quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Inocente Perfídia

A aia entrou nos aposentos e fez uma ligeira vénia.

    – Mylady, a carruagem está pronta. O senhor vosso pai aguarda-vos.

    Levantou ligeira e discretamente a cabeça para admirar a noiva. Estava linda. A mulher mais bela que alguma vez se havia visto nas cortes da época. Sem dúvida, a mulher mais bela que ela alguma vez conhecera.

 

    Olhou-se ao espelho, uma última vez, demoradamente.

   Vestia um traje riquíssimo, sinal da abastada condição social a que, por direito, pertencia. O vestido, branco como a neve, era bordado com delicados fios de ouro que alastravam pela mais fina seda, desenhando ricas e impetuosas pregas até à orla do decote quadrado, para aí pousarem, acariciando o colo macio e leitoso, prenúncio de desgraça, já, de tantos nobres. Uma faixa de brocado dourado envolvia-lhe a cintura estreita, como o abraço delicado de um amante. No cabelo, sedoso e doirado como uma luminosa manhã de primavera, repartido por duas magníficas tranças, repousava um fino diadema cravejado das mais graciosas, raras e sumptuosas pedras preciosas. O brilho das jóias iluminava a face da noiva tonando-a ainda mais angelical.

    Estava linda, sim. Era quase afortunada.

  Vestira-se ricamente e a rigor para se unir a um homem que não conhecia, cumprindo uma promessa de seu pai. Um acordo político com vista a unir duas partes poderosas do reino, em que o único papel que lhe cabia era o que aquele majestoso espelho lhe devolvia. De momento.

  Esforçou-se por pensar com clareza e com apurado optimismo. Afinal, não era apenas uma mulher admiravelmente bela. Era astuta e, sobretudo, poderosa. Beleza, inteligência e poder. Sim. Talvez também ela tivesse algo a ganhar com a união, ainda que forçada. Por um instante, os seus olhos pareceram encher-se de lágrimas, mas foi apenas um momento fugaz. Por enquanto, só ela se sabia capaz. 

"E pur si muove..."

Também há belas lendas na história das ciências. Uma delas narra Galileu expiando a humilhação numa tímida revelia: obrigado a renegar a verdade científica para escapar à morte na fogueira que a Inquisição mantinha acesa e reservada aos perigosos hereges da época, terá suspendido num sussurro a sua crença mais profunda: “E, no entanto, ela move-se”.

Quando, nos dias de hoje, observamos os avanços da ciência, porque dela somos parte indissociável, pasmamos com tudo o que ela nos permite, nas mais variadas áreas. Para a ciência, parece não haver impossíveis, antes incompetências inconstantes, passageiras, que se aligeiram com o tempo e com o progresso. Os prodigiosos avanços científicos explicam hoje o que ontem espantava e, amanhã, lançarão luzes sobre as presentes trevas. É assim que o mundo pula e avançaapoiado nos ombros dos gigantes, enormes, sagazes, que, não só sonham, como procuram, questionam e experimentam. Se a ciência o permitir, cedo ou tarde, o Homem alcançá-lo-á.

A ciência e a religião são totalmente incompatíveis para muitos homens e mulheres da ciência. Peter Atkins reafirmou-o, por estes dias, em Lisboa, como já Stephen Hawking sentenciara que há-de chegar um momento em que não precisaremos de Deus para explicar a origem do Universo.

Há, no entanto, os que crêem, sem remorsos ou constrangimentos, em Deus e na ciência. E há os que, com inabalável tenacidade e descaramento, crêem na ciência para se aproximarem do papel destinado unicamente, pelos devotos, a Deus.

O mais recente dos intrépidos é o chinês He Jiankui. “Silenciou” um gene matreiro. E nasceram, parece, os primeiros bebés editados. Geneticamente. Lulu e a Nana possuem agora, eventualmente, a capacidade para resistir a uma futura infecção por VIH. Nunca, até agora, dizem, um investigador tinha conseguido fazer nascer um bebé com genes modificados e o geneticista já fez saber que há um terceiro bebé editado a caminho. A expressão continua a arrepiar, embora, a “edição genética” tenha nome – CRISPR-Cas9 – e haja algum trabalho experimental na área. Mas nada com tanta audácia e ninguém arrisca muitas explicações. Nem o próprio, de momento.

