terça-feira, 30 de outubro de 2018

Web Summit, Olé, Olé!

Marcelo Rebelo de Sousa dormiu pouco, como sempre, e teve uma espécie de epifania: e se eu me recandidatar à presidência da República como efeito colateral daquela doideira do Paddy de manter a Web Summit por cá mais uma década? Ou, se calhar, não…mas, talvez.

Entretanto, a determinada, quase agressiva, defensora acérrima de minorias e super-feminista deputada Isabel Moreira resolveu ocupar o seu tempo no Parlamento pintando as unhas, actividade muito mais estimulante do que ouvir atentamente o que havia para dizer sobre a discussão do orçamento de Estado. Parece que a menina foi apanhada por um fotógrafo da Reuters, para minha vergonha. A da Isabel, não sei por onde andará.

Também se descobriu que o Bruno insultou e praguejou mais do já sabíamos e, palpita-me, isso vai dar para mais algumas longas e duradouras sessões de debates televisivos. A não ser que o tema seja substituído por aquela conversa telefónica em que, suposta e alegadamente, sempre!, o Filipe aceita transferir o Rui para outro clube, por intermédio do César. Qualquer um dos assuntos é de suma importância para a sobrevivência do país, pelo que, não sei em qual aposte.

Na Alemanha, Angela Merkel despediu-se. A CDU vai somando derrotas enquanto a Alternativa para a Alemanha vai crescendo e engordando. A Alemanha aguentar-se-á. E a Europa?

No Brasil do Messias Bolsonaro uma menina posa para a fotografia empunhando, artisticamente, uma arma maior do que ela. De momento, a arma é fake. Será a intenção genuína? Infelizmente, estaremos cá para ver. Nos meus pesadelos, o entusiamo histérico dos bolsominions resvala para a demência extrema e a continência ao capitão estica-se, aos poucos e de mansinho, para a saudação nazi; em vez de um monstruoso heil hitler, um animado e carioca “aí, Bolsonaro!”

Hoje, haveria muito mais, mas não me apetece. Faço como a Isabel. Vou ali restaurar-me; tem é que ser fora do expediente, que isto, como diz o ditado, cada um tem aquilo que merece…


sexta-feira, 26 de outubro de 2018

A Inevitabilidade do Ódio?

Em tronco nu, numa (outra) manhã qualquer, Amon Leopold Göth assoma à varanda da sua casa, com vista privilegiada para o campo de concentração nazi de Plaszow. Agarra na espingarda, observa a azáfama dos condenados, ajusta a mira da arma e escolhe a primeira vítima. Pousa o cigarro e aponta certeiro à mulher agachada no chão. Assim que ela se ergue, dispara a matar. Recolhe, indolente, o cigarro pousado no muro e, entre duas passas, escolhe uma segunda vítima. Aleatoriamente, sem qualquer critério especial. Apenas porque pode e porque isso lhe dá gozo.

A violenta cena que retrata a barbárie sangrenta e insana da época nazi é imortalizada por Ralph Fiennes em A Lista de Schindler, e dispensará mais apresentações. Quem a viu, gravou-a para sempre na memória; cada um pelas suas razões, porque há filmes, ou partes deles, que teimosamente se materializam nos nossos pesadelos e nas nossas consciências quando menos esperamos. Lembrei-me dela pela alienação dos dias que correm. Já não fazem falta varandas com vista nem espingardas em riste. Substituímos as primeiras pelas páginas virtuais e as segundas pelos insultos gratuitos e carregados de ódio. Cada um escolhe o seu palanque, a sua arma, a sua vítima. Os métodos serão diferentes; os ódios serão diferentes; talvez, até os objectivos sejam diferentes. Mas deixam o mesmo rasto de aniquilação, de devastação nojenta na eliminação de adversários, políticos e não só. Só porque sim, só porque se pode. Como uns podem mais do que outros, os ódios destilam-se em diferentes graus, com diferentes requintes de malvadez e de eficácia e atingem mais ou menos alvos, de acordo com a circunstância de cada um. Das caixas de comentários aos assassínios por encomenda, da propagação de mentiras à distribuição de bombas como quem distribui rebuçados, dos comícios políticos convertidos em arenas de imberbes sedentos de vinganças, urgentes de sangue, como nos tempos dos enforcamentos sumários nas praças públicas, à apologia dos regimes ditatoriais e fascistas como solução para todos os males.

    Cada vez é mais difícil manter uma discussão séria sobre os diferentes problemas que se abatem sobre as sociedades democráticas. As pessoas não ouvem. Confundem, como diz o povo, alhos com bugalhos. Um homem insulta pública e violentamente uma mulher negra, chama-lhe feia, vaca, preta, bastarda e ouvimos dizer, e “se fosse ao contrário, também era notícia”“porque é que não deixam o homem defender-se, primeiro”? Mas, são surdos? Os americanos tinham um nome para este tipo de gente, mas não me lembro agora. Os que, numa discussão, recorrem sistematicamente à evocação de argumentos que, só na aparência, se relacionam. Uma espécie de desconversadores selectivos cujo objectivo nunca é discutir com seriedade nem, muito menos, encontrar soluções, mas baralhar, partir e dar, como num jogo de pocker.

    Nos dias de hoje, voltamos a desdenhar dos pobres, a rir dos aleijados, a humilhar os ofendidos e a insultar os inimigos. A turba pede sangue como quem pede água sob o sol abrasador do deserto. Sucumbimos ao medo, e o ódio, afoito e arguto, tomou-nos nos braços.

    Nos EUA, Donald Trump condena, para as câmaras, a mesma violência que exacerba, horas depois, no Twitter. Apela a uma América unida e tudo faz para rasgar as feridas. Hostiliza a imprensa livre porque são fakes todas as notícias que não se dediquem à promoção acérrima e acrítica da sua fantástica presidência. A melhor de todos os tempos. Apela ao respeito que não tem pelos adversários, nomeadamente, políticos. O mesmo homem que exaltou o Lock her up! de Hillary Clinton e afirmou que Obama – que nem americano era! – fundou o estado islâmico, chama, hipocritamente, à união os americanos para repudiar actos de ameaças e violência política. Já sabemos da sua coerência discursiva e não só; depende da ocasião e do interlocutor.

