as feridas, aturdidos com a má nova. Há, inclusive, quem, em agravado e pesaroso negrume, confesse ter visitado o Porto com o propósito único, mágico, de peregrinar naquela, até ao golpe de imisericórdia, exuberante e mítica livraria e, agora, coitados!, vêem-se rasgados do laço que os unia ao imaginário de galgar escadas irrequietas, rangendo à vontade de treliças endiabradas, embalando degraus de encantamento maciço varrido, num ápice, que é como quem diz, num tuite, a frio, para debaixo dos tapetes que também não existem, como convém num mundo de faz-de-conta, mas isso já se sabia.

Não sei o que me atormenta mais. Se o desgosto de saber que Harry Potter nada deve à livraria da minha juventude, ali mesmo ao lado da velhinha Faculdade de Ciências (já não) onde passei tantas horas de júbilo e outras de dor, se o facto de perceber que alguém pôde viver no Porto, ser casada com um local, aí gerar e parir uma filha, e nunca ter entrado na Lello & Irmão. Por acaso até sei. Do tormento maior, digo. Ainda assim, não se explica tal injúria.

A Joanne Rowling não fará falta o tempo que não passou na magnífica livraria. Afinal, sempre chegou a escrever no Majestic (tomai lá uma aspirina, seres incautos, e comei, ou bebei, ou o que a vossa fantasia ditar) e imaginou, até, um ambicioso e maquiavélico Salazar Slytherin, encantador de serpentes, ou lá o que é. E a Lello & Irmão permanecerá, igualmente, esplendorosa, sem necessidade de artifícios nem encantamentos outros que não os que já a elevavam à categoria de uma das mais belas livrarias do mundo. Sabemo-lo todos, as gentes do Porto, ainda Potter não era Potter, nem precisava, ao contrário de Rowling que não era Rowling e fazia-lhe falta. Talvez eu possa voltar a visitá-la, agora, à livraria única, sem filas de aspirantes a feiticeiros despojados da arte de pasmar com a realidade que se desnuda diante dos seus olhos, em lhes faltando a epístola e varinhas de condão. Como os eterna e permanentemente insatisfeitos, incapazes de admirar a bela amante que se lhes oferece, real e sem subterfúgios, porque se lhes tomou a mente de delírios imaginários e imaginados. Há enguiços que não se quebram, e bruxos que não aprendem.


E, só para que conste, mantenho as minhas dúvidas sobre se a origem das escadas de Hogwarts se fica a dever exclusivamente à imaginação de Joanne...

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Máscaras (Anti)Sociais



O trocadilho do título é fácil de fazer. Mais difícil é gerir o equilíbrio que o trocadilho nos atira à cara, todos os dias, descarado, ali mesmo, lado-a-lado com a máscara, no distanciamento social possível, desejado e desejável. Redentor, como se (des)espera.
Enquanto puder, recusar-me-ei a usar uma máscara elegante, bonita, estilizada, colorida, às florzinhas, com receio de que a anormalidade me leve mais do que o estritamente necessário para atravessar a tormenta. Aguentarei o desconforto, as marcas na cara e a dor miudinha atrás da orelha latindo queixumes abafados e monocórdicos. Será sempre nada ao lado do esforço de outros.

domingo, 17 de maio de 2020

Ana Gomes


Acaba de largar uma bomba. Outra. Goste-se ou não do estilo, Ana Gomes já provou do que é capaz. 
É uma boa notícia para a democracia e, possivelmente, uma dor de cabeça para António Costa. É bem provável que o país precise de ambas.
Além disso, vai ser muito interessante ouvir que causas destapará Júdice, que loucuras congeminará até terça-feira, agora que se converteu numa espécie de entertainer com laivos de aristocrata, da SicNotícias. Já ali ensaiou a rábula da Ana e do André, entre gémeos e siameses, agastado com as críticas da mulher malcriada e perigosa para a democracia, na sua doutíssima opinião. Em elegância, já viu melhores dias. E não sei por que razão me terei lembrado disto.

sábado, 16 de maio de 2020

É o bicho. Foi(-se) o bicho.




Desses que mexem, agora, com a nossa (a)normalidade. O do agoirento vírus do nosso confinamento e o do Bruno Nogueira, na forma de um programa de que só tive conhecimento a título póstumo. Inacreditável. Às vezes, parece que vivo uma (e numa) realidade paralela.