He Jiankui diz, pelo menos, em público, ser contra o uso da edição genética para melhorar características do ser humano, como a inteligência ou a cor dos olhos. Eventualmente, a beleza, a força física. Mas, se tiver conseguido o que reclama, é capaz de vir a mudar de ideias. Se não for ele, virão outros, mais destemidos, mais arrojados. Já não há fogueiras e, em breve, talvez deixe de haver consciências. Apenas vontades. Nem certas, nem erradas, nem boas, nem más.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Black Friday, ou o jeito e a arte de nos portarmos como selvagens

Nos EUA, pode ser "Bloody Friday", por cá, pode ser "Black Fraud", e as imagens que vemos na telvisão deixam pouco mais à imaginação. Resta-nos observar com horror. Atropelos, insultos, agressões, adultos a arrancarem, literalmente, os ansiados objectos das mãos de crianças inocentes que pais com pouca consciência atraem para o selvagem tumulto...a Humanidade no seu melhor, cujo modelo já começamos a copiar com zelo, que nunca queremos ficar para trás, no que toca à modernidade.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Teorias da conspiração, ou, talvez, não...sei.

“Há uma conspiração de extrema-direita a nível internacional, muitíssimo bem pensada, bem planeada e que vem sendo executada passo a passo”, assim começava no início deste mês, Miguel Sousa Tavares, uma das suas crónicas semanais no Expresso. E, a seguir, referia que Steve Bannon era, não o único, mas o rosto mais visível dessa insidiosa construção.

Na altura, perguntei-me se Miguel Sousa Tavares não estaria a exagerar, um pouco ao seu estilo mais ou menos cáustico e, nem sempre, tão isento e impoluto quanto se gostaria, mas, todos temos os nossos pecados e quem não gosta, já sabe o que há-de fazer, que proliferam alternativas, inclusive às alternativas. Adiante. Seguramente, não sou só eu que reparo, mas, alguns cronistas da nossa prolífera e dotada praça mediática entretêm-se, muitas vezes, a mandar recados aos “inimigos” de profissão e de ideologia. Pode ser uma outra crónica, um desabafo num programa de televisão, uma piada radiofónica, enfim, na forma e no meio que estiver mais à mão, ou à boca, e, nisso, não há mal algum. Nem todos gostamos de falar sozinhos, como os malucos, e há dinâmicas bem interessantes. O caso é que, a teoria da conspiração de Miguel Sousa Tavares mereceu uma outra crónica, desta vez, no Observador de um outro autor que, na maioria das vezes, não leio, por nenhuma razão em especial. Acabei por ler por me sentir identificada com a dúvida: Miguel Sousa Tavares tem razão em levantar a suspeita da existência de uma gigantesca e perigosa conspiração, meticulosamente, ardilosamente pensada para usurpar a liberdade e a democracia, ou o senhor é apenas uma vítima da intensidade das suas próprias crenças políticas de proporções cósmicas?

As duas crónicas vão muito para além desta discussão, eu continuo cheia de dúvidas, mas, lembrei-me de ambas ao ler este artigo e de cujo teor o DN dá conta aqui.

Não sei se existe ou não uma tentativa concertada para elevar a extrema-direita ao poder, mas, há dias, também li que um em cada quatro europeus admite votar em partidos populistas, cujo número (também li) mais do que triplicou nos últimos 20 anos, e que, "Portugal, Estónia e Letónia são os únicos países da Europa que não elegeram nenhum populista", ainda.

Também há dias, num jantar com amigos, falávamos dos motivos (alguns deles) que levaram muitos a escolher um presidente como Jair Bolsonaro. Entre outras coisas, surgiu, inevitavelmente, a questão da segurança. “Sabes o que é estares permanentemente atenta à hora de chegada do teu filho da escola? Esperar que ele te ligue a dizer que está tudo bem?”, perguntava-se. Não, não sabemos. Mas, nos EUA, onde o acesso às armas é o que é, também podemos ter o azar, eufemisticamente falando para não endoidecer, de os nossos filhos estarem no lugar errado à hora errada. “Mas, nos EUA, não grassa a impunidade dos criminosos, como no Brasil”, é verdade. “Precisamos de alguém como ele”, para pôr ordem na casa; “se não cumprir o que diz, corremos com ele também!”, o que parece uma estratégia inteligente e, tão ou mais importante, infalível. Não fosse o caso de a História já ter demonstrado que correr com eles pode não ser tão fácil e limpo, como parecia e se esperava. É possível que Donald Trump volte a ganhar as eleições presidenciais em 2020. E se não ganhar?

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

“The world is a very dangerous place”

Deve ser difícil manter uma conversa séria com Donald Trump. Pelo menos, no que diz respeito a garantir uma presidência funcional de um país que se quer grande. Excepto no que toca a conversas de balneário ou negócios mais ou menos obscuros (aí, o homem agarra quem quer que seja, por onde quer que seja, ao estilo do que por cá chamaríamos um pato-bravo), o vocabulário do presidente dos EUA está ao nível de uma criança que ainda não completou o primeiro ciclo escolar. Tem uma mão cheia de adjectivos que oscilam entre o bomóptimomau, de vez em quando, um erudito perverso, eventualmente, apimentados com um eloquente muito e que servem para tudo, do clima às pessoas, dos ataques terroristas aos dantescos incêndios na Califórnia. As pessoas são boas, às vezes são mesmo great, ou, quando más, podem chegar a badbad people, a repetição elevando e enfatizando o grau de maldade do indivíduo.