    No Brasil, parece que Bolsonaro tem vindo a perder pontos para Haddad, nos últimos dias. O Messias (haja ironia!) já veio dizer que só perde se houver uma fraude eleitoral, como já antes tinha dito que só aceitaria os resultados das eleições se ganhasse. Gritar ameaças, espalhar a confusão, semear a discórdia e instigar à agitação social. Sempre de forma cobarde, sem sair do conforto do sofá, porque, como se sabe, o homem convalesce de uma facada, que deve agradecer todos os dias, pela facilidade divina com que conseguiu escapar de qualquer debate político sério, mostrando tudo o que não tem para apresentar aos brasileiros.

    É o mesmo princípio. Se me convém, está tudo bem. Se não, é uma fraude. A Folha de São Paulo sucks too. Como fede tudo o que se meter no caminho destes tresloucados salvadores da pátria. Se for possível tirar alguma coisa boa desta indecente demência que atormenta os nossos dias, que seja não deixarmos Portugal refém do medo nem cair nas garras do ódio.

 

P.S. Já depois de ter publicado este post, li isto.


terça-feira, 23 de outubro de 2018

Diz Que São Polícias

Por vezes, demasiadas, a sensação de impotência e injustiça tolda-nos a razão. Acontece, mesmo aos mais ponderados. Nos tempos actuais, dominados por mentiras habilidosas e argutas que os intelectuais modernos gostam de chamar notícias falsas e os mais cosmopolitas, fake (mas, ainda assim) news, em que as democracias parecem definhar sob o peso de todas as frustrações civilizacionais e em que todos os ódios e preconceitos saltam, a diário, dos armários como peças de roupa vintage desempoeiradas e revitalizadas pelas novas tendências, nestes tempos, dizia, é difícil manter alguma clareza de ideias e algumas noções básicas de urbanidade. Mesmo assim, ainda esperamos – pelo menos, alguns de nós – que quem tem responsabilidades acrescidas no funcionamento (cada vez menos) democrático das sociedades tidas como tal seja capaz de alguma seriedade.

Não sei bem se se tratou de uma nuvem passageira, de devaneio, no caso, ou se, pelo contrário, a leviandade veio para se instalar, de armas e bagagens, varrendo qualquer réstia de discernimento e sem poupar nenhuma área. O caso é que, indignados com a indignação do ministro da Administração Interna face à publicação e exposição gratuita de imagens de criminosos capturados e algemados e a aparente falta dela pelo estado das vítimas, alguns, pasme-se!, agentes da polícia, resolveram, também eles, publicar fotografias de idosos agredidos. No que veio a saber-se ser uma fotomontagem (cada vez melhor...), um dos sindicatos que representam agentes de autoridade, hostilizavam, de forma desonesta, irónica e vergonhosa, vozes críticas à primeira publicação. Como se não bastasse, A Associação Sócio-Profissional Independente da Guarda, veio aumentar o ruído afirmando, sem qualquer prurido, que os “criminosos não são merecedores do mesmo respeito, por parte do Estado e da comunidade, atribuídos ao cidadão comum" e que num Estado de direito democrático parece que não deve haver gritarias na promoção da defesa dos direitos humanos sem se estar na posse da realidade dos factos.

Fiquei um pouco confusa. Mas, no essencial, percebi duas coisas e ambas não auguram nada de bom. Primeiro: há agentes da lei que estão a borrifar-se para o cumprimento da dita, a mesma que juraram servir, seguramente, com honra. Segundo: aqui está um belo exemplo de decadência democrática, em que uma espécie de verdade relativa – afinal, quem é que não respeita mais uma vítima do que um criminoso? Ah, espera…–  pode ser manipulada para exacerbar os ânimos e extremar opiniões diferentes.

A democracia tem defeitos. Um deles é admitir que, sim, os criminosos também têm direito à dignidade e aos direitos humanos. Às vezes, os que ainda acreditamos nos tais Estados Democráticos, sentimos impotência, frustração e raiva e para isso é que a democracia serve. Para não sucumbirmos à cegueira brutal e crua que Saramago, um dia, tão bem retratou.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

O vídeo que mostra um energúmeno (não se pode chamar homem àquilo!) a insultar violentamente uma mulher negra, idosa e com algumas dificuldades motoras, num voo da Ryanair, é absolutamente ultrajante para qualquer pessoa com o mínimo de decência, independentemente da cor, nacionalidade e todos os outros etcetaras. É de indignar à náusea.

Incomodado – que deve ser o estado natural daquela criatura, que só deve preocupar-se com o seu branco e bonito, imagino, umbigo – vai vomitando impropérios até chegar ao inqualificável ugly black bastard. Entretanto, já tinha apelidado a mulher de vaca, feia, repetidamente, e outros tantos abusos. Perante a relativa, senão indiferença, passividade da maioria dos restantes passageiros e tripulação.

A filha, creio, da mulher reclama e manda-o calar-se, sem sucesso, enquanto alguns passageiros vão saindo de cena (diz-se de fininho), porque, se ficar a ouvir públicos discursos de ódio, em pleno século XXI!, não é para todos, defender alguém dos insultos mais primários e reles, aparentemente, também não. Por azar, naquele voo, naquele dia, não devia haver ninguém da brigada dos ofendidos instantâneos das redes sociais – e, sim, sinto-me à vontade para criticar, ferozmente, porque já me meti onde não(?) era chamada por muito, mas muito menos: não é coragem, é fracos fígados para certas obscenidades intoleráveis. Excepção e honra feitas à pessoa que filma (neste caso, talvez se justifique, de facto) e a um outro rapaz que está na fila imediatamente atrás e que há-de acabar por intervir.

Já o monstro espuma de raiva e de ódio por todos os poros do muito grande e muito branco corpo quando, finalmente, o tal jovem lhe diz que já chega, que baixe o tom de voz, que não há necessidade disso. A senhora, entretanto, diz-lhe que ele cheira mal. A besta responde que tomou um banho de manhã. Não se apercebe que tresanda, também, da alma pobre e apodrecida, não, eventualmente, só do corpo. Mais alguém – parece ser o homem que filma – se compadece da mulher e diz ao comissário de bordo para o expulsarem a ele, à boçal avantesma.

