quinta-feira, 31 de março de 2022
“One Need Not Be A Chamber To Be Haunted”
Não sei o que faria se “apanhasse” Adolf Hitler – ou Vladimir Putin, já agora. Ao contrário de Robert Sapolsky, não fantasio com partir-lhe a espinha junto ao pescoço, arrancar-lhe os olhos com um objecto contundente, furar-lhe os tímpanos, arrancar-lhe a língua, mantê-lo vivo ligado a um respirador, alimentado por um tubo, incapaz de ver, falar ou mover-se, sentir apenas, e, depois, injectá-lo com qualquer coisa maligna e deixá-lo a apodrecer, ou por aí. É possível que nem o próprio Robert Sapolsky fantasie com tudo isso, mesmo que ele diga que sim, que alguma vez. É apenas um ponto de partida habilmente eficaz para uma discussão interessante – ambiciosa, insaciável – sobre a biologia da Besta que há em nós, e todas as contradições e contrições pessoais que daí possam resultar. Seremos todos "seres humanos confusos" no que à violência diz respeito. Eu sou de certeza. Não sou pela paz a qualquer preço e não sou capaz de dizer, sinceramente, sem cruzar os dedos atrás das costas, que a violência nunca é solução. Evito o mais possível atirar a primeira pedra, mas não sou das que dá a outra face. A bofetada que Will Smith pespegou em Chris Rock faz do primeiro um idiota sem desculpa, mas não me chocaria por aí além se Chris Rock lhe tivesse assentado um tabefe equivalente. Não se resolveria nada na mesma, a violência como retrocesso civilizacional, a barbárie e demais apupos, mas humilha-me mais saber que há mulheres que acharam aquilo lindo. Linda, aliás, foi a piada de Chris Rock no entendimento de grande parte da plateia ali presente, inclusive no entendimento primeiro de Will Smith. Foi, provavelmente, o revirar de olhos da sua mulher – duas vezes sua mulher muito sua mulher – que despertou a tal besta que havia nele. Choramingar a seguir é ainda mais patético.
Adiante, sobre o mesmo.
De repente e na mesma semana que ainda nem terminou esbarrei naquela ted talk de Robert Sapolsky (embora já tivesse visto, há uns anos, outra sua palestra idêntica), num programa da National Geographic onde Morgan Freeman se propõe tentar desvendar a origem do Mal, num Inexplicável do canal História sobre os corredores obscuros do nosso cérebro, e na série Alias Grace com que a Netflix andava a tentar-me há demasiado tempo.
Tenho tanta coisa para dizer sobre tudo isto – sobretudo porque acredito que há um limite a partir do qual insistir em tentar a paz é abdicar da paz, é a paz que se finge obrigando a mulher violada a casar com o violador. Mas vou só dizer que acabei por ver Alias Grace: um número curto de episódios exactamente como eu gosto numa série, um genérico em tudo magnético, como magnética é toda a actuação de Sarah Gordon, e os versos assombrosos, assombrados, de Emily Dickinson. Não só de Emily Dickinson, mas de Emily Dickinson. Um nós oculto por trás de nós mesmos, e eu esforço-me todos os dias por conhecer o meu.
quarta-feira, 30 de março de 2022
sábado, 26 de março de 2022
“A fácil possibilidade
de escrever cartas de certeza – de um ponto de vista simplesmente teórico – que
trouxe ao mundo uma terrível dilaceração de almas. É que se trata de uma
comunicação com fantasmas, e não apenas com o fantasma do destinatário, mas também
com o nosso próprio fantasma que, involuntariamente, se desenvolve na carta que
se está a escrever ou mesmo numa sequência de cartas, em que cada uma confirma a
outra e pode invocá-la como testemunha. Como é que se teve a ideia de que as
pessoas podem conviver umas com as outras através de cartas? Pode pensar-se
numa pessoa que está longe e pode compreender-se uma pessoa que está perto,
tudo o resto ultrapassa as forças humanas. Mas escrever cartas quer dizer
desnudar-se diante dos fantasmas, coisa de que eles estão avidamente à espera. Beijos
escritos não chegam ao destino, são bebidos pelos fantasmas durante o caminho.”
