Acabara de chegar. Depois de olhar para o écran que
exibia, vagarosamente, a passagem dos números com a indicação do serviço e do
balcão, optei por esperar na loja. Queria ir à tesouraria, tinha a senha B15 e,
no momento, piscava a B6, pelo que, decidi não arriscar a saída. Tinha um livro
como companhia, como sempre que se avizinham longos tempos de espera: “Quem
meteu a mão na caixa”, da Helena Garrido, oferecido pelo meu pai. Sempre que
pretende explicar-me algo para o qual acha que não tem competências à altura, o
meu pai oferece-me um livro. Quando fiz 15 anos, ofereceu-me “Os Filhos da
Droga” e disse-me, “filha, não sei explicar-te isto de outra maneira,
por isso, lê”, e eu li; entre os protestos da minha mãe, que sempre foi
menos prática, como quem tira um penso rápido com todo o cuidado porque vai
doer, em vez de o arrancar à bruta, se vai doer de qualquer maneira ao menos
que seja expedito. Mas, isto talvez dê outra história.
Sentei-me, guardei a senha e abri o livro.
Não levava cinco minutos sentada quando uma senhora ocupa
a cadeira ao lado da minha. Só levantei os olhos do livro por dois segundos,
mas, creio que, não só sempre tive ar de boa ouvinte, como acho que isso se
nota à distância, de alguma forma. Pela enésima vez, algures nos meus tempos de
espera em serviços públicos, a senhora desata a conversar comigo, como se
tivéssemos mais do que sido apresentadas, e não era sequer o caso.
Percebo que não está sozinha. Vem com o filho, um homem
de 40 anos, desempregado há mais de cinco e que, ainda por cima, é um
pouco “atrasado”, como me dirá daí a pouco. Vai alertando o filho
para estar atento aos números, ela vê mal. É cedo, daqui a pouco já verá um
bocadinho melhor, tem que ir habituando a vista e forçando um pouco a pálpebra
e, para já, muito contrariada, deve fiar-se do filho. Sossego-a, ainda faltam
cinco senhas e eu própria vou olhando e controlando, não se preocupe.
O livro já está guardado e ouço-a dizer que já hoje fez duas dúzias de rissóis
para a patroa. Ainda não são nove e meia da manhã e não controlo o espanto, a
senhora tem, seguramente, mais de 70 anos e a pergunta salta do meu pensamento
sem eu dar por isso. “Então, minha querida, como é que não hei-de
trabalhar? Tenho 300 euros de reforma, aquele ali (aponta o filho) que não
trabalha e um marido que, olhe, é o mesmo que ter outro filho. Tenho dois
filhos, é o que é. Ainda hoje saiu para uma consulta e, olhe, nem vale a pena…”.
Fico a saber que o patrão, alemão, faleceu há dois anos, que, desde aí, tem
mais trabalho, que a patroa viaja imenso e recebe muito, com as meninas, que
quase podiam ser todas irmãs, porque são filhas de um primeiro casamento
do doutor. Mas são muito amigas dela, sente-se bem a trabalhar na
casa, mas tem tido muito trabalho e está muito cansada.
Continuo a olhar para o écran. Faltam três senhas para o
seu número. Faço-lhe saber. Já vê melhor, as letras e os números já têm forma.
O filho exalta-se um pouco, não chego a perceber porquê, ela manda-o
acalmar-se, como quem sossega um bebé, já está quase, é só mais um bocadinho.
Prossegue a narrativa. Está muito cansada. Ainda não há
muito tempo, desmaiou e ficou de cama durante alguns dias. Um caos. Mostra-me o
colo magro e seco e, de repente, o número da sua senha começa a piscar. Vimo-lo
ao mesmo tempo, chama o filho e despede-se de mim, tão lesta e precipitada como
chegou.
Fico um pouco atordoada, eu própria esgotada, e é então
que percebo que, tão preocupada com não perder a vez da senhora, deixei passar
a minha própria vez. Sou a B15 e o monitor mostra já a B17. Levanto-me de um
salto, engolindo impropérios, e dirijo-me ao balcão 1. O papelito avisa-me que
há uma tolerância de 3 senhas, pelo que, ainda não estou perdida.
No balcão, alguém está a ser atendido e há uma espécie de
porta-retratos de plástico transparente com uma advertência: “Por Favor, Não
Interrompa o Atendimento”. Não interrompo. Espero que aquela senhora saia e
aproximo-me do balcão. Mostro a senha e digo que me distraí, lamento. A
funcionária informa-me que acabou de chamar a senha B18, portanto, já passou a
tolerância das três senhas. Passa-me qualquer coisa pela cabeça e faço um
esforço para não descer dos saltos e mandá-la à merda. Percebo de integrais e
de números de complexos, de funções racionais e irracionais e não percebo da
arte de contar três senhas de tolerância. Aponto-lhe o letreiro, salientando o
óbvio, se tivesse interrompido o atendimento, ela já não teria tido tempo de
premir o botãozinho para chamar o número seguinte, tão indolentes na maioria
das vezes, tão diligente naquele dia. A mulher insiste, se chegar o B18, não me
poderá atender. Penso na senhora com o filho, no corpo cansado e seco, nos
rissóis que já preparou para as meninas ainda a manhã não acabou de se
espreguiçar. O B18 não chega e agradeço-lhe baixinho enquanto a mulher ao
balcão lá se resigna a atender-me…