Estou furiosa, tenho as unhas cravadas nas palmas das mãos, apetece-me gritar para o écran, incrédula pela facilidade da agressão, pela vulgaridade, pela falta de pudor, pelo deboche, não me fale numa língua estrangeira, se eu digo para ela sair, ela sai, e qualquer coisa dentro de mim instiga-me a dizer à mulher (como se ela me ouvisse e não se tivessem já passado dois dias) manda-o à merda, paga-lhe na mesma moeda e chama-lhe porco, gordo e seboso, que é exactamente o que ele parece. Recomponho-me e penso, não, não é civilizado combater o insulto com o insulto. Raios partam a educação, mas é o que nos distingue dos ineptos. Chamo o meu filho e mostro-lhe o vídeo. A educação também é isto. Conversamos sobre o que se deve e não deve fazer em situações como aquela; sobre o respeito pelo outro; e, sim, mesmo que o outro seja um imbecil fanático e acéfalo. Mas não deixo de lhe recordar que “para que o mal triunfe, basta que os homens bons não façam nada”. E penso que, talvez, nunca como agora tenha sido tão urgente apelar, já não apenas à voz, mas ao mais enérgico clamor de repúdio de todos os homens bons. 

sábado, 20 de outubro de 2018

A luta de Khashoggi, as mentiras de Riade, a prostituição dos estados e o início das novas trevas.

Eu sei. Temos muito mais com que nos preocuparmos. O Orçamento de Estado foi aprovado por ministros que não sabiam estar de saída, Tancos ainda vai no adro (no limite, se calhar, até o primeiro-ministro e o presidente da república tinham conhecimento da marosca), as incompatibilidades de Siza Vieira são(?) fantasias de gente miúda, os esquemas de Pedrogão Grande deviam dar nojo a qualquer pessoa com o mínimo de vergonha e, escabroso, por escabroso, já temos o caso Sócrates em todas as suas variantes. Isto só para nos ficarmos por alguns exemplos da nossa própria miséria. Por que razão nos deveríamos preocupar com outras coisas menores e distantes, como a morte de um jornalista saudita?  Aliás, não anda, a Arábia Saudita, a exterminar, impunemente, civis no Iémen? Quem é que se preocupa com isso?  

Mas, a Arábia Saudita admitiu, finalmente, que Jamal Khashoggi, morreu. Como? Depois de ter entrado no consulado do seu país, em Istambul, desentendeu-se com os oficiais sauditas de serviço, a discussão azedou, seguiu-se uma escalada de violência que culminou numa luta entre as partes envolvidas. Desse confronto físico resultou a morte do jornalista. É espantoso como algo tão simples de explicar e de entender demorou mais de duas semanas a comunicar pelo regime de Riade. Se calhar, entregar o corpo do jornalista ajudava a corroborar a tese, mas, talvez seja rude sugeri-lo.

Donald Trump aceitou como credíveis as explicações sobre as circunstâncias da morte de Khashoggi, embora, o que que aconteceu seja, claro, inaceitável. Que alívio! O que seria, ter de punir severamente um aliado estratégico desta categoria! Se o jornalista morreu numa luta que, desafortunadamente, correu muito mal para o próprio, os milhares de milhões de dólares que EUA lucram com os negócios da coroa saudita estão a salvo. Trump é um empresário de mão-cheia.

Nem sei por que motivo Donald Trump mantém os serviços de inteligência americanos. Afinal, quando lidamos com homens e mulheres de palavra não são necessárias outras formas de averiguação da verdade dos factos. Houve interferência russa nas últimas eleições americanas? Pergunta-se ao Putin. Ele diz que não houve, não houve. Brett Kavanaugh tem um passado de abuso sobre mulheres? Questiona-se o próprio. O homem diz que não, chorou e tudo, por isso, não; a Ford, no mínimo, está confusa, no máximo, é uma tresloucada mentirosa. O príncipe Mohammed bin Salman mandou torturar e eliminar um jornalista incómodo e desbocado? Pergunta-se a Riade. Eles dizem que não, o homem morreu num confronto violento com outros conterrâneos. Óptimo, era o que imaginávamos. Vamos ter de os punir na mesma, mas poucochinho; e sem prejuízos financeiros. Que mania, que toda a gente é culpada até prova em contrário! Se, afinal, nem sequer são precisas provas, basta a palavra dos presumíveis prevaricadores.

Donald Trump vende-se, como uma prostituta de luxo, às mentiras de Riade para poder usufruir, pelo menos, dos negócios chorudos. Vejamos se o que resta da América vai consentir continuar a prostitui-se também. As expectativas não são animadoras. Há muito que a hipocrisia e os interesses económicos dominam as relações entre os estados ditadores e os seus benevolente aliados. Se a Arábia Saudita e a sua coroa se saírem bem com mais este assassinato está aberta a porta para um período da nossa História que se avizinha bastante negro. Outra vez.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Em Modo Automático

Acabara de chegar. Depois de olhar para o écran que exibia, vagarosamente, a passagem dos números com a indicação do serviço e do balcão, optei por esperar na loja. Queria ir à tesouraria, tinha a senha B15 e, no momento, piscava a B6, pelo que, decidi não arriscar a saída. Tinha um livro como companhia, como sempre que se avizinham longos tempos de espera: “Quem meteu a mão na caixa”, da Helena Garrido, oferecido pelo meu pai. Sempre que pretende explicar-me algo para o qual acha que não tem competências à altura, o meu pai oferece-me um livro. Quando fiz 15 anos, ofereceu-me “Os Filhos da Droga” e disse-me, “filha, não sei explicar-te isto de outra maneira, por isso, lê”, e eu li; entre os protestos da minha mãe, que sempre foi menos prática, como quem tira um penso rápido com todo o cuidado porque vai doer, em vez de o arrancar à bruta, se vai doer de qualquer maneira ao menos que seja expedito. Mas, isto talvez dê outra história.

Sentei-me, guardei a senha e abri o livro.

