sábado, 23 de julho de 2022

Jafar Panahi

Vou oferecer outro artigo e cometer mais um pequeno crime. Se eu partilhar aqui um artigo "exclusivo" e ninguém o ler, continua a ser um crime? Pois, também me parece. Mas há pessoas e histórias que merecem. 


"E no meio de tudo isto, o cineasta iraniano Jafar Panahi voltou a ser preso. Já perdi a conta ao número de vezes, mas agora é diferente: arrisca ficar na prisão até 2028.

Não vale a pena fingir que a sua prisão perturba o mesmo que a dos outros presos políticos no Irão — e há muitos. Aprendi com uma amiga que os artistas são a consciência do mundo e há anos que Panahi é a consciência do Irão. Não está sozinho, claro. É herdeiro de Abbas Kiarostami e mestre da nova geração, da qual faz parte o filho, Panah Panahi, cujo filme Estrada Fora acaba de estrear em Portugal.

Mas os seus filmes, uma longa crónica do Irão contemporâneo, são manifestos políticos eloquentes que, com histórias simples e uma aparente inocência de contos do quotidiano, desobedecem e desafiam o poder. Com poesia, imaginação, humor e coragem. Difícil pedir mais a um só homem.

Costuma dizer-se que o cinema de Panahi-pai fala de política nas entrelinhas. Mas não consigo pensar em intervenção política mais directa e frontal do que fazer um filme em casa após as autoridades o terem proibido de sair de casa e de filmar e chamar-lhe Isto Não é Um Filme. Foi o que Panahi fez a seguir à sentença de 2010 que o proíbe de viajar e filmar até 2030. É nesse filme que diz: “Sentenciaram-me a uma interdição de filmar durante 20 anos. Mas não há interdição em interpretar ou ler um guião. Graças a Deus!” O trailer cita excertos dos críticos. “Simples, radical, surpreendente, comovente” (New York Times). “Jafar Panahi transforma a censura em arte” (IndieWire).

Desde a proibição, fez, além de Isto Não é um Filme (2011), Cortinas Fechadas (2013), Táxi (2015) e Três Rostos (2018). Num país onde a pena de morte é comum, como são comuns as sentenças para amputar, cegar e chicotear os condenados, é difícil pensar num gesto mais político.

No Irão, a violência do Estado é real e diária. Em 2014, sete jovens foram condenados a seis meses de prisão e 91 chicotadas por terem publicado um vídeo caseiro a cantar a canção Happy, de Pharrell Williams. Em 2018, Maedeh Hojabri, de 18 anos, foi presa e condenada a quatro anos de prisão e 80 chicotadas por publicar no Instagram vídeos a dançar no quarto. Em 2021, Hadi Rostami foi chicoteado 60 vezes como castigo por ter feito greve da fome na prisão em protesto contra a possibilidade de a sua sentença de amputação ser aplicada. Pouco depois, Hadi Atazadeh morreu na prisão de Ahar após ter sido chicoteado. Pelo menos 152 pessoas foram condenadas a chicotadas no ano passado. Em Julho desse ano, 11 pessoas foram mortas a tiro durante protestos pela falta de água nas províncias de Khuzestan e Lorestan. Este Julho, os cineastas Mohammad Rasoulof e Mostafa Al-Ahmad foram presos por criticarem a violência policial. Há dez anos que os ex-candidatos presidenciais Mehdi Karroubi e Mir Hossein Mousavi estão em prisão domiciliária.

Por causa da ditadura iraniana, Panahi trata os seus filmes como os traficantes tratam a droga: manda-os para a Europa em pens escondidas em bolos. Sem isso, saberíamos menos do que se passa no Irão hoje.

Caro leitor: isto não é um obituário. Panahi, espero, vai voltar a filmar. Isto é um convite para vermos e revermos o cinema de Panahi, para falarmos do cinema de Panahi e para nos juntarmos às campanhas da Amnistia Internacional e de todos os que pedem a libertação dos presos políticos no Irão. Resulta. Ainda ontem li a história dos irmãos Afkari. Vahid, Navid e Habib Afkari foram às manifestações de 2017 e de 2018 de protesto contra a pobreza, a corrupção e a repressão do regime. Quase 30 pessoas foram mortas logo ali, pela polícia, e milhares foram detidas arbitrariamente. O irmão Vahid foi um deles. A sua história destacou-se porque foi condenado a 33 anos e 9 meses de prisão e a 74 chicotadas, mas também porque, a seguir, a polícia prendeu os dois irmãos. Em Setembro de 2020, Navid Afkari foi executado em segredo. Com dois filhos destruídos pelo regime — um morto e outro em isolamento e condenado a morrer na prisão —, a família montou uma campanha global para salvar o terceiro filho. Após anos de cartas, apelos e protestos de activistas e organizações de direitos humanos, Habib Afkari foi libertado em 2022.

Como nas alterações climáticas e em tudo o que importa, não fazer nada é uma opção esquisita. Até nas férias."

Bárbara Reis, PÚBLICO