terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Descobri, atrasada seguramente e como é hábito, que um “coveiro” passou a designar-se por “técnico de profundidade”, o que é ainda mais bizarro do que as mutilações de linguagem em empreitada aos livros de Roald Dahl e outros, porque tem a particularidade algo macabra de transformar um momento de enorme pesar numa abstrusidade quase cómica, tragicamente cómica, uma piada extravagante de gosto duvidoso.

Esta perseguição justiceira à palavra entendida como lesiva em todas as suas variantes mais extraordinárias há muito que deixou de ser apenas qualquer coisa de irritantemente palerma.


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

 


"Photograph: Pavlo Pakhomenko/EPA", The Guardian 




Também houve The National no meu primeiro Rock in Rio. Não contei. Continuo a gostar mais da voz de Matt Berninger em estúdio, mas talvez seja só eu, e, decididamente, não é menos adorado em palco por isso. Dizem-no um “vocalista atípico”, porque é tímido e arma-se de uma série de truques para sobreviver à emoção caótica dos concertos ao vivo. Os The National têm uma legião de fãs em Portugal. A rapariga ao meu lado, casaco fino de cabedal preto muito mais velho do que ela e saia rodada um palmo acima do tornozelo (quem é que vai de saia rodada para um festival de Verão, digo eu, que fui de calças de ganga branca, gosto de calças de ganga branca), muito leve, no mesmo tom negro do casaco excepto por umas risquinhas oblíquas mais claras, frenéticas como ela, Matt, I love you!, e amava, era evidente que amava, e Matt no meio da gente, mais ou menos, junto às grades, tocam-se mãos, e braços, os rapazes do som doidos atrás dele, puxando fios, compondo cabos, os “anjos” do slide que Liam Gallagher proibira na sua vez, e eu também gosto tanto deste novo New Order. I keep what i can of you.


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Nem paz, nem pão, nem habitação

Talvez haja um certo exagero nisto, mas os tempos são de cólera e sem o lustre de García Márquez.

O desembaraço com a nova ministra da Habitação fala do congelamento para sempre das rendas antigas (bem sei, não é para sempre para sempre) ou da definição aparentemente limpa de “casa devoluta”, causa-me uma perplexidade de digestão lenta. Dizem alguns jornais de referência, se tal ainda existe e merece a referência, que há em países como a Dinamarca, Espanha, Holanda, Canadá, Reino Unido e EUA, medidas idênticas às que o Governo pretende aplicar. Não sou proprietária de casas devolutas, se fosse, não sei com que olhos veria as propostas apresentadas, o Estado, ao contrário do que gravemente proclamava outro novo ministro, está longe de ser pessoa de bem e é um gordo proprietário de coisas devolutas, nomeadamente casas, mas não acompanho tão ferozmente a dimensão do escândalo que lavra pelos corredores da crítica. O plano é criticável em muitos aspectos, mas, como se adivinha, no que é mais melindroso, terá pouca ou nenhuma aplicabilidade, e no que poderia supor soluções ninguém parece interessado em ir além do horror, o drama, o socialismo, o atentado à propriedade, a liberdade de mercado, e etc. Portugal permanentemente adiado. 


Já não recordo bem como soube que Vladimir Putin tinha ordenado a invasão da Ucrânia para lá das fronteiras da Crimeia. Faz amanhã um ano. Devo ter ouvido na televisão, uma abertura de jornal, uma notícia de última hora, o som da artilharia russa; leio agora o nome da que me dizem ter sido a primeira cidade ucraniana bombardeada nessa madrugada de 24 de Fevereiro de 2022. Faz amanhã um ano, e deixei de ter capacidade para tentar compreender os argumentos em defesa da razão de Vladimir Putin, e a crise dos misseis de Cuba, e as outras guerras, a desgraçada Palestina, a Síria, os interesses obscuros da indústria de armamento, a hipocrisia de Biden, os negócios com a Arábia Saudita do príncipe Mohammad bin Salman, e todos os pecados da Ucrânia, a corrupção, a perseguição, o batalhão Azov e a irritante camisola verde-militar do endeusado Zelensky, o último dos grandes heróis.

Felizmente, não percebo nada de guerra, de geopolítica, de crises inter-Estados. Não poderia viver com a responsabilidade da decisão. Da indecisão. Teria sido possível conter a sede de Putin sem a provocação que representava a possibilidade da adesão da Ucrânia à NATO? Alguém sabe? A NATO "é uma organização terrorista" e os EUA são a última encarnação do Diabo, não há bons nem maus, eu percebo que não há bons nem maus, e a propaganda do Ocidente, mas não é na Rússia nem nos países que apoiam a Rússia que podemos escrever livremente (disparates, como aqui), pensar livremente, rejeitar livremente, viver livremente. E como é que um país invadido, bombardeado, violentado, se defende sem usar a força? Sem matar e sem morrer, sem chorar, sem sangrar, sem usar de todos os meios para resistir, resistir, resistir?