Não levava cinco minutos sentada quando uma senhora ocupa a cadeira ao lado da minha. Só levantei os olhos do livro por dois segundos, mas, creio que, não só sempre tive ar de boa ouvinte, como acho que isso se nota à distância, de alguma forma. Pela enésima vez, algures nos meus tempos de espera em serviços públicos, a senhora desata a conversar comigo, como se tivéssemos mais do que sido apresentadas, e não era sequer o caso.

Percebo que não está sozinha. Vem com o filho, um homem de 40 anos, desempregado há mais de cinco e que, ainda por cima, é um pouco “atrasado”, como me dirá daí a pouco. Vai alertando o filho para estar atento aos números, ela vê mal. É cedo, daqui a pouco já verá um bocadinho melhor, tem que ir habituando a vista e forçando um pouco a pálpebra e, para já, muito contrariada, deve fiar-se do filho. Sossego-a, ainda faltam cinco senhas e eu própria vou olhando e controlando, não se preocupe. O livro já está guardado e ouço-a dizer que já hoje fez duas dúzias de rissóis para a patroa. Ainda não são nove e meia da manhã e não controlo o espanto, a senhora tem, seguramente, mais de 70 anos e a pergunta salta do meu pensamento sem eu dar por isso. “Então, minha querida, como é que não hei-de trabalhar? Tenho 300 euros de reforma, aquele ali (aponta o filho) que não trabalha e um marido que, olhe, é o mesmo que ter outro filho. Tenho dois filhos, é o que é. Ainda hoje saiu para uma consulta e, olhe, nem vale a pena…”. Fico a saber que o patrão, alemão, faleceu há dois anos, que, desde aí, tem mais trabalho, que a patroa viaja imenso e recebe muito, com as meninas, que quase podiam ser todas irmãs, porque são filhas de um primeiro casamento do doutor. Mas são muito amigas dela, sente-se bem a trabalhar na casa, mas tem tido muito trabalho e está muito cansada.

Continuo a olhar para o écran. Faltam três senhas para o seu número. Faço-lhe saber. Já vê melhor, as letras e os números já têm forma. O filho exalta-se um pouco, não chego a perceber porquê, ela manda-o acalmar-se, como quem sossega um bebé, já está quase, é só mais um bocadinho.

Prossegue a narrativa. Está muito cansada. Ainda não há muito tempo, desmaiou e ficou de cama durante alguns dias. Um caos. Mostra-me o colo magro e seco e, de repente, o número da sua senha começa a piscar. Vimo-lo ao mesmo tempo, chama o filho e despede-se de mim, tão lesta e precipitada como chegou.

Fico um pouco atordoada, eu própria esgotada, e é então que percebo que, tão preocupada com não perder a vez da senhora, deixei passar a minha própria vez. Sou a B15 e o monitor mostra já a B17. Levanto-me de um salto, engolindo impropérios, e dirijo-me ao balcão 1. O papelito avisa-me que há uma tolerância de 3 senhas, pelo que, ainda não estou perdida.

No balcão, alguém está a ser atendido e há uma espécie de porta-retratos de plástico transparente com uma advertência: “Por Favor, Não Interrompa o Atendimento”. Não interrompo. Espero que aquela senhora saia e aproximo-me do balcão. Mostro a senha e digo que me distraí, lamento. A funcionária informa-me que acabou de chamar a senha B18, portanto, já passou a tolerância das três senhas. Passa-me qualquer coisa pela cabeça e faço um esforço para não descer dos saltos e mandá-la à merda. Percebo de integrais e de números de complexos, de funções racionais e irracionais e não percebo da arte de contar três senhas de tolerância. Aponto-lhe o letreiro, salientando o óbvio, se tivesse interrompido o atendimento, ela já não teria tido tempo de premir o botãozinho para chamar o número seguinte, tão indolentes na maioria das vezes, tão diligente naquele dia. A mulher insiste, se chegar o B18, não me poderá atender. Penso na senhora com o filho, no corpo cansado e seco, nos rissóis que já preparou para as meninas ainda a manhã não acabou de se espreguiçar. O B18 não chega e agradeço-lhe baixinho enquanto a mulher ao balcão lá se resigna a atender-me…

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Alexandre, o Justiceiro

Carlos Alexandre é um homem simples; ou, pelo menos, assim o apregoa. Odiado por José Sócrates e pelos seus doutos advogados, talvez se tenha tornado juiz por influência – ainda que involuntária – do pai. Mais exactamente, pela injustiça de que o progenitor terá sido alvo, na fábrica onde trabalhava. Segundo a sua entrevista mais recente, à RTP1, foi por aqui que começou a resposta à pergunta “porque que é que escolheu a profissão de juiz”. É um homem que preza a justiça e isso, por si só, não é um defeito, pelo contrário. A questão é onde é que acaba o sentido de justiça e começa o ajuste de contas puro e duro.

Numa outra e mais antiga entrevista que o homem que teve a coragem de mandar prender José Sócrates (e Ricardo Salgado) deu, à época, ao Expresso, já tinha referido algumas das advertências de que, segundo o próprio, já foi alvo, como “deves meter-te com gajos do teu tamanho porque precisas do teu ordenado para comer” ou “se não souberes colar os cromos na caderneta não terás direito a brinde.” E dada a elegância e a profundidade dos recados, sou até tentada a acreditar que é verdade. O excesso de humildade, no entanto, cai-me sempre mal. Não digo que todos saibamos, ou tenhamos de saber, lidar bem com o elogio. Eu própria “defendo-me” melhor de um insulto do que de um elogio demasiado sério, mas desconfio bastante de apregoados despojamentos exacerbados em causa própria. Nessa tal outra entrevista, Carlos Alexandre também disse quanto ganhava, quanto gastava e quanto devia, suspirando um “se todos fossem como eu…”, que é a parte que eu não gosto, porque, quando somos tão, mas tão virtuosos, caramba!, alguém, forçosamente, há-de reparar sem a nossa ajuda, não? E prezo muito quem é capaz de se sobrepor às agruras da vida. Fui a primeira pessoa da minha família (neta mais velha de dois filhos mais velhos de famílias pobres, não há que ter medo de chamar as coisas pelos nomes) a entrar para a faculdade e a tirar um curso superior. A seguir, foi a minha irmã. Respeito a seriedade do juiz Carlos Alexandre, só não tenho grande admiração pelos laivos de vaidosismo saloio. Mas, a questão nem é essa.

