Já foi escolhida a palavra do ano. É “tóxico”. Discordo,
de forma arejada e consciente. Acho que a palavra do ano – deste e, se calhar,
dos vindouros – devia ser duvidar, ainda que com moderação. Não só
duvidar das notícias pré-fabricas e arremessadas para as redes sociais com o
intuito de provocar o maior número de danos colaterais, mas também das
estouvadas soluções radicais e milagreiras que tudo tornarão grande outra vez,
das nações aos clubes de futebol. Se duvidarmos talvez possamos existir melhor,
porque mais conscientes do logro pérfido com que nos confundem, entregando-nos,
como rebanhos, nas mãos desses magníficos cavaleiros dos tempos modernos, já
sem capa e sem espada, mas empunhando sofisticadas armas, em sentido literal ou
tecnológico.
No arsenal de guerra tecnológico, o WhatsApp matou, recentemente, dois homens inocentes.
Inconscientemente, puseram-se a (esse insuportável!) jeito e à mercê dessas
massas ultrajustas, supramoralistas, mobilizadoras da vontade do povo e,
sobretudo, pró-justiceiras por meios céleres e próprios. O facto de os homens
serem inocentes é um pormenor de importância nada maior. Servirá como exemplo e
forma de intimidação sobre más-intenções futuras. Afinal, na guerra também
morrem inocentes em prol de objectivos muito nobres, como a busca pela ansiada
paz que teima em não chegar a todos. O importante é mostrar que acabou o tempo
em que a culpa morria solteira. Se é possível casar à primeira vista, por
maioria de uma necessidade imperativa há-de ser permitido condenar à morte ao
primeiro relance e rumor de suspeita. A bem da ordem, da moral e dos bons
costumes não deve dar-se à justiça um tempo que corre lesto e sôfrego na
procura de soluções à medida, para todos os gostos e necessidades. Na
urgência da luta contra os demónios que nos assaltam não cabe a ponderação nem
a justiça das leis que urdimos para construir sociedades mais igualitárias.
Essas, falharam-nos estrondosamente. O povo, cansado de todos os
males que minam o seu bem-estar, quer dar a voz e a vez aos destemidos com mão
de ferro que prometem o paraíso, seja na sua grandiosa terra, ou no seu modesto
quintal.
Já não se enganam os tolos só com papas e bolos. Mas não
é pela elegância da mentira e pelo assombro das causas que o engodo deixou de
servir o seu propósito. E, por isso, a dúvida deve resistir; se não acima de
tudo, para que, pelo menos, não prevaleça a confiança absoluta dos
estúpidos.