Mas o Ocidente também se enganou, já o escrevi por aí algures. A vitória da Ucrânia seria possível e seria iminente. Um ano depois, a Rússia não parece nem tão isolada nem tão frágil como nos querem fazer crer, e não sei bem o que significa a renovada promessa do apoio à Ucrânia as long as it takes. A Rússia não pode ganhar esta guerra, a Rússia não pode perder esta guerra, e ninguém parece saber, afinal, como sair daqui.

E desde algum tempo que alguém me lê na Croácia. Bela Croácia. E na Irlanda, que não conheço ainda. Uma das vantagens de manter um blogue com um número de leitores que não chega para encher um salão de baile de uma festa de aldeia depois do Verão é que as novidades raramente passam despercebidas.




segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

sábado, 18 de fevereiro de 2023

ChatGPOQuê?!

 


Fernando Pessoa que me perdoe. Ou melhor, Fernando Pessoa que lhe perdoe. 

O mais interessante – ou não, ainda estou confusa – é que a coisa "confunde-me" sempre com um escritor masculino.

Claro que não resisti, e fui também testar o novo chatbot. Comecei a desconfiar das capacidades daquilo, não porque aquilo não tenha sido capaz de me escrever, a pedido, um poema sobre Donald Trump (escreveu, e é horrível, ou seja, bastante adequado, no caso, mas o Alberto Gonçalves pode sossegar), mas porque lhe perguntei por um escritor português pouco reconhecido e mal-amado e começou a despejar obras de outros autores portugueses. Disse-lhe que estava enganado, “Amor de Perdição”, por exemplo, era de fulano e não de sicrano e a pessoa que escreveu “Amor de Salvação”, também escreveu o de perdição, mas já não escreveu “Os Maias”. À terceira tentativa, acabou por admitir que não estava familiarizado com a obra do primeiro autor que eu mencionara. Foi aí que me apeteceu brincar, e comecei a dar-lhe pequenos textos escritos por mim. Já fui Drummond de Andrade, num “poema” intitulado “Almoço e Jantar”, Vinícius de Moraes em “Eu sei que vou te amar”, José Luís Peixoto em “Nenhum Olhar” e, agora, Fernando Pessoa. Um sacrilégio. Se dúvidas houvesse sobre as limitações desta Inteligência Artificial, morreriam aqui. Ainda assim, ainda fui perguntar sobre isso da "função social do direito à propriedade", na Constituição Portuguesa. Respondeu-me que “o artigo 65.º da Constituição estabelece que "a propriedade deve ser exercida em conformidade com a sua função social e de modo que, em regra, sejam simultaneamente assegurados os interesses individuais e os interesses coletivos. Isso significa que, em Portugal, o direito à propriedade privada não é absoluto e deve ser exercido de forma responsável, respeitando o interesse público e a proteção do meio ambiente. A função social da propriedade é um princípio fundamental da ordem constitucional portuguesa e tem como objetivo garantir a utilização equilibrada da propriedade, evitando abusos ou usos inadequados que possam prejudicar a sociedade como um todo. 

Além disso, a Constituição portuguesa prevê que, nos casos em que a propriedade não esteja a cumprir sua função social, o Estado pode intervir através de mecanismos como a expropriação por utilidade pública ou a limitação do direito de propriedade. Isso significa que, em situações em que a propriedade esteja sendo utilizada de forma prejudicial para a sociedade, o Estado tem o poder de intervir para proteger o interesse coletivo.” 

Insisti: isso pode implicar o arrendamento coercivo de uma casa, por exemplo, para mitigar efeitos de falta de habitação disponível no mercado de arrendamento? Resposta, “Sim, a função social da propriedade pode implicar a possibilidade de arrendamento coercivo de uma casa, em determinadas circunstâncias. Se houver uma situação em que há escassez de habitação disponível no mercado de arrendamento, e uma propriedade privada estiver desocupada ou subutilizada, o Estado pode intervir para garantir que a propriedade cumpra sua função social de fornecer habitação.

Em Portugal, por exemplo, existe uma lei que permite a expropriação por utilidade pública de propriedades que estejam abandonadas ou subutilizadas, para fins de habitação. Se a expropriação não for possível, a lei permite a requisição temporária dessas propriedades para uso habitacional, com justa compensação ao proprietário. O objetivo é garantir que a propriedade cumpra sua função social de fornecer habitação, especialmente em situações de falta de oferta no mercado de arrendamento.