A questão agora é que, sorteado que foi o nome do “rival” Ivo Rosa para a instrução do processo Operação Maquês, a coisa, aparentemente, caiu mal ao não-gosto-que-me-chamem-super-juiz. Por motivos “pessoais”, e que se absterá de referir ao longo da nova entrevista, “porque são pessoais”, lá está, viu-se compelido a pedir autorização para não estar presente no dito sorteio, sobre o qual veio levantar suspeitas de irregularidades. A culpa pode estar nos algoritmos, e não tem piada, nem é suposto. Aparentemente, o juiz Carlos Alexandre suspeita que o sorteio dos processos judiciais foi ou pode ser manipulado.

Mandava o bom senso que, pelo menos, em casos sérios, não se levantassem suspeitas em vão. Principalmente por parte daqueles que devem, por maioria de razão, salvaguardar as instituições que representam. Vá lá saber-se porquê, temos dificuldade em lidar com verdades básicas e o rigor da retórica perde-se no gozo da mesma. Nem sei se se pode chamar entrevista àquilo. E com que intuito. Perdi-me entre os generais e os náufragos de Garcia Marquez e fiquei confusa.

Entretanto, o Conselho Superior da Magistratura abriu ou vai abrir, obviamente, um inquérito do qual podem, eventualmente, resultar processos disciplinares e assim se inquina um pouco mais um processo que se deveria tratar com o máximo rigor e seriedade. Foi bom, para serviço público…esperemos que, à boleia de justiceiros e vingadores de trazer por casa, não se destrua o pouco que resta da credibilidade na justiça portuguesa. Já nos chega Tancos.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

A Ilegalidade de Ser Humano

Na Hungria de Vickor Orbán, ser sem-abrigo é ilegal (não é só, eu sei). Assim, e no “interesse da sociedade”, a polícia húngara está, desde esta segunda-feira, autorizada a retirar dos espaços públicos quem não tem onde dormir. Teoricamente, estes seres ilegais devem ser encaminhados para abrigos. Se se recusarem a fazê-lo, três vezes em 90 dias, a polícia pode detê-los e destruir os seus pertences. Os cidadãos, os legais, obviamente, devem ter o direito de usufruir dos espaços públicos sem constrangimentos.

Na América de Trump, (pelo menos) uma menina, hondurenha, de dois anos testemunhou sozinha, no “Tribunal Federal de Imigração nº 14” dos EUA. Na fronteira, foi separada da avó que tentava entrar ilegalmente nesse país tão grande outra vez. Na esclarecidíssima e iluminada opinião de Trump e de muitos dos seus apoiantes, se as famílias tiverem medo de serem separadas das suas crianças, não se atreverão, sequer, a tentar entrar. De resto, na América, por exemplo, está tudo a correr muito bem. A economia está a crescer a um bom ritmo e a administração Trump fez mais pelo país, nos últimos dois anos, do que praticamente todas as outras administrações anteriores, pese embora o facto de Melania ainda ser a maior vítima de bullying do mundo, e não sei qual das duas “constatações” tem mais piada, porque, convenhamos, o humor também faz falta, embora, parece que em alguns países é tão ilegal como algumas pessoas, mas adiante.

Os brasileiros vão eleger Bolsonaro porque já não suportam o PT e a sua corrupção. Afinal, sempre é melhor um F-A-S-C-I-S-T-A para arrumar a casa e eliminar os corruptos, do que outro democrata possivelmente viciado. Nem sequer faz falta vir o diabo escolher. Até porque os moderados e democratabilíssimos checs-and-balances que o Brasil não tem irão acabar por refrear os piores instintos do capitão Jair, tal como os que, sim, existem (ou existiam) nos EUA (não!) serão suficientes para impedir nova eleição de Trump, em 2020; não esquecer que, com jeitinho, o homem ainda acaba prémio Nobel da Paz.

Enfim, os problemas são o que são e, pelos vistos, a democracia deixou de servir como solução. Churchill estaria certo se não tivesse (ab)usado da chalaça: na actualidade, parece não haver pior forma de governo.

Eu, como cidadã do mais impoluto e legal que há, penso até se não seria melhor voltarmos todos ao olho-por-olho-dente-por-dente: cortar a mão ao ladrão, apedrejar os adúlteros, castrar os violadores, enfim, garantir o descanso imaculado e sem sobressaltos das sociedades limpas e pagadoras de impostos…isso é que era!

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

De que massa é feita esta Gente? Que tudo perdeu, que do nada renasceu e que ainda consegue sorrir e recomeçar?

"Pareciam foguetes de lágrimas", e ainda não consegui ler até ao fim. Dói-me a alma e nem sequer imagino o inferno que viveram.


domingo, 14 de outubro de 2018

Remodelações? Trá-las o Vento!

António Costa "aceitou as demissões" de mais três ministros. Aproveitando o "sentido de Estado" de Azeredo Lopes (valeria mais tarde do que nunca, não fosse o caso dramaticamente trágico e vergonhoso) e a confusão do Leslie, atirou - desconfio - diligentemente e borda fora quatro remodeláveis.  Do nosso primeiro pode dizer-se muita coisa, menos que seja politicamente incauto; pelo contrário, é mais matreiro do que uma raposa e tem mais vidas do que um gato. As fugas de informação são para meninos. Ninguém deconfiou de nada, não houve leaks de nenhum tipo, com prefixo ou sem prefixo. Tal qual como aquando da substituição da Procuradora Geral da República, aquela estrategicamente metida entre os 90 minutos das emoções reservadas aos jogos de futebol. António Costa gosta pouco de assustar o povo, pelo que, nada melhor do que aproveitar, sempre que possível, sobressaltos alheios...é de se lhe tirar o chapéu. E parece que hoje também há futebol.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Verdade Sem Consequência

“Torne a mentira grande, simplifique-a, continue a repeti-la e, eventualmente, todos acreditarão nela.”

Assim construiu Adolf Hitler uma demente ideologia para tornar a Alemanha grande outra vez; assim se começa, hoje, a fazer política para ser levada a sério, quase oitenta anos depois do sanguinário e tresloucado genocídio de (maioritariamente) judeus sob o regime nazi.