O senhor presidente tem uma opinião forte acerca das alterações climáticas. Graças a um tio que, no caso, era mais do que great, era mesmo um brilliant genius – que a família tem bons genes, basta olhar para a Ivanka – e com quem também discutia questões nucleares all the time. Pela força, da opinião, o presidente quer e terá um evidentemente great clima para os EUA. Enquanto o bom clima não chega, os americanos vão aprender a prevenir incêndios com os finlandeses, que sabem o que fazem e têm bons solos. Também se requer bons solos. E ancinhos. Mas Trump está habituado a ter o que quer e, além disso, já falou com o presidente da Finlândia, alternativamente sobre este ou outros temas, é indiferente; o que conta é a intenção.

Noutro (perigoso) desvario caseiro, o presidente norte-americano recusou ouvir a gravação áudio do assassinato de Jamal Khashoggi. Já classificou o acto como perverso e como muito más as pessoas que o cometeram. Não quer ouvi-la e acha que não há razão nenhuma para que a ouça. Eu acho que é capaz de haver para cima de 100 mil milhões de razões para não alarmar o excelentíssimo príncipe da Arábia Saudita e Trump, ao contrário de uns quantos hipócritas, não tem pudor em lembrá-lo repetidamente. Afinal, a venda de armas é um excelente negócio, gera muitos, muitos empregos; a lot. Além disso, as pessoas têm direito a defender-se de ameaças, como se vê, semana sim, semana não, nos EUA. Esta semana foi em Chicago. Quando os professores americanos andarem armados, acabam-se os massacres. Como é que ninguém se tinha lembrado disso antes? E quando for o Jair a mandar, pode ser que todos os problemas da humanidade desapareçam por artes bélicas, pois teremos conseguido exterminar todos os maus da face da Terra; jamais os franceses voltarão a correr o risco de aprender alemão.

Entretanto, há milhares de refugiados às portas do EUA na fronteira com o México. Uma caravana, várias caravanas, amálgamas de sonhos desesperados, de esperanças indomáveis, voluntariosas, fazendo das fraquezas individuais uma força resistente que renasce, como uma fénix, das cinzas que tentam e teimam em deixar para trás. Trump não os quer há muito, o México não tem como continuar a querê-los e nós vamos suspirando com envergonhado e cobarde alívio, porque não chegou à nossa porta. Ainda. Como será, quando chegar? O que fazer entre a obrigação moral de ajudar quem precisa e a frustrante incapacidade de chegar a todos? E se, por um acaso do destino, a caravana nos transportasse a nós?

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Desgraças que nos confundem

A estrada ruiu entre Borba e Vila Viçosa e, na ruína, arrastou uma retroescavadora e dois automóveis e a morte de, pelo menos e de momento, duas pessoas. Também há desaparecidos, feridos, possivelmente, mais mortes e, como habitualmente, todas as críticas a uma desgraça anunciada. Começa, mais uma vez, o circo de especialistas e contra-especialistas que, muitas vezes, na posse das mesmíssimas informações, conseguem a extraordinária proeza de tirar conclusões completamente antagónicas. Eu sei que é possível. Na última reunião de condomínio a que assisti, e também a propósito de umas obras, uma advogada dizia a outro condómino presente: “não preciso de ver (um parecer jurídico que aquele lhe tentava mostrar); amanhã, podia entregar-lhe outro a dizer exactamente o contrário”. Incrível, não é? Se há testemunhos da fragilidade do estado da estrada, também há quem garanta a sua perfeita segurança. Como se viu.

Depois da tragédia, das mortes estúpidas, banais, insignificantes, uns senhores mais ou menos doutos e mais ou menos engravatados vêm (mais hão-de vir) tentar explicar o inexplicável; outros tantos, fazer o jogo do eu avisei. Toda a gente via e sabia e ninguém quis ver o suficiente e nem saber de mais nada. Morre-se tantas vezes por incúria, por ignorância, por incompetência, por despachos assinados das nove às dezasseis, por falta das verbas que parecem nunca falhar na hora de renovar frotas e gabinetes dos representantes da nação espoliada. Não será comparável, mas é nos detalhes que ele costuma estar. Os infortúnios mais ou menos previsíveis, principalmente os alheios, podem sempre esperar por dias melhores. No caso deste, a contagem ia, pelo menos, em 4 anos. Teria ou não sido evitável este acidente? Vamos ter o direito a conhecer alguma verdade, a pedir responsabilidades, se as houver?