Bruno Nogueira não faz parte do meu imaginário humorístico. Aparentemente, nem sequer da minha realidade do género, desse ou de outro. Ouço-o, ocasionalmente, no carro, quando sintonizo a TSF, brandindo o seu Tubo de Ensaio, que também já teve data de termo, mas lá vai sobrevivendo e bem. Rio, aprecio a inteligência, o trocadilho infame, por vezes, e a coisa fica por ali. Não sou particularmente sensível ao humor feito de vernáculo; porque não, simplesmente, sem melindres, falsos pudores, muito menos, apopléticos assomos de escândalo. Mas tal não justifica que nem tivesse, sequer, ouvido falar do programa. Ou lido. E não faltam, percebi depois, notícias sobre o bicho, inclusive, em jornais que consulto a diário. Enfim, o confinamento terá também razões que a própria razão desconhece e, possivelmente, nem aprova. E eu não tenho Instagram
O facto é que desconhecia por completo que, durante cerca de dois meses, todos os dias, a partir das 11 da noite, Bruno Nogueira dava início a um live – parece que é assim que se diz por lá. Também me dizem que perdi horas e horas de saudável e merecido entretenimento, material em bruto de um "caso de estudo", gargalhadas redentoras, apaziguadoras e tudo o mais que, inadvertidamente, deixei que me escapasse. Ainda não me dei ao trabalho de avaliar a real dimensão da tragédia, mas, comecei a penitenciar-me assim que esbarrei com Alexandre Farto, o Vhils, a braços com a sua desassombrada homenagem a Zeca Afonso gravada à força do punho e da mente do artista numa parede da sua própria casa, a união perfeita entre o talento e a fúria dos romances que preenchem, de tempos a tempos, a nossa ausência mundana. Afortunadamente.

Nesse mesmo dia, perdi outro momento generoso: aquele em que Eunice Muñoz decidiu participar na construção da memória que há-de unir, por anos vindouros e mais amenos, espero, os milhares de fãs desse caprichoso bicho que, não só ainda mexe, como promete deixar sequelas. Afinal, como o seu gémeo mau. Mais ou menos, que, desse, poucos sentirão a falta.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Das mortes insuportáveis e das notícias a condizer.


Há-de ser sempre incompreensível para a generalidade das pessoas os motivos que levam um pai ou uma mãe a cometer tal acto de violência sobre um filho. Não raras vezes, pelo contrário, há vizinhos e amigos a garantir a pacatez, a afabilidade, a normalidade, enfim, dos supostos agressores. Percebe-se, por isso, a curiosidade – algo mórbida, eventualmente – que possa suscitar a notícia (infelizmente, mais uma, até à próxima) da morte de outra menina, ao que parece, às mãos do pai. O que se dispensava era a pornografia jornalística em torno do tema, com directos em cima de directos para repetir ad nauseam os contornos da tragédia, tentativas de esclarecimento sobre o exacto local da morada dos suspeitos, conferências de imprensa com direito a perguntas que nada de importante visam aclarar para a opinião pública, apenas servir o espectáculo mediático e saciar a sede dos que gozam com a degradação da condição humana; em ambos os casos, uma indecorosa usurpação e manipulação do direito a informar e a ser informado.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Tele(sobre)viver


Fiquei em casa assim que fecharam as escolas. Por questões de trabalho, algo contrariada, e com a sensação de que o caso não era para tanto, embora fosse bastante mais do que a gripezinha que se fez refrão dos que cospem as entranhas contra a mansidão do povo. Afinal, já se desenhava a lágrimas a tragédia em Itália, as mortes iam ganhando contornos alarmantes e, logo no início de Março, ampliaram-se, aí, as medidas da quarentena que se tornou, subitamente, o eixo do mundo. Mas resistia. Sem grande escolha, na verdade. Sem os habituais pupilos a quem explicar presencialmente os meandros das ciências exactas e inexactas e o contrabalanço das regras por que se regem os labirintos da educação, por força do vírus e dos seus desígnios não fui capaz de prosseguir adiando os dias de cárcere e dos silêncios com que me bastava quando eram outras as circunstâncias.
Entre o teletrabalho, a telescola, a televigilância, a telecensura, enfim, esta telexistência insalubre que nos invadiu os dias e nos assoberbou de desassossego e histeria, limitei drasticamente o número de saídas à rua. Uma vez por semana para compras no sítio de sempre, onde, com a excepção do álcool, das luvas que usei toda a minha vida emancipada, e a outra inclusive, e do desinfectante de que me fiz aliada contra bactérias, ainda este vírus não era vírus, nunca vi faltar nada, sem nunca ver, porém, carrinhos de compras esmagados pelo peso do apocalipse anunciado na forma de açambarcamento (até a palavra é reles) de bens de primeira e última necessidade. Talvez seja uma questão de sorte, ou da hora do dia a que vou, manhã cedo, ao abrir da normalidade que resta e se arrasta.
Mas, falava das saídas escassas. As das compras, por necessidade, e, mais raramente, as do lazer possível para manter uma réstia de sanidade.

Ainda não consegui habituar-me ao distanciamento que nos obriga a fugir dos outros. Constantemente. Ao trocar de passeio à menor suspeita de que nos cruzaremos com alguém a menos dos 2 metros higiénicos, redentores; a ser olhada com arreganho soberbo se não tomo a iniciativa de me afastar o suficiente para manter a nova ordem.
Esta náusea com que aprendemos a medir-nos sem pudor, a diário, permanecerá para lá deste tempo, ou o medo que nos despedaça a vida impedir-nos-á, também, de colar os cacos do que sobrar de nós e dos outros?
Pesa-me esta desconfiança surda, palpável. Temo-a mais que ao vírus.