Podia ser exagero, estabelecer comparações radicais entre a Alemanha de Hitler e a América de Trump, ou o Brasil que há-de ser de Bolsonaro; ou a Hungria de Viktor Orbán; ou a Venezuela de Maduro; ou os apelos nacionalistas de Le Pen e Salvini, o Brexit do Reino Unido, a subida da extrema direita na Suécia e na Europa, em geral. Podia ser exagero, não fosse dar-se o caso de – cada vez mais – a verdade ser descartável. Já ninguém se interessa pela verdade, até porque a verdade muda ao sabor do momento e o momento tornou-se instantâneo, fugaz como a chama de um fósforo, exuberante e fogosa, a princípio, para depressa definhar, enegrecida e em agonia. A verdade passou a medir-se pela ousadia do insulto fácil e popular; pela capacidade de vitimização dos tiranos, pela dimensão da fama e poder dos abusadores, pela falta de recato das vítimas, pelo oportunismo de ambos, pela assertividade e elegância da retórica cheia de nada, mas que enche almas desesperadas e exalta multidões cegas e esvaziadas de qualquer capacidade de pensar e reflectir.

 Nos dias de hoje, a política do pão e circo já não precisa da imponência do Coliseu, do desassombro e da perícia dos gladiadores ou do confronto violento entre animais selvagens. Basta um “estadista” imberbe com o despudor suficiente para ridicularizar o outro, seja uma pessoa com deficiência, um militar morto em combate, um apresentador de televisão ou uma mulher abusada. O povo aplaude, goza e rejubila. Já não faz falta debater ideias. Chamar um opositor político de “marmita de corrupto preso” faz mais pelo divertimento das massas do que discutir problemas reais, discordar e tentar encontrar soluções. A urgência dos tempos e das modas choca de frente e violentamente com a lentidão do apuramento da verdade, porque, essa, demora, não é efémera. E a negação da verdade mutila a justiça, que, se já não era completamente cega, foi impiedosamente esmagada pelas circunstâncias do acusado e do acusador, independentemente do crime. As provas deixaram de ser necessárias, foram substituídas por autos de fé. Há quem minta descaradamente no conforto da não existência de qualquer “prova”, mesmo que a história que conta seja absurda e há quem esteja absolutamente certo, quer da inocência, quer da culpabilidade de alguém apenas pela conjuntura do momento, pelo que fez ou deixou de fazer, pelos méritos ou deméritos alcançados até à data. Amar ou odiar, sem apelo nem agravo ou espaço para indagar.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Não nos envergonhem mais!

Azeredo Lopes indignou-se com Rui Rio, pela comparação do caso Tancos com a guerra de Solnado. Pois bem, eu indigno-me com este ministro burlesco que, em qualquer país decente, há muito já teria posto o seu cargo à disposição. O caso Tancos, há muito ultrapassou o patamar da anedota para passar ao do nojo e da vergonha! António Costa defende o importante “activo”; dá-se ao luxo de fazer comentários jocosos no Parlamento, tão à-vontade está no vazio de uma oposição digna desse nome, porque a falta de coragem é concubina do poder mesquinho e miudinho e ninguém quer perder o estatuto, por mais miserável. Entretêm-se, antes, a debater banalidades, atirando insultos como rebuçados, sem qualquer respeito pelas instituições que juraram honrar e representar. Compactuam com a fraude do outro para garantir o direito à fraude própria, quando a vez chegar. Dormem com quem ontem tratavam por inimigo, sem sobressaltos, sem insónias, sem dores de barriga ou de consciência, dormem sem pesadelos, ainda que sem explicar onde deixaram, entretanto, a verticalidade das convicções, a verdade dos credos, a seriedade das propostas, a honradez dos compromissos, a validade das palavras. Os argumentos políticos convertidos em contorcionismos linguísticos ao nível das conversas de café, o entretém do circo, a minha ironia é melhor do que a tua, casamentos e carochinhas varrendo indolentemente a dignidade de todos e nós, João Ratão, ardendo no caldeirão do escárnio.

Por favor, não nos envergonhem mais!

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

O Meu Feminismo É Melhor Que o Teu

“Sei porém que este tipo de mulher não me representa em momento algum, nem pode representar nenhuma mulher agredida. Aliás é o tipo de mulher que eu gostaria de nunca me cruzar na vida, jamais por exemplo andarei lado a lado numa manifestação de luta pela igualdade ao lado destas tipas.”

“Agora ver uma mulher que recebeu mais de 300 mil dólares de um homem para ficar calada e ficou, demonstra o esgoto moral que o Metoo é. Uma acusação de violação entre um casal que se relacionou está na capa de jornais mas uma mulher receber 300 mil dólares de um homem para não falar em público da relação e aceitar não é manchete, é normalíssimo...”

“Nunca recebi um euro de um homem para não falar sobre as minhas relações porque jamais falaria sobre os homens com quem me relacionei. As minhas familiares, amigas, colegas idem, nunca passei sequer perto de uma mulher ou um acordo deste tipo.”

 

Aquelas frases preciosas – e outras mais, igualmente elegantes e articuladas – foram escritas pela "historiadora, investigadora e professora universitária", Raquel Varela. A mesma "historiadora e especialista em conflitos sociais" que, aqui há uns anos, no programa Prós e Contras, não soube o que responder a um miúdo de 15 ou 16 anos que vendia T-shirts e pagava o salário mínimo às costureiras. As “mulheres deste tipo” não sei bem quem são; o meu leque de amizades e familiares é mais variado e menos impoluto. Mas, no caso, Varela referia-se ao tipo de mulher que ameaça a reputação de Cristiano Ronaldo.

Há mulheres tão puras e virtuosas que não se misturam com a escória. A violência sexual pode, asseguram-nos, acontecer a qualquer mulher, mas…umas põem-se mais a jeito do que outras. A violação é um crime hediondo, mas há tipas que estão mesmo a pedi-las. E, evidentemente, mulher séria, como elas, jamais venderia a dignidade, porque, se vendesse, perderia automaticamente, o direito a queixar-se. Então, não sabemos todos, como se comporta uma verdadeira vítima de violação? Deve ser formidável ser dotado de tanta sapiência e rectidão! E cansativo, também.