Nos próximos dias, abrir-se-ão inquéritos, pedir-se-ão relatórios e exigir-se-ão, eventualmente, demissões. Ou não. Há desgraças mais merecedoras do que outras. É provável que o nosso popular Presidente venha reconfortar os familiares das vítimas, exigir respostas e prometer justiça doa a quem doer. Dói sempre aos mesmos e nunca ninguém tem culpa.

Há cerca de oito meses, a revista Visão denunciava uma situação de urgência na execução de trabalhos de manutenção da Ponte 25 de Abril, cuja segurança podia estar em causa. O LNEC avisava o Governo que, na ausência de obras, poderia vir ser necessário restringir-se o tráfego de pesados e de comboios de mercadorias, na ponte. O mesmo LNEC veio, depois do alarme que a notícia gerou, sossegar-nos, não era bem, bem uma questão de risco, de colapso iminente. Era uma necessidade um pouco mais que poucochinha. Pelo sim, pelo não, foi anunciada, na altura, uma verba de 18 milhões de euros para proceder a obras urgentes. Que não começaram ainda. Vejamos se a urgência, que tanto se apregoa e sempre se atrasa, chega a tempo de prevenir outra calamidade. 

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Pela Importância das Palavras

Já foi escolhida a palavra do ano. É “tóxico”. Discordo, de forma arejada e consciente. Acho que a palavra do ano – deste e, se calhar, dos vindouros – devia ser duvidar, ainda que com moderação. Não só duvidar das notícias pré-fabricas e arremessadas para as redes sociais com o intuito de provocar o maior número de danos colaterais, mas também das estouvadas soluções radicais e milagreiras que tudo tornarão grande outra vez, das nações aos clubes de futebol. Se duvidarmos talvez possamos existir melhor, porque mais conscientes do logro pérfido com que nos confundem, entregando-nos, como rebanhos, nas mãos desses magníficos cavaleiros dos tempos modernos, já sem capa e sem espada, mas empunhando sofisticadas armas, em sentido literal ou tecnológico.

No arsenal de guerra tecnológico, o WhatsApp matou, recentemente, dois homens inocentes. Inconscientemente, puseram-se a (esse insuportável!) jeito e à mercê dessas massas ultrajustas, supramoralistas, mobilizadoras da vontade do povo e, sobretudo, pró-justiceiras por meios céleres e próprios. O facto de os homens serem inocentes é um pormenor de importância nada maior. Servirá como exemplo e forma de intimidação sobre más-intenções futuras. Afinal, na guerra também morrem inocentes em prol de objectivos muito nobres, como a busca pela ansiada paz que teima em não chegar a todos. O importante é mostrar que acabou o tempo em que a culpa morria solteira. Se é possível casar à primeira vista, por maioria de uma necessidade imperativa há-de ser permitido condenar à morte ao primeiro relance e rumor de suspeita. A bem da ordem, da moral e dos bons costumes não deve dar-se à justiça um tempo que corre lesto e sôfrego na procura de soluções à medida, para todos os gostos e necessidades. Na urgência da luta contra os demónios que nos assaltam não cabe a ponderação nem a justiça das leis que urdimos para construir sociedades mais igualitárias. Essas, falharam-nos estrondosamente. O povo, cansado de todos os males que minam o seu bem-estar, quer dar a voz e a vez aos destemidos com mão de ferro que prometem o paraíso, seja na sua grandiosa terra, ou no seu modesto quintal.

Já não se enganam os tolos só com papas e bolos. Mas não é pela elegância da mentira e pelo assombro das causas que o engodo deixou de servir o seu propósito. E, por isso, a dúvida deve resistir; se não acima de tudo, para que, pelo menos, não prevaleça a confiança absoluta dos estúpidos.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

E o que é que vestia?

Há mulheres que não aprendem. Ou se põem a jeito ou põem cuecas de renda. Ou usam fio dental ou não apertam as pernas com firmeza. Ou dançam de forma sensual ou saem sozinhas à noite. Ignoram que os homens são predadores implacáveis, cheios do recato que lhes falta a elas, lobos com peles de cordeiro, sempre à espreita, à espera do convite fortuito, mas eloquente e irrecusável. O que elas querem, sabem eles. E sabem todos, sem excepção. Os que não sabem, não são bem homens. A ocasião faz o ladrão e as mulheres impudicas fazem os violadores.