Circunstâncias Sociais


Chegam, com estrondo, à caixa auto-serviço. O miúdo tenta ajudar, mas a máquina é implacável e vai resmungando bips de protesto contra a altercação da ordem pré-estabelecida pela engenharia que a comanda. A mãe exaspera-se. Uma daquelas mães cujo desespero em crescendo transparece com caprichada fúria e a dose de drama necessária para atrair todas as atenções. A assistente vai olhando de soslaio com o enfado típico de quem se fartou de presenciar dramas de mães exasperadas e outros de gravidade idêntica. 
A máquina grita - com a mãe, com o miúdo - a assistente, sem sair da cadeira, atira com um ainda não pode tirar as coisas daí, o miúdo encolhe-se, a mãe tem a máscara pelo pescoço e os nervos por todo o lado e vai rosnando contra a incompetência do filho, de todos os filhos, vocês agora não têm jeito p'ra nada, desfiando, em seguida, um rol de rosários de sentenças e agravos, até que a assistente lá se decide, finalmente, a prestar algum auxílio no resgate das verduras que mirram do lado errado do mono de metal e acrílico programado ao detalhe para lhe facilitar a vida.
Voltamos a cruzar-nos no parque de estacionamento. A mãe, agora, de máscara no sítio, já toda ela amor e doçura, de brandos modos, segurando os sacos de compras sem a menor denúncia de alvoroço de há pouco. Só o miúdo continua encolhido. Os olhos turvos esbarrando nos meus.

sábado, 2 de maio de 2020

Depois do confinamento



Pergunto-me como vai ser a vida depois do confinamento. Como irão conviver os do rebanho com os do tudo isto é um exagero, independentemente da máscara de cada um. Vamos olhar-nos de lado e mandar às urtigas o amor pelo próximo que derramámos às janelas virtuais e convencionais nas últimas, longas, semanas, ou seremos capazes de nos tolerarmos, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza que há-de vir, até que a liberdade de viver sem medo de morrer nos faça esquecer do perigo que é existir?

Às armas!



JEFF KOWALSKY/GETTY

Leio que, no estado de Michigan, nos EUA, há manifestantes armados a protestar contra as medidas de confinamento impostas, por estes dias, aos habitantes. Seria inevitável, num país onde comprar legalmente uma arma é quase coisa para crianças e onde o presidente apela, ou finge, à responsabilidade cívica às segundas, quartas e sextas, e à rebelião do povo contra os seus governadores às terças, quintas e Sábados. Aos Domingos deve rezar pela perpetuação do poder que pretende eterno. 

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Manobras de Diversão


Photograph: Jim Lo Scalzo/EPA

Donald Trump sobreviveu ao processo de impeachment com a esperada bênção dos republicanos apostados, como ele, em manter-se no comando a qualquer preço. Não se tivesse instalado o caos à custa da pandemia do século, Novembro chegaria sem sobressaltos e, com ele, a canonização do maior presidente que a América já viu e o mundo pasmou. Nem seria preciso matar ninguém a tiro, em plena 5ª Avenida. Mas, a morte é caprichosa, implacável, e o momento Fifth Avenue de Donald Trump instalou-se com aviso mas sem remorsos, e a confiança do homem de imensa e superior sabedoria começa a fraquejar. 
O pânico, como a pressa, é mau conselheiro. Para desespero do autoproclamado génio, há considerandos indespedíveis, surdos a qualquer nível de insulto, insubornáveis e pouco dotados de obediência. É a covid, estúpido, ou lá como é que se diz.
No rescaldo, à falta de melhor arma, o Presidente dos Estado Unidos da América dispara com as que podem causar mais estragos entre as extraordinárias circunstâncias que ameaçam a sua reeleição. Para grandes males, grandes remédios. Se não se pode iluminar, nem lixiviar, pode-se ludibriar. Servem-se vídeos gulosos sobre estranhos avistamentos ovnícos, com a bênção da Casa Branca, enquanto se agita com esmerada devoção a teoria do vírus chinês, agora com provas trumpistas, inequívocas, mais ou menos, como ele só, de que o bicho foi mesmo gerado num laboratório do dito território. Se não for suficiente, há-de mudar-se o estilo da figura, ou a figura de estilo, que o show, perdão, a economia, ao que parece, não deve nem pode parar. E eles andam aí, chineses ou não, a embalar o Biden, com o pérfido desejo de impedir o estrondoso sucesso da administração Trump, patifes (ainda que o sejam). O tempo é de guerra e, como não podia deixar de ser, estalou o inevitável escândalo sexual – não questiono a verdade da denúncia, aparentemente, nem sequer é verdadeiramente nova, não faço ideia, de repente, parece que todos os homens para lá dos sessenta foram, em seu tempo, num qualquer, uns pervertidos nojentos; excepto Trump, claro está, o único que se pode gabar, loud and clear, de agarrá-las por onde muito bem lhe apetecer, nada belisca a magnificência de Donald, great guy, the best, may god himself bless a sua américa.