Do alto das suas cátedras amarelecidas e podres, muitos estudam o povo, mas não lhe pertencem. Limitam-se a debitar sentenças ocas embaladas numa presunção de intelectualidade, mas sem se misturarem muito, porque o Povo é interessante como objecto de estudo, em abstracto; mas o povo, esse que vive, ri e chora, é peganhento, cheira mal e é pouco educado.  Talvez por isso, Raquel Varela tenha também, em tempos, abominado o tipo de “fato de alfaiate de segunda, morador suburbano” de Pedro Passos Coelho.

O feminismo de Raquel Varela é polido e erudito. O meu é mais do tipo, nem todos os homens são violadores em potência, nem todas as mulheres são santas. Mas, isso não se mede pela profissão, fama ou estatuto social. E, tal como muitos portugueses, espero que Cristiano Ronaldo esteja inocente ou que seja exemplarmente punido, se for culpado, independentemente do tipo da tipa.

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Chega!

O ponto de exclamação é meu, mas “Chega” parece que é o nome do próximo novo partido político português. André Ventura, para quem as ideias de Bolsonaro são “refrescantes”, não suportou o calor, talvez, do PSD de Rui Rio e vai avançar com uma “nova força política ao centro-direita”.

De momento, André Ventura ainda vai “apenas” pela defesa do fim do casamento homossexual, pelo regresso da prisão perpétua para homicidas e violadores e pela castração química de pedófilos, além da diminuição (para 100) do número de deputados na Assembleia da República. Assim de repente, com excepção da primeira, até parecem causas simpáticas e de encontro ao desamor e descontentamento do povo. É capaz de ser suficientemente radical para um país de brandos costumes, embora bem abaixo da fresca vitalidade do companheiro Jair. Por enquanto.

Também por enquanto, André Ventura estará muito longe de Marine Le Pen e de Matteo Salvini que, ontem, apelaram a uma “revolução” nas próximas eleições europeias, em Maio de 2019. Mas, talvez fosse melhor não subestimarmos aqueles que vêem o futuro, nomeadamente, o da Europa, sem os valores democráticos que tanto custaram a construir. Por muito insignificantes ou ridículos que nos pareçam à primeira vista, porque já vimos até onde isso nos pode levar.

Matteo Salvini, segundo li num jornal de referência, saudou a vitória de Jair Bolsonaro na primeira volta das eleições presidenciais no Brasil. Que palavra teremos nós a dizer?

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

A Implosão das Democracias (2)

Uma amiga que estimo e que não tenho por fascista, nem sequer por radical, confessou-me o seu voto em Bolsonaro. “O Brasil precisa de uma ditadura”, respondeu perante o meu ar de espanto. E continuou, “o criminoso, no Brasil, já não é um criminoso comum, a vida não vale nada, as ruas estão tomadas pelo crime, é impossível ter uma vida normal, criar os filhos, viver com tranquilidade. Eu não concordo com tudo o que Bolsonaro diz, mas é preciso alguém que contenha a escalada de violência”.

Uma coisa é um fascista defender Bolsonaro. Outra coisa, bem diferente e que tem, obrigatoriamente, de nos pôr a pensar a todos é uma pessoa comum, pacífica, educada, vivendo em função de valores democráticos, considerar que um homem como Bolsonaro pode ser uma solução para o Brasil. Como Donald Trump, para os EUA, e Viktor Orbán, para a Hungria, embora estes não estejam ao nível de Bolsonaro. Ainda?

Vale a pena lembrar que Bolsonaro preferia ter um filho morto do que homossexual; que afirmou que o voto, no Brasil, não mudará nada, só “uma guerra civil, fazendo o trabalho que o regime militar não fez”; que vai “bater” se “vir dois homens se beijando na rua”;  que não viola mulheres feias, porque elas não merecem; que o “erro da ditadura foi torturar e não matar”; que os seus filhos foram “muito bem educados” e, portanto, “não correm o risco” de se relacionarem com mulheres negras ou com homossexuais e ele, Bolsonaro, não discute “promiscuidade com quem quer que seja”. Ao quinto filho, Bolsonaro deu “uma fraquejada e veio mulher” e as mulheres devem ganhar menos do que os homens porque engravidam; os índios, ou, alguns deles, deviam “comer capim” para “manter as origens” e os pobres devem ser “esterilizados” como forma de combater a criminalidade e a miséria.

Admitindo que há muitos que votam em Bolsonaro e não partilham destes juízos, como explicar, de facto, a decisão de correr o risco de apoiar um homem como este?

Há quase dois anos, os EUA elegiam Donald Trump como o seu 45º presidente. Poucas semanas, poucos dias!, antes daquele 8 de Novembro de 2016, a grande maioria dos analistas e comentadores políticos, de vários quadrantes e nacionalidades asseguravam que Trump não seria eleito. Era impensável e impossível. E, no entanto, nem mesmo qualquer um dos típicos escândalos – sexuais, financeiros, de interferência política – que já fizeram cair outros candidatos presidenciais e abalaram reputações chegou para abanar Trump, antes ou depois da sua eleição. As instituições que, afiançavam-nos, iriam contrabalançar o poder do presidente dos EUA, eram o garante inabalável do normal funcionamento das instituições democráticas americanas. As convicções informadas, esclarecidas, eruditas, experientes, vão caindo como peças de um dominó populista, demagogo e demoníaco, sem escrúpulos, porque as pessoas estão cansadas, incrédulas e assustadas. E desesperadas!

A imposição de um “politicamento correcto” que nos tornou refém das palavras e minou os debates políticos e sociais; os movimentos activistas que querem promover uma igualdade que apenas oprime diferentes formas de pensar; a exaltação dos direitos das minorias como formas veladas de reeducação em massa das sociedades, confundido a obrigação do respeito pelo outro com a negação da identidade do próprio; a visão romântica e simplista de que todos os problemas sociais são possíveis de resolver com solidariedade e “aceitação”, e a soberania ignorante e descontrolada do logro sofisticado – ou apenas popular – instigado pelas redes sociais, esmagou a verdade, a vontade, a cultura, a civilidade e, pior, a capacidade de reagir e contrariar.

