sábado, 11 de fevereiro de 2023

Na avenida que desço todos os dias ainda o dia não é bem dia, há um prédio baixo com duas lojas abandonadas há tanto tempo que já me esqueci; uma fachada gasta e esboroada, em tempos branca e, agora, sarapintada e lúgubre, de grafitis engelhados e fendas enegrecidas, venosas, que tombam do telhado já mortas. Apoiada na parede frontal, virada para a minha avenida, costuma estar uma escada e, no cimo do telhado, um rapaz negro negro, tão negro que àquela hora e àquela distância, não lhe distingo as feições: uma linha indefinida da face recolhida no fundo do capuz de um casaco disforme. Está sempre a cantar e a bater palmas, e imagino-o a sorrir e louco, porque só os loucos podem ser tão escandalosamente alegres tendo por companhia apenas uma escada enfezada para subir ao telhado baixo de um prédio devoluto. O prédio, como o rapaz alegre no telhado, é um corpo estranho no alinhamento da avenida longa e larga, os separadores centrais aprumados, de árvores ainda verdes entre pequenos cilindros de terra como vasos modernos de flores extravagantes. Não imagino por que canta o rapaz, no cimo do telhado despido, às vezes sentado baloiçando as pernas, outras vezes segurando o guarda-chuva aberto, porque nem a chuva o demove de celebrar cada manhã, e cada manhã o procuro e levo-lhe o sorriso no meu rosto, até ao fim da avenida, meio louca como ele. E bem sei que não é Março ainda, mas prometi a uma amiga que sim, que voltaria em Março e temo que, se esperar até lá, acabe por me deixar dissolver sem regresso neste silêncio doce e lento. Não é que nunca tenha quebrado uma promessa, sou bastante imperfeita, mas não gosto de quebrar promessas e nunca levianamente; não gosto de palavras vazias. De resto, estou bem. Posso embriagar-me de ti.