Em
tronco nu, numa (outra) manhã qualquer, Amon Leopold Göth assoma à varanda da
sua casa, com vista privilegiada para o campo de concentração
nazi de Plaszow. Agarra na espingarda, observa a azáfama dos condenados, ajusta
a mira da arma e escolhe a primeira vítima. Pousa o cigarro e aponta certeiro à
mulher agachada no chão. Assim que ela se ergue, dispara a matar. Recolhe,
indolente, o cigarro pousado no muro e, entre duas passas, escolhe uma segunda
vítima. Aleatoriamente, sem qualquer critério especial. Apenas porque pode e
porque isso lhe dá gozo.
A
violenta cena que retrata a barbárie sangrenta e insana da época nazi é
imortalizada por Ralph Fiennes em A Lista de Schindler, e
dispensará mais apresentações. Quem a viu, gravou-a para sempre na memória;
cada um pelas suas razões, porque há filmes, ou partes deles, que teimosamente
se materializam nos nossos pesadelos e nas nossas consciências quando menos
esperamos. Lembrei-me dela pela alienação dos dias que correm. Já não fazem
falta varandas com vista nem espingardas em riste. Substituímos as primeiras
pelas páginas virtuais e as segundas pelos insultos gratuitos e carregados de
ódio. Cada um escolhe o seu palanque, a sua arma, a sua vítima. Os métodos
serão diferentes; os ódios serão diferentes; talvez, até os objectivos sejam
diferentes. Mas deixam o mesmo rasto de aniquilação, de devastação nojenta na
eliminação de adversários, políticos e não só. Só porque sim, só porque se
pode. Como uns podem mais do que outros, os ódios destilam-se em diferentes
graus, com diferentes requintes de malvadez e de eficácia e atingem mais ou
menos alvos, de acordo com a circunstância de cada um. Das caixas de
comentários aos assassínios por encomenda, da propagação de mentiras à
distribuição de bombas como quem distribui rebuçados, dos comícios políticos
convertidos em arenas de imberbes sedentos de vinganças, urgentes de sangue,
como nos tempos dos enforcamentos sumários nas praças públicas, à apologia dos
regimes ditatoriais e fascistas como solução para todos os males.
Cada vez é mais difícil manter uma discussão séria sobre os diferentes
problemas que se abatem sobre as sociedades democráticas. As pessoas não ouvem.
Confundem, como diz o povo, alhos com bugalhos. Um homem insulta pública e
violentamente uma mulher negra, chama-lhe feia, vaca, preta, bastarda e ouvimos
dizer, e “se fosse ao contrário, também era notícia”; “porque
é que não deixam o homem defender-se, primeiro”? Mas, são surdos? Os
americanos tinham um nome para este tipo de gente, mas não me lembro agora. Os
que, numa discussão, recorrem sistematicamente à evocação de argumentos que, só
na aparência, se relacionam. Uma espécie de desconversadores selectivos cujo
objectivo nunca é discutir com seriedade nem, muito menos, encontrar soluções,
mas baralhar, partir e dar, como num jogo de pocker.
Nos dias de hoje, voltamos a desdenhar dos pobres, a rir dos aleijados,
a humilhar os ofendidos e a insultar os inimigos. A turba pede sangue como quem
pede água sob o sol abrasador do deserto. Sucumbimos ao medo, e o ódio, afoito
e arguto, tomou-nos nos braços.
Nos EUA, Donald Trump condena, para as câmaras, a mesma violência que
exacerba, horas depois, no Twitter. Apela a uma América unida e tudo faz para
rasgar as feridas. Hostiliza a imprensa livre porque são fakes todas
as notícias que não se dediquem à promoção acérrima e acrítica da sua
fantástica presidência. A melhor de todos os tempos. Apela ao respeito que não
tem pelos adversários, nomeadamente, políticos. O mesmo homem que exaltou
o Lock her up! de Hillary Clinton e afirmou que Obama – que
nem americano era! – fundou o estado islâmico, chama, hipocritamente, à união
os americanos para repudiar actos de ameaças e violência política. Já sabemos
da sua coerência discursiva e não só; depende da ocasião e do interlocutor.
No Brasil, parece que Bolsonaro tem vindo a perder pontos para Haddad,
nos últimos dias. O Messias (haja ironia!) já veio dizer que
só perde se houver uma fraude eleitoral, como já antes tinha dito que só
aceitaria os resultados das eleições se ganhasse. Gritar ameaças, espalhar a
confusão, semear a discórdia e instigar à agitação social. Sempre de forma
cobarde, sem sair do conforto do sofá, porque, como se sabe, o homem convalesce
de uma facada, que deve agradecer todos os dias, pela facilidade divina com que
conseguiu escapar de qualquer debate político sério, mostrando tudo o que não
tem para apresentar aos brasileiros.
É o mesmo princípio. Se me convém, está tudo bem. Se não, é uma fraude.
A Folha de São Paulo sucks too. Como fede tudo o que se meter no
caminho destes tresloucados salvadores da pátria. Se for possível tirar alguma
coisa boa desta indecente demência que atormenta os nossos dias, que seja não
deixarmos Portugal refém do medo nem cair nas garras do ódio.
P.S.
Já depois de ter publicado este post, li isto.