Os políticos sem escrúpulos crescem, estão bem e começam a recomendar-se porque a verdade deixou de ser importante, a justiça deixou de ser cega e os factos passaram a ser, não só alternativos, como moldáveis à vontade de cada um.

O Brasil não sobreviverá a Bolsonaro e eu temo que a Europa sucumba à onda de "segurança" promovida pelo medo.

domingo, 7 de outubro de 2018

A Implosão das Democracias

Hoje, Bolsonaro vai sair vencedor das eleições no Brasil. Ontem Brett Kavanaugh foi confirmado juiz do Supremo Tribunal dos EUA.  Na passada semana, Trump gozou (para gáudio do seu público circense) com a mulher que se apresentou, no Senado, como vítima do novo juiz, apesar de ter reconhecido, anteriormente, que o seu depoimento parecia credível. Os famosos checs and balances que todos os entendidos juravam que garantiriam a democracia americana apesar do seu presidente, parecem ruir como castelos de cartas. Pessoas supostamente educadas, esclarecidas e informadas sucumbem aos juízos mais primários, confundindo vontades, desprezando factos e distribuindo insultos por quem tem opinião diferente. O Porto e o Benfica jogam hoje e, como sempre, esse é um tema que ocupa as televisões desde a manhã, porque, em Portugal, só o futebol tem direito a horas e horas de emissões contínuas, porque nada é mais importante para o país. O presidente da Interpol está desaparecido, quiçá, preso pelas autoridades chinesas, mas isso é apenas uma nota de rodapé. A Serra de Sintra voltou a arder. E eu estou zangada.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

"Estava disponível para"...ser violada?

Nos meus tempos de adolescente, quando comecei a sair à noite, os meus pais davam-me conselhos, como faz a maioria dos pais. Nunca eram proibições porque quem percebe qualquer coisa de miúdos e adolescentes sabe que não vale a pena proibir o que quer que seja. Mesmo os mais sensatos, inteligentes, ponderados, introvertidos e “santos” têm, em algum momento, um deslize só porque sim, porque nunca fazer um disparate também é estúpido e, além disso, cansa.

Nessas saídas nocturnas, também não me era imposta uma hora para chegar a casa. Mas não me era permitido sair todos os fins-de-semana e, enquanto não tive carta de condução, quem me ia buscar a casa tinha que estacionar o carro e subir, temos pena. E, quem me ia buscar, também era responsável por me trazer, mas, eu sabia que se alguma coisa corresse menos bem, ou muito mal, podia ligar ao meu pai para me ir buscar, fosse onde fosse e a que horas fosse. Mesmo que fosse uma amiga, e não eu, a precisar de ajuda, podia contar com o meu pai e com a minha mãe. Foi sempre assim e acho que só nos últimos anos, já na idade adulta e sendo também mãe tenho plena consciência desta sabedoria dos meus pais, já há tantos anos, primeiro comigo e, depois, com a minha irmã.

 Entre os conselhos que, nomeadamente, o meu pai me dava estavam o “nunca largues o teu copo”, “nunca aceites bebidas de ninguém”, “prefiro que não fumes, mas, se fumares, eu compro-te os cigarros”, “não vás à casa de banho sozinha” e outras coisas aparentemente tão básicas e, no entanto, tão avisadas e actuais. Nunca, no entanto, me disse o meu pai não vistas essa mini-saia, não uses salto alto, não pintes os lábios de vermelho. E também nunca me disse se fores sedutora com um homem, se aceitares ficar sozinha com ele e te rires coquetemente dos seus disparates, prepara-te, minha filha, porque estás mesmo a pedi-las e se, por acaso, ele te violar, azar, não o tivesses provocado. Mas, lá está, isto era o meu pai que é e sempre foi um homem inteligente, sério e digno, qualidades que parecem cada vez mais raras nos dias de hoje.

Entre os comentários que mais me enojam na desculpabilização de um abusador sexual estão, exactamente, aqueles que estabelecem uma tosca, arbitrária e asquerosa relação de causa-efeito entre o que a vítima veste, diz ou faz e o consequente (?) abuso ou mesmo violação. O circo do momento é defesa incondicional e acéfala de Cristiano Ronaldo, o mítico e inatingível CR7, o atleta de outro planeta, o melhor embaixador do Portugal da moda e a quem, supõe-se pelos comentários de alguns imberbes, as mulheres deviam pagar pelo usufruto da sua magnânima presença e, não, queixar-se de supostas violações. E, é verdade, Cristiano Ronaldo é um atleta fora de série, nada disso está em causa.

Eu não sei – e, parece-me que, ninguém a não ser os próprios – se Cristiano Ronaldo violou ou não Kathryn Mayorga. Mas tenho o mínimo de inteligência para suspeitar, pelo que li no extenso artigo da revista alemã Der Spiegel, que, se a “história é estranha” ou “está mal contada” é mais pelo lado de Ronaldo. A Der Spiegel é uma revista séria e afirma estar na posse de documentos válidos e comprometedores para o atleta, entre outras coisas, que só não sabe quem não quer saber, porque estar informado e tirar conclusões pela sua própria cabeça está fora de moda. É melhor consultar o facebuque e ler caixas de comentários nos jornais que ainda o permitem. É mais fácil, relativamente barato e dá milhões…de likes.

Por outro lado, sabemos que, infelizmente, a justiça não é, de facto, igual para todos; quanto mais não seja, porque só alguns tem capacidade financeira para pagar os honorários quase obscenos dos advogados mais expeditos e ardilosos. Por isso, não é provável que uma mulher desconhecida, com um passado que não é propriamente o de uma freira casta, abnegada e isenta de calores pecaminosos, se atrevesse a acusar um semi-Deus do desporto, adorado e idolatrado, só à procura de fama e de dinheiro. Vamos lá fazer um esforço por não insultar a inteligência de quem tem mais do que dois neurónios e os usa, pasme-se!, para reflectir e duvidar.

E, quando é uma mulher a tecer comentários machistas e a atacar outra mulher, sem conhecimento de causa, num crime hediondo como é o da violação, só me ocorre desejar (apesar de não ser muito católica) que Madeleine K. Albright esteja certa e que o Inferno tenha, realmente, um lugar especial para as mulheres que não ajudam outras mulheres.