quinta-feira, 28 de julho de 2022

“Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.”

Felicidade Clandestina

Clarice Lispector

sábado, 23 de julho de 2022

Silly Season, e outros impropérios

Não é que eu deteste o Verão. Detesto o calor de Verão, o Inferno dos incêndios de Verão, a luz escorrente e baça de Verão, as cores mortiças e o ar obeso que me sufoca como uma mortalha de aço. Mas gosto de algumas noites de Verão. Do fim de praia, da areia morna quando o Sol, finalmente, sossega, e do gin tónico gelado com uma rodela de limão. Demasiado vulgar, talvez, mas o meu Verão é melhor assim.

Também gosto do tempo de Verão. O do relógio. Uma transição electrónica entre dois níveis de energia num átomo de césio-133, nove milhares de milhões cento e noventa e dois milhões seiscentos e trinta e um milhares e setecentas e setenta oscilações completas num segundo, todos os segundos de um dia, qualquer dia de qualquer estação, mesmo que os segundos me pareçam sempre mais lentos no tempo que dura o Verão, suponho que como deva ser, para poder desperdiçá-lo sem remorso.

De todas as silly coisas que a desdita season tem, a mais esdrúxula ouvi-a ontem: Pedro Abrunhosa cantou “Vladimir Putin, go fuck yourself”, num concerto em Águeda, e a embaixada russa em Portugal emitiu um comunicado para dizer da indignação russa e da indignidade de um homem da cultura, cujas palavras “foram (ali) ouvidas” e “respectivas conclusões serão tiradas”.

Devia servir-me de consolo a evidência: o calor de Verão ameaça outras razões, não apenas a minha.

Há qualquer coisa de apocalíptico naquele gorgolejar histriónico das gaivotas à minha janela, ainda a manhã não é bem manhã. Um chinfrim circular, sinistro. Lembro-me dos pássaros de Hitchcock, talvez pelo ainda torpor do sono e uma qualquer memória solta que devo ter trazido de um daqueles sonhos que nunca recordo. Depois, uma cascata de estilhaços de vidro, uma sinfonia laminada, quase metálica, cala o alarme das gaivotas. Há de certeza uma lei que proíbe a recolha estrondosa de lixo antes das sete e meia de uma manhã de sábado. Se não há, devia. 

Jafar Panahi

Vou oferecer outro artigo e cometer mais um pequeno crime. Se eu partilhar aqui um artigo "exclusivo" e ninguém o ler, continua a ser um crime? Pois, também me parece. Mas há pessoas e histórias que merecem. 


"E no meio de tudo isto, o cineasta iraniano Jafar Panahi voltou a ser preso. Já perdi a conta ao número de vezes, mas agora é diferente: arrisca ficar na prisão até 2028.

Não vale a pena fingir que a sua prisão perturba o mesmo que a dos outros presos políticos no Irão — e há muitos. Aprendi com uma amiga que os artistas são a consciência do mundo e há anos que Panahi é a consciência do Irão. Não está sozinho, claro. É herdeiro de Abbas Kiarostami e mestre da nova geração, da qual faz parte o filho, Panah Panahi, cujo filme Estrada Fora acaba de estrear em Portugal.

Mas os seus filmes, uma longa crónica do Irão contemporâneo, são manifestos políticos eloquentes que, com histórias simples e uma aparente inocência de contos do quotidiano, desobedecem e desafiam o poder. Com poesia, imaginação, humor e coragem. Difícil pedir mais a um só homem.

Costuma dizer-se que o cinema de Panahi-pai fala de política nas entrelinhas. Mas não consigo pensar em intervenção política mais directa e frontal do que fazer um filme em casa após as autoridades o terem proibido de sair de casa e de filmar e chamar-lhe Isto Não é Um Filme. Foi o que Panahi fez a seguir à sentença de 2010 que o proíbe de viajar e filmar até 2030. É nesse filme que diz: “Sentenciaram-me a uma interdição de filmar durante 20 anos. Mas não há interdição em interpretar ou ler um guião. Graças a Deus!” O trailer cita excertos dos críticos. “Simples, radical, surpreendente, comovente” (New York Times). “Jafar Panahi transforma a censura em arte” (IndieWire).

Desde a proibição, fez, além de Isto Não é um Filme (2011), Cortinas Fechadas (2013), Táxi (2015) e Três Rostos (2018). Num país onde a pena de morte é comum, como são comuns as sentenças para amputar, cegar e chicotear os condenados, é difícil pensar num gesto mais político.

