Na
avenida que desço todos os dias ainda o dia não é bem dia, há um prédio baixo
com duas lojas abandonadas há tanto tempo que já me esqueci; uma fachada gasta
e esboroada, em tempos branca e, agora, sarapintada e lúgubre, de grafitis engelhados
e fendas enegrecidas, venosas, que tombam do telhado já mortas. Apoiada na
parede frontal, virada para a minha avenida, costuma estar uma escada e, no
cimo do telhado, um rapaz negro negro, tão negro que àquela hora e àquela
distância, não lhe distingo as feições: uma linha indefinida da face recolhida
no fundo do capuz de um casaco disforme. Está sempre a cantar e a bater palmas,
e imagino-o a sorrir e louco, porque só os loucos podem ser tão
escandalosamente alegres tendo por companhia apenas uma escada enfezada para
subir ao telhado baixo de um prédio devoluto. O prédio, como o rapaz alegre no
telhado, é um corpo estranho no alinhamento da avenida longa e larga, os separadores
centrais aprumados, de árvores ainda verdes entre pequenos cilindros de terra
como vasos modernos de flores extravagantes. Não imagino por que canta o rapaz,
no cimo do telhado despido, às vezes sentado baloiçando as pernas, outras vezes
segurando o guarda-chuva aberto, porque nem a chuva o demove de celebrar cada
manhã, e cada manhã o procuro e levo-lhe o sorriso no meu rosto, até ao fim da avenida, meio louca
como ele. E bem sei que não é Março ainda, mas prometi a uma amiga que sim, que
voltaria em Março e temo que, se esperar até lá, acabe por me deixar dissolver
sem regresso neste silêncio doce e lento. Não é que nunca tenha quebrado uma
promessa, sou bastante imperfeita, mas não gosto de quebrar promessas e nunca
levianamente; não gosto de palavras vazias. De resto, estou bem. Posso
embriagar-me de ti.