“Têm de olhar para a maneira como ela estava vestida. Usava um fio dental com a frente em renda”, advertiu a competente advogada, no tribunal, numa tanga sem renda. Que tamanho ultraje! Como é possível, tão pouca vergonha? Há mulheres que são umas galdérias, de facto. Galdérias e ignorantes, pois, desconhecem que há homens, parece que todos, que não resistem a uma provocadora cueca de renda e fio dental. Que extraordinário descanso saber que há outras mulheres que nos alertam para o perigo que o nosso traje, o interior também, representa para os incautos. Só as mulheres recatadas – e parece que também as feias – nunca são assediadas ou violadas. Mas, as feias não contam, porque não merecem. Basta ler jornais. Ou perguntem aos homens, esses seres acéfalos, que não podem ver uma mulher de saias ou de rendas, porque a irracionalidade primária nunca os abandonou, coitados, apesar de séculos de evolução. As mulheres sérias e compostas não provocam sensações pecaminosas. Já as do tipo leviano e atiradiço são verdadeiros shots de excitação e adrenalina; um perigo para o fraco homem comum. As desse tipo deviam ficar em casa, trancadas nas torres mais altas e inacessíveis, com um espelho mágico a quem, por descanso, perguntar, espelho meu espelho meu, já estou em modo camafeu?, e, então, gozar da segurança e condições necessárias para preservar a honra.

Vítima que é vítima não provoca, não instiga, não socializa indecentemente. Vítima que é vítima chora e grita, arranha e defende-se. Vítima que é vítima comporta-se da forma correcta e, sobretudo, não vai em tangas – e, logo, de renda – a lado nenhum.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Não acredito, porque posso!

“Funcionário do PNR que publicou imagem falsa de Catarina Martins no Facebook foi afastado”.

A imagem em causa (vale a pena ler o Polígrafo) dava conta de que Catarina Martins teria afirmado que a cultura islâmica é “superior á nossa”, e nem o erro básico de ortografia foi suficiente para agitar a desconfiança do excelso membro do PAN, Partido Nacional Renovador. O secretário-geral do PAN acha que o colega se excedeu, o PAN não tem por hábito veicular fake news sobre quem quer que seja, mas, a autenticidade da imagem não foi confirmada porque, ao “colega”, “ela fazia sentido”. E é este “ela fazia sentido” que é um diabo de detalhe. Fazia sentido porque é mais fácil acreditar nas pessoas de quem gostamos e acusar aqueles de quem não gostamos. Para alguns, o gostar e não gostar é levado ao extremo. Mesmo que não sejam eles os autores do boato, não se importam de o espalhar, levianamente, porque o único critério é acreditar no que mais lhes convier.

Os que hoje se informam pelas redes sociais, em detrimento do jornalismo de referência (aproveito para subscrever tudo o que li neste texto), acreditando cegamente (muitas vezes, acefalamente) em tudo o que é veiculado pelo grupo a que pertencem, fazem-no porque podem, porque querem ou porque não se interessam, desde que isso garanta muita aceitação social, muitos gostos e muitos seguidores? O fenómeno da propagação da mentira como forma de alcançar um determinado objectivo não é novo. O perigo actual talvez não esteja tanto na facilidade-barra-rapidez com que essa mentira se espalha, mas na indiferença com que consumimos essa mentira. E consumimo-la tanto melhor quanto mais predispostos estivermos a aceitá-la.  A normalização de comportamentos que, não há muito tempo, escandalizariam mais de meia nação é só mais um degrau na alienação dos novos tempos. A indignação passou a ser medida, não pela indignidade do acto, mas pela importância de quem o pratica. E a importância também depende do grupo a que se pertence, das mulheres que se põem a jeito, aos deputados que pintam as unhas ou são contra touradas e que, entretanto, viajam - de avião ou não - entre moradas reais e moradas relevantes para os devidos efeitos.

A evolução tecnológica é uma das grandes conquistas da Humanidade. Não há qualquer dúvida e nem volta-atrás. Mesmo para os mais conservadores e inábeis (onde me incluo) são evidentes as suas vantagens. Mas – como dizia um professor meu – por cada patamar que subimos, pagamos um preço. A evolução também não é grátis, e há sempre alguém inteligente e competente o suficiente para se aproveitar da incapacidade dos outros, da sua ignorância ou, pior, da sua indiferença.

Há umas semanas, um quadro produzido por inteligência artificial foi a leilão na conhecida e reputada Christie's, acabando a ser vendido por mais de 400 mil dólares. A tecnologia GAN tanto permite pintar ou desenhar, como manipular imagens para colocar alguém a dizer ou a fazer algo que nunca fez ou disse. E, não, não estamos a falar da manipulação caseira do vídeo que a Casa Branca divulgou para justificar o afastamento de um incómodo Jim Acosta. É mais do género se o George Clooney (ou a Jennifer Lopez, ou o que a sua imaginação ditar) lhe oferecer flores e você não for a Amal Alamuddin, isso é capaz de ser o GAN.