No Irão, a violência do Estado é real e diária. Em 2014, sete jovens foram condenados a seis meses de prisão e 91 chicotadas por terem publicado um vídeo caseiro a cantar a canção Happy, de Pharrell Williams. Em 2018, Maedeh Hojabri, de 18 anos, foi presa e condenada a quatro anos de prisão e 80 chicotadas por publicar no Instagram vídeos a dançar no quarto. Em 2021, Hadi Rostami foi chicoteado 60 vezes como castigo por ter feito greve da fome na prisão em protesto contra a possibilidade de a sua sentença de amputação ser aplicada. Pouco depois, Hadi Atazadeh morreu na prisão de Ahar após ter sido chicoteado. Pelo menos 152 pessoas foram condenadas a chicotadas no ano passado. Em Julho desse ano, 11 pessoas foram mortas a tiro durante protestos pela falta de água nas províncias de Khuzestan e Lorestan. Este Julho, os cineastas Mohammad Rasoulof e Mostafa Al-Ahmad foram presos por criticarem a violência policial. Há dez anos que os ex-candidatos presidenciais Mehdi Karroubi e Mir Hossein Mousavi estão em prisão domiciliária.

Por causa da ditadura iraniana, Panahi trata os seus filmes como os traficantes tratam a droga: manda-os para a Europa em pens escondidas em bolos. Sem isso, saberíamos menos do que se passa no Irão hoje.

Caro leitor: isto não é um obituário. Panahi, espero, vai voltar a filmar. Isto é um convite para vermos e revermos o cinema de Panahi, para falarmos do cinema de Panahi e para nos juntarmos às campanhas da Amnistia Internacional e de todos os que pedem a libertação dos presos políticos no Irão. Resulta. Ainda ontem li a história dos irmãos Afkari. Vahid, Navid e Habib Afkari foram às manifestações de 2017 e de 2018 de protesto contra a pobreza, a corrupção e a repressão do regime. Quase 30 pessoas foram mortas logo ali, pela polícia, e milhares foram detidas arbitrariamente. O irmão Vahid foi um deles. A sua história destacou-se porque foi condenado a 33 anos e 9 meses de prisão e a 74 chicotadas, mas também porque, a seguir, a polícia prendeu os dois irmãos. Em Setembro de 2020, Navid Afkari foi executado em segredo. Com dois filhos destruídos pelo regime — um morto e outro em isolamento e condenado a morrer na prisão —, a família montou uma campanha global para salvar o terceiro filho. Após anos de cartas, apelos e protestos de activistas e organizações de direitos humanos, Habib Afkari foi libertado em 2022.

Como nas alterações climáticas e em tudo o que importa, não fazer nada é uma opção esquisita. Até nas férias."

Bárbara Reis, PÚBLICO

domingo, 17 de julho de 2022


 


sábado, 16 de julho de 2022

Educação, quem sabe se Cidadania



Ken Robinson morreu há cerca de dois anos. Não fazia ideia. Nunca li nada dele, e acho que é uma falha grave.

Vale mesmo a pena ver e ouvir. É intemporal. Até por quem não quer saber nada de educação. O receio de errar, a estigmatização do erro, o papel da escola e um modelo de ensino obsoleto num mundo em revolução acelerada – uma discussão interessante, necessária, urgente. “Os miúdos arriscam. Se não sabem, tentam; não receiam estar errados. Se não estivermos preparados para errar, nunca conseguiremos nada de original. Quando chegam a adultos, a maior parte das crianças já perdeu essa capacidade.”

Agradar-me-ia a ideia de substituir aulas de Cidadania, por exemplo, por aulas de Dança, ou Teatro, ou Pintura. Escrita Criativa, fala-se tanto (e ensina-se e cobra-se) de escrita criativa. Digo "aulas de Cidadania" porque sou das Ciências, não estou preparada para mudanças mais radicais, padeço, suponho, desse mal que denuncia Robinson, com sobriedade e muito humor simultaneamente (a história da peça de Natal é deliciosa), a importância desmesurada (às vezes arrogante, reconheço) das Ciências no ensino. E quem sabe se não se teria evitado aquela paródia entre a birra dos famosos pais de Famalicão e a “solução” mirabolante apontada pelo Ministério Público. Só é cómico, e não trágico, porque  como não se sabe ainda mas já se adivinha – os miúdos vão acabar por acabar um doutoramento ao fim de sucessivas "progressões condicionadas", e, com sorte, cairá tudo num esquecimento benigno para quase todas as partes. Felizmente, não tem havido mais pais daqueles; parece haver pouca gente disponível para repetir o embuste à custa da instrumentalização dos filhos.

O resto da actualidade ainda não me apetece.