sexta-feira, 22 de maio de 2020

(Des)Encantamentos



J.K. Rowling escreveu um tuite onde confessa jamais ter pousado os pés, os olhos que fosse, e não foi, na famosa e fabulosa livraria Lello, no Porto, onde viveu durante, ainda não percebi se dois se dez anos; é irrelevante para o mito que se estraçalha. E, depois de espetar a faca, à traição, torceu-a com deleite, maquiavelicamente, afirmando que esse espaço, com que se maravilha quem lá entra pela primeira e por todas as outras vezes, “não tem nada a ver com Hogwarts”. Diz-se que os fãs, desenganados, lambem as feridas, aturdidos com a má nova. Há, inclusive, quem, em agravado e pesaroso negrume, confesse ter visitado o Porto com o propósito único, mágico, de peregrinar naquela, até ao golpe de imisericórdia, exuberante e mítica livraria e, agora, coitados!, vêem-se rasgados do laço que os unia ao imaginário de galgar escadas irrequietas, rangendo à vontade de treliças endiabradas, embalando degraus de encantamento maciço varrido, num ápice, que é como quem diz, num tuite, a frio, para debaixo dos tapetes que também não existem, como convém num mundo de faz-de-conta, mas isso já se sabia.

Não sei o que me atormenta mais. Se o desgosto de saber que Harry Potter nada deve à livraria da minha juventude, ali mesmo ao lado da velhinha Faculdade de Ciências (já não) onde passei tantas horas de júbilo e outras de dor, se o facto de perceber que alguém pôde viver no Porto, ser casada com um local, aí gerar e parir uma filha, e nunca ter entrado na Lello & Irmão. Por acaso até sei. Do tormento maior, digo. Ainda assim, não se explica tal injúria.

A Joanne Rowling não fará falta o tempo que não passou na magnífica livraria. Afinal, sempre chegou a escrever no Majestic (tomai lá uma aspirina, seres incautos, e comei, ou bebei, ou o que a vossa fantasia ditar) e imaginou, até, um ambicioso e maquiavélico Salazar Slytherin, encantador de serpentes, ou lá o que é. E a Lello & Irmão permanecerá, igualmente, esplendorosa, sem necessidade de artifícios nem encantamentos outros que não os que já a elevavam à categoria de uma das mais belas livrarias do mundo. Sabemo-lo todos, as gentes do Porto, ainda Potter não era Potter, nem precisava, ao contrário de Rowling que não era Rowling e fazia-lhe falta. Talvez eu possa voltar a visitá-la, agora, à livraria única, sem filas de aspirantes a feiticeiros despojados da arte de pasmar com a realidade que se desnuda diante dos seus olhos, em lhes faltando a epístola e varinhas de condão. Como os eterna e permanentemente insatisfeitos, incapazes de admirar a bela amante que se lhes oferece, real e sem subterfúgios, porque se lhes tomou a mente de delírios imaginários e imaginados. Há enguiços que não se quebram, e bruxos que não aprendem.


E, só para que conste, mantenho as minhas dúvidas sobre se a origem das escadas de Hogwarts se fica a dever exclusivamente à imaginação de Joanne...