Passaremos de acreditar em fake news para viver fake lives.  A não ser que passemos a ser mais exigentes com quem tem a responsabilidade de nos informar.

domingo, 11 de novembro de 2018

BdC foi detido. Olha que chato...

O meu interesse por futebol é praticamente nulo. Com excepção dos jogos da selecção nacional – quando me deixo animar por uma espécie de patriotismo saloio, muito anterior às auspiciosas bandeirinhas do Scolari – não tenho especial apreço pelo espectáculo e, seguramente, não entendo o delírio das massas associativas e dos adeptos, embora tenha ido muitas vezes, com o meu pai (sócio cativo do FCP durante muitos anos) e a minha irmã, ao antigo estádio das Antas; era no tempo em que ainda podíamos frequentar estádios de futebol sem medo de lá deixar parte da nossa integridade física e moral.

Se interesse tenho pouco, conhecimentos futebolísticos tenho nenhuns. Nunca percebi bem o que é um fora de jogo e acho que sei reconhecer um golo porque a baliza é grande e até para a ignorância há um certo limite. Mas, o caso Sporting-Alcochete-Bruno-de-Carvalho-e-os-seus-fantoches interessa-me porque sai um pouco da esfera do futebol. É o caso de um narcisista fanfarrão e lunático, com tiques de autoritarismo rasteiro e pífio, aspirante a Deus, que usou e atiçou um grupo de arruaceiros para – mantendo as suas mãos limpas como Pilatos – impor um correctivo exemplar a um grupo de meninos mimados e desagradecidos que não adoravam o mestre, como lhes era devido.

Apesar de todas as tentativas, algumas ridículas e outras cobardes, para fingir que não tinha qualquer responsabilidade nos actos de inacreditável violência gratuita e aparente retaliação (por maus resultados do clube?) que tiveram lugar na Academia de Alcochete, as autoridades parecem estar na posse de provas que podem fundamentar a culpabilidade de Bruno de Carvalho enquanto mandante do ataque canalha.

Ao contrário de novas e sombrias agendas, as palavras são, de facto, poderosas e – do futebol à política – há, para muitos e perigosos protagonistas, uma retórica minuciosamente pensada e usada para promover o ódio, acicatar as hostes e provocar estragos selectivos, que venham a servir de meios para atingir ambiciosos fins.

As implicações da detenção de Bruno de Carvalho no mundo do futebol e das finanças do clube a que presidiu interessa-me pouco ou nada. Importam-me, sim, as consequências que isso possa vir a ter como contributo para limitar uma forma emergente de reinar pelo medo e pela intimidação. Se não o permitirmos no futebol, talvez possamos ter a esperança de não o virmos a permitir noutras áreas muito mais importantes para a sobrevivência da nossa democracia.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Como é que se diz "corninhos", em alemão?

Manuel Alegre só em parte tem razão. Há touradas que criam Bolsonaros, mas não são as que correm dentro das praças, entre o manejo de bandarilhas e trajes de seda e veludo, embora também não lhes falta a arte.

Andam a fazer-nos corninhos há muito tempo e a prática não foi iniciada por Manuel Pinho, embora este a tenha magnificamente ilustrado.

Já fomos toureados pelos mais ilustres da nação, pelos Donos Disto Tudo e mais alguns, dentro e fora de comissões de inquérito – ora sem, ora com a complacência dos inquiridores – com armas e sem armas, em entrevistas viciadas e bajuladas, em pregões vazios de apuramentos de verdades várias e, desde ontem, passaram, inclusive, a tourear-nos em alemão e sem necessidade de vistos gold.

Ah, que país fantástico! Consigo perceber melhor o louco entusiasmo de Paddy Cosgrove quando decidiu assentar por cá arraiais tecnológicos de ponta.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

"Ich weiss nicht was sie sagen"

Parece que foi o que respondeu Rui Rio a jornalistas portugueses, hoje mesmo, à porta do centro de congressos Messukeskus, em Helsínquia. Significa - diz quem sabe, que eu não percebo nada de alemão - "não sei do que estão a falar" e vinha, ainda, a propósito das presenças fantasma do secretário-geral do PSD, José Silvano. Enfim, questiúnculas da língua. Não sei como é que os alemães dizem iogurte, mas sei que o prazo de validade de Rui Rio caminha a passos largos para a expiração. Tenho pena, porque, faltam pessoas sérias e competentes na política e, francamente, não sei o que aconteceu a Rui Rio na versão presidente da Câmara do Porto.

