Vou oferecer outro artigo e cometer mais um pequeno crime. Se eu partilhar aqui um artigo "exclusivo" e ninguém o ler, continua a ser um crime? Pois, também me parece. Mas há pessoas e histórias que merecem.
"E no meio de tudo isto, o cineasta iraniano Jafar Panahi voltou a ser preso. Já perdi a conta ao número de vezes, mas agora é diferente: arrisca ficar na prisão até 2028.
Não
vale a pena fingir que a sua prisão perturba o mesmo que a dos outros presos
políticos no Irão — e há muitos. Aprendi com uma amiga que os artistas são a
consciência do mundo e há anos que Panahi é a consciência do Irão. Não está
sozinho, claro. É herdeiro de Abbas Kiarostami
e mestre da nova geração, da qual faz parte o filho, Panah Panahi, cujo filme Estrada Fora
acaba de estrear em Portugal.
Mas os seus filmes, uma longa crónica do Irão contemporâneo, são manifestos
políticos eloquentes que, com histórias simples e uma aparente inocência de
contos do quotidiano, desobedecem e desafiam o poder. Com poesia, imaginação,
humor e coragem. Difícil pedir mais a um só homem.
Costuma dizer-se que o cinema de Panahi-pai fala de política nas entrelinhas.
Mas não consigo pensar em intervenção política mais directa e frontal do que fazer
um filme em casa após as autoridades o terem proibido de sair de casa e de
filmar e chamar-lhe Isto Não é Um
Filme. Foi o que Panahi fez a seguir à sentença
de 2010 que o proíbe de viajar e filmar até 2030. É nesse filme que diz:
“Sentenciaram-me a uma interdição de filmar durante 20 anos. Mas não há
interdição em interpretar ou ler um guião. Graças a Deus!” O trailer
cita excertos dos críticos. “Simples, radical, surpreendente, comovente” (New
York Times). “Jafar Panahi transforma a censura em arte” (IndieWire).
Desde a proibição, fez, além de Isto Não é um Filme (2011), Cortinas Fechadas (2013), Táxi (2015) e Três Rostos (2018). Num país onde a pena de morte é comum, como são comuns as sentenças para amputar, cegar e chicotear os condenados, é difícil pensar num gesto mais político.
No
Irão, a violência do Estado é real e diária. Em 2014, sete jovens foram
condenados a seis meses de prisão e 91 chicotadas por terem publicado um vídeo
caseiro a cantar a canção Happy, de Pharrell Williams.
Em 2018, Maedeh Hojabri, de 18 anos, foi presa e condenada a quatro anos de
prisão e 80 chicotadas por publicar no Instagram vídeos a dançar no quarto. Em
2021, Hadi Rostami foi chicoteado 60 vezes como castigo por ter feito greve da
fome na prisão em protesto contra a possibilidade de a sua sentença de
amputação ser aplicada. Pouco depois, Hadi Atazadeh morreu na prisão de Ahar
após ter sido chicoteado. Pelo menos 152 pessoas foram
condenadas a chicotadas no ano passado. Em
Julho desse ano, 11 pessoas foram mortas a tiro durante protestos pela falta de
água nas províncias de Khuzestan e Lorestan. Este Julho, os cineastas Mohammad
Rasoulof e Mostafa Al-Ahmad foram presos por criticarem a violência policial.
Há dez anos que os ex-candidatos presidenciais Mehdi Karroubi e Mir Hossein
Mousavi estão em prisão domiciliária.
Por
causa da ditadura iraniana, Panahi trata os seus filmes como os traficantes
tratam a droga: manda-os para a Europa em pens escondidas em bolos. Sem
isso, saberíamos menos do que se passa no Irão hoje.
Caro
leitor: isto não é um obituário. Panahi, espero, vai voltar a filmar. Isto é um
convite para vermos e revermos o cinema de Panahi, para falarmos do cinema de
Panahi e para nos juntarmos às campanhas da Amnistia Internacional e de todos
os que pedem a libertação dos presos políticos no Irão. Resulta. Ainda ontem li
a história dos irmãos Afkari. Vahid, Navid e Habib Afkari foram às
manifestações de 2017 e de 2018 de protesto contra a pobreza, a corrupção e a
repressão do regime. Quase 30 pessoas foram mortas logo ali, pela polícia, e
milhares foram detidas arbitrariamente. O irmão Vahid foi um deles. A sua
história destacou-se porque foi condenado a 33 anos e 9 meses de prisão e a 74
chicotadas, mas também porque, a seguir, a polícia prendeu os dois irmãos. Em
Setembro de 2020, Navid Afkari foi executado em segredo. Com dois filhos
destruídos pelo regime — um morto e outro em isolamento e condenado a morrer na
prisão —, a família montou uma campanha global para salvar o terceiro filho.
Após anos de cartas,
apelos e protestos de activistas e organizações
de direitos humanos, Habib Afkari foi libertado em 2022.
Como
nas alterações climáticas e em tudo o que importa, não fazer nada é uma opção
esquisita. Até nas férias."
Bárbara Reis, PÚBLICO