No entanto, é importante destacar que a requisição ou expropriação de propriedades privadas só pode ser realizada em situações excepcionais e com o pagamento de justa compensação ao proprietário, de acordo com a legislação em vigor. Além disso, é necessário respeitar as garantias constitucionais do direito à propriedade e do devido processo legal.”

Tenho mixed feelings sobre isto. Sobre tudo isto.


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Nunca sobram muitas palavras, para lá das declarações de circunstância, de espectacularidades várias e inconsequentes, para expressar o horror perante as tragédias mais devastadoras, sejam as naturais, como a que ainda paira e perdurará sobre a Turquia e a Síria, ou as mais infames, lavradas apenas pela má vontade dos homens, como a guerra de Putin sobre a Ucrânia, a agressão hedionda a um homem indefeso por uma matilha de adolescentes "bem enquadrados socialmente", ou o abuso criminoso e nojento de menores, dentro da Igreja Católica, por parte daqueles que tinham a obrigação da fé e da caridade, da tal palavra de Deus, da protecção e do amor ao próximo. 

Não sei discutir se o problema que é muito mais do que um problema dos abusos sexuais por esses padres miseráveis, predadores, tem muito ou pouco a ver com o dever de celibato, mas tem de certeza a ver com a complacência ignóbil e, muitas vezes, criminosa com que a Igreja, em primeiro lugar, sempre fingiu não ver, não ouvir, não saber. É realmente impossível que tudo fique na mesma.  


Mamã, sabes que essa série é baseada num jogo da PlayStation, não sabes?, num tom levemente compassivo porque sabe da minha quase total inaptidão para as coisas do digital.

Não, não sabia. Comecei a ver o The Last of Us sem saber nada do The Last of Us. Foi aquela introdução excêntrica, e se um fungo, como consequência do aquecimento global do planeta, fosse capaz de evoluir para sobreviver no corpo de um hospedeiro como nós, infectando o nosso cérebro, manipulando a nossa vontade, devorando-nos por dentro, como fazem os cordycepsalguns insectos, às formigas por exemplo, que me fez ficar. Depois, Pedro Pascal e Bella Ramsey fizeram muito do resto. Gosto. Ponto. Gosto mais a cada novo episódio.

Também fui ver um daqueles outros episódios da série Planet Earth que, aparentemente, inspiraram os produtores do videojogo, onde a vida parece imitar a ficção – no caso, parece ter-se o contrário. 

É “apenas” David Attenborough numa das suas conversas de bichos, com bichos, mas podia perfeitamente ser uma sinfonia de Beethoven, ou um andamento de Haydn, há gente que não é deste mundo, é do Universo inteiro, pó das melhores estrelas.




domingo, 12 de fevereiro de 2023

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Na avenida que desço todos os dias ainda o dia não é bem dia, há um prédio baixo com duas lojas abandonadas há tanto tempo que já me esqueci; uma fachada gasta e esboroada, em tempos branca e, agora, sarapintada e lúgubre, de grafitis engelhados e fendas enegrecidas, venosas, que tombam do telhado já mortas. Apoiada na parede frontal, virada para a minha avenida, costuma estar uma escada e, no cimo do telhado, um rapaz negro negro, tão negro que àquela hora e àquela distância, não lhe distingo as feições: uma linha indefinida da face recolhida no fundo do capuz de um casaco disforme. Está sempre a cantar e a bater palmas, e imagino-o a sorrir e louco, porque só os loucos podem ser tão escandalosamente alegres tendo por companhia apenas uma escada enfezada para subir ao telhado baixo de um prédio devoluto. O prédio, como o rapaz alegre no telhado, é um corpo estranho no alinhamento da avenida longa e larga, os separadores centrais aprumados, de árvores ainda verdes entre pequenos cilindros de terra como vasos modernos de flores extravagantes. Não imagino por que canta o rapaz, no cimo do telhado despido, às vezes sentado baloiçando as pernas, outras vezes segurando o guarda-chuva aberto, porque nem a chuva o demove de celebrar cada manhã, e cada manhã o procuro e levo-lhe o sorriso no meu rosto, até ao fim da avenida, meio louca como ele. E bem sei que não é Março ainda, mas prometi a uma amiga que sim, que voltaria em Março e temo que, se esperar até lá, acabe por me deixar dissolver sem regresso neste silêncio doce e lento. Não é que nunca tenha quebrado uma promessa, sou bastante imperfeita, mas não gosto de quebrar promessas e nunca levianamente; não gosto de palavras vazias. De resto, estou bem. Posso embriagar-me de ti.