Donald Trump destratou, para não variar, um jornalista da CNN. Só visto, literalmente. Apesar do aparente esforço para não perder a calma, a irritação e a agressividade são palpáveis e, um destes dias, o homem passa das palavras aos actos (não por mãos próprias, mas, nunca fiando). O mais curioso (ou não; vivem-se tempos estranhos...) é que, grande parte dos comentários em português que li não são de repúdio pela atitude do presidente americano. Pelo contrário. Trump é que "os tem no sítio", Trump é que foi "atacado pelo jornalista", "Jim Acosta não é um jornalista, é um lacaio" apostado em denegrir a imagem de Trump (como se aquela pérola precisasse de ajuda nisso...), "com ele (ele-Trump, pois claro) não brincam", e outras variantes de apoio ao super-homem. Ainda me lembro dos meus tempos de infância, em que os super-heróis eram, pelo menos, uns belos pedaços; seriam, igualmente, uma tremenda fraude, mas, podíamos contemplá-los sem asco.

Alguns jornalistas podem ser muito inconvenientes e/ou muitos incompetentes, mas não deixa de ser absolutamente espantoso ver o presidente norte-americano insultar e mandar um jornalista calar e sentar no mesmo tom em que se adverte um carrocho para lhe mostrar quem manda.

Entretanto, em mais um dia normal na América, desta vez, num restaurante da Califórnia, um novo tiroteio fez mais 30 novas vítimas. É só mais uma banal inevitabilidade. Mato porque sou branco ou porque sou preto, mato porque sou pró-judeu ou anti-judeu, mato só porque sim, porque todos temos direito ao nosso dia de raiva. Entre mortos e feridos, quem e quantos iremos escapar?

E, se podemos mudar de sexo ou de género, por que não mudar de idade? É isso mesmo que defende um holandês de 69 anos, que quer passar a ter, no máximo, 49. Parece que, com a idade actual, não tem muito sucesso no Tinder e, além disso, os médicos dizem que tem corpo aí para uns 45. Acho que sim...

 "Wir sehen uns morgen", que é como quem diz (se o Google não me falha), vou ali e já venho, ou, se calhar, até a amanhã.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Questiúnculas Pequenas e Apartidárias

O secretário-geral do PSD, o senhor José Silvano, compareceu, não comparecendo, ao total das 13 reuniões plenárias realizadas no mês de Outubro. Parece que cada reunião rende um subsídio de deslocação de quase 70 euros e, claro, não estamos em época de desperdício. De modo que, algumas das presenças-mas-ausências de Silvano foram validadas, electronicamente, sem que o próprio saiba exactamente como. A sua password secretapessoal intransmissível continua pessoal, mas é capaz de ser pouco secreta e, menos ainda, intransmissível e é capaz de alguém – que não o próprio, entenda-se – ter validado. Uma presença sem presença. Como dizia o outro, coincidências ou não, ele há coisas do Diabo…

Para Rui Rio, o do banho de ética, trata-se de uma desagradável, mas “pequena questiúncula”. Para os restantes partidos e restantes deputados, ainda não sabemos bem. Aguarda-se. É tempo de ponderações e reflexões, com muitas hesitações, porque, já se sabe, também há os que não vivem em Lisboa e os que são açorianos a tempo inteiro ou parcial, tudo consoante o montante das ajudas de custo.

Pintar as unhas no Parlamento é capaz de não ser prática muito comum; quanto ao resto, espera-se a chegada do impoluto que há-de vir atirar a primeira pedra…

domingo, 4 de novembro de 2018

Vou continuar a indignar-me, posso?

Se me é permitido, vou continuar a indignar-me. Violentamente e todos os dias, se for preciso. Recuso associar-me à normalização do mal e à banalização do absurdo. Um fascista é um fascista, é um fascista. Quem partilha dos valores do fascismo, não se esconda em subterfúgios. Quem não quer viver a democracia em pleno, não pretenda instigar a sua intermitência, descontinuando-a quando convém. Porque, talvez, nunca convenha a todos concomitantemente.

Os EUA estão em campanha. Na próxima terça-feira há eleições intercalares. Ao seu estilo, Donald Trump continua a agitar as massas mentindo, mentindo e mentindo e alternando discursos consoante os ventos, naquela linguagem básica e paternalista que continua a colher: vem aí uma caravana cheia de malfeitores, criminosos em série, apostados em tomar a América de assalto. Se nos atirarem pedras, lembremo-nos que os nossos soldados têm espingardas, portanto, que considerem usá-las. Não nos esqueçamos que à frente da caravana vêm homens fortes e maus, muito maus. Não interessa que tragam milhares de quilómetros nos pés e venham esmagados pelo cansaço, porque trazem um ror de más intenções na alma. Querem os nossos empregos, na melhor das hipóteses. Na pior, vêm violar as nossas mulheres e matar os nossos filhos. Matar só está permitido aos bons. E, não nos esqueçamos, “grab them by the pussy” também não está al alcance de qualquer um; só dos que têm dinheiro e poder. Pior do que um criminoso rico, só um criminoso pobre, fedorento e estrangeiro.

Como habitualmente, Donald Trump já veio desmentir-se a si próprio. Afinal, não vamos disparar sobre os migrantes. Vamos só prendê-los pelo tempo que for preciso. A mentira, num democrata, é inadmissível. Num populista, num nacionalista ou num fascista é um meio válido para atingir um fim. A corrupção, num democrata, é vício nojento que urge exterminar, qualquer que seja o meio. Num populista, é expedito; é competência e desembaraço.

As migrações em massa e descontroladas são um problema sério, efectivamente. Nenhum país tem capacidade de acolher todos, socorrer todos, atender a todos. Mas, acredito que os mecanismos para fazer face a este e outros problemas devem ser encontrados dentro das normas democráticas. Há quem ache que não. Há quem acredite que, o que importa, é ter a economia a crescer e viver sem incómodos e sem sobressaltos. Se, para isso, for necessário suspender ou, mesmo, eliminar a democracia, seja. Tudo em nome da segurança. Ou será só em nome do conforto pessoal? E, é mau, querermos paz para os justos e justiça para os criminosos? É mau ansiar por bons empregos, bons ordenados e uma vida confortável e próspera, principalmente, quando pagamos os nossos impostos? Claro que não! Como é evidente, essa não é a questão. Mas, o mundo não é perfeito e não é o nosso quintal. A não ser que passemos todos a defensores da justiça por mãos próprias e pela supressão, quem sabe, pelas armas, de todos os que perturbam o nosso sossego como mosquitos, viver em sociedade dá trabalho e, muitas, muitas vezes, traz chatices.

Voltemos ao Brasil e a Bolsonaro (sim, também há Maduro e outros que tais; infelizmente, o mundo está cheio de gente que só olha para o seu umbigo e que só quer o poder a qualquer preço, subjugando tudo e todos à sua tirania). Fiquemos só pelos bens intencionados; pelos que acreditam que ele não é tão mau como parece e que Sérgio Moro – o mesmo que jurava a pés juntos que jamais entraria para a política – está apenas interessado em ajudar o Brasil a preservar a democracia. O que vai acontecer quando, cada brasileiro de bem se sentir legitimado para matar um ladrão, um violador, um assassino? O que vai acontecer quando um polícia brasileiro se sentir impune, democraticamente, para matar um (mesmo não alegadamente) criminoso? Quanto tempo precisaremos de esperar para assistir à instituição da vingança em vez da aplicação da justiça? E, quanto tempo até passarmos, cada um de nós, a ser o alvo?

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Normalizados que parecem estar todos os comportamentos que a civilidade nos habituou a considerar abjectos, haveremos de passar à actualização das gramáticas, com a mesma agilidade moderna e elevada com que já nos mandaram reescrever a História.

Os novos homens fortes da política, os machos alfa salvadores da pátria, os que falam, curto e grosso, a língua do povo, são, actualmente, os únicos detentores da verdade. Se eles afirmam, é exacto. Se proclamam, é lei. Se exaltam, é culto. Todos os outros mentem. Costumava dizer-se que contra factos não há argumentos, mas, até os factos se tornaram alternativos ou descartáveis. Bolsonaro não tem nada de eticamente reprovável, como as demissões irrevogáveis não têm nada de irremediável. Haja vontade e gente para acreditar. Tal como uma mentira repetida muitas vezes arrisca converter-se em verdade absoluta, inquestionável, qualquer verdade renegada pela voz dos escolhidos esfumar-se-á das memórias dos cordeiros imberbes e adormecidos.

Propaga-se a verdade e a liberdade – da de expressão à da imprensa – para, logo a seguir, ameaçar e amordaçar quem se atreve a duvidar e a discordar. Faz-se companha sobre os mortos – sumariamente eliminados pelo ódio – sem remorso e sem pudor, porque o espectáculo must go on e alterações de planos são uma maçada desnecessária porque incoerente.

povo anseia por sangue e força bruta. Cansou-se de esperar pela justiça, quer tomá-la nas mãos, domá-la e aplicá-la. Implacavelmente, sem hesitações e sem culpa. Apoiada na inocência, asseguram-nos, da retórica primária, inflamada e apaixonada, a turba caminha segura e decidida, mas, pouco formosa, pois não há réstia de graça na barbárie.

Na cegueira da razão e da verdade de cada um, acabaremos miseravelmente sós, empunhando armas contra os fantasmas que criámos com a ajuda de heróis cobardes, sem capa e sem escrúpulos, mas orgulhosamente prenhos de ódios e escárnios. Infelizmente, não estão sós.