Cartas a Milena
Franz Kafka
sexta-feira, 25 de março de 2022
quarta-feira, 23 de março de 2022
terça-feira, 22 de março de 2022
Ponto de Encontro
Fim
de uma manhã sem sol, sem vento. Despido o manto sépia, poeirento de áfricas,
sobra o cinza húmido de um Inverno morredoiro sobre o mar que se despedaça sem
cólera, em torvelinhos mansos de espuma, aos pés da rocha musguenta. E a mesma esplanada
de antes.
Juízos NeoHumanitários
É
uma boa piada, a de Luís Afonso, mas não tão hilariante como a da juíza que
dispensou Mário Machado das medidas de coacção a que estava sujeito para que
aquele pudesse partir para a Ucrânia em missão humanitária. A outra piada é a
questão de saber se a juíza que lavrou o humanitário despacho sabia quem era Mário
Machado – ou eu pensei que era outra desgraçada piada, mas, se calhar, não é sequer piada e não saberia mesmo.
"Eu estava rígido e frio, era uma ponte,
estava estendido sobre um abismo, deste lado tinha cravadas as pontas dos pés, do
outro as mãos, mordia com força no barro esboroado. As abas do meu casaco
flutuavam de ambos os lados do meu corpo. Lá no fundo rugia o gelado ribeiro
das trutas. Nenhum turista vinha perder-se até esta altura intransponível, a
ponte ainda não estava assinalada nos mapas. Assim estava, estendido, e
esperava; tinha de esperar; enquanto não cai, nenhuma ponte pode deixar de ser
ponte. Um dia, ao anoitecer, era o primeiro ou o milésimo, não sei, os meus
pensamentos eram sempre uma confusão e sempre, sempre a andar à roda – era Verão,
anoitecia, o fragor do riacho tornara-se mais cavo – ouvi os passos de um homem!
Vinha para mim, para mim. Estica-te, ponte, põe-te em posição, tabuleiro sem
corrimão, segura o que te foi confiado, firma-lhe discretamente os passos
incertos, mas se vacila, mostra quem és e, como um deus da montanha, põe-no em
terra firme. Ele veio, bateu em mim com a ponta de ferro da bengala, depois
levantou com ela as abas do meu casaco e dispô-las bem arranjadas sobre mim,
com a ponta da bengala remexeu longamente no meu cabelo crespo e deixou-a lá ficar,
provavelmente de olhar fixo na distância. Mas então – seguia-o justamente em
sonho por vale e montanha – saltou com os dois pés a meio do meu corpo.
Estremeci com uma dor atroz, sem saber o que acontecia. Quem era? Uma criança?
Um acrobata? Um caminheiro? Um suicida? Um tentador? Um destruidor? E voltei-me
para o ver. Uma ponte que se volta! Ainda não tinha completado a volta e já
estava a cair, desabava e um momento depois rasgavam-me e trespassavam-me os
seixos pontiagudos que sempre me fitavam tão pacificamente da água em fúria."
A Ponte
Franz Kafka
segunda-feira, 21 de março de 2022
"Si te
atreves a sorprender la verdade
de
esta vieja pared;
y sus
fisuras, desgarraduras,
formando
rostros, esfinges,
manos,
clepsidras, seguramente vendrá
una
presencia para tu sed,
probablemente
partirá
esta ausencia que te bebe."
Alejandra
Pizarnik
Sou mais da prosa do que da poesia, já disse. Mas, pouco a pouco, chego lá. Depende dos dias, da forma, da língua. Do poema, do poeta.
Contextualizar a Guerra
Parece-me haver sempre uma beleza profana nas fotografias que imortalizam as tragédias mais devastadoras. Uma beleza caótica e, ainda assim, absolutamente contrária à violência estampada na quietude do retrato. Talvez porque, no alheamento da desolação, sobre apenas o que deve, a compaixão de quem retrata ou a coragem de quem resiste. Fotografias magníficas gritando horrores no silêncio encarcerado das imagens, os comboios decrépitos, de ferragens oxidadas como os esforços de paz, desta paz apodrecida. Vinte e seis dias depois, a Ucrânia resiste à fúria bárbara de Vladimir Putin, e, neste exacto momento, é-me bastante indiferente se, num passado perfeito ou imperfeito, os EUA, a Europa e a NATO foram mentores ou cúmplices de outras guerras igualmente miseráveis: não é isso que está em causa. Saber da infâmia da Cimeira das Lajes não me faz olhar com menor estupor para a deriva criminosa de Putin. O urso que não podia ter sido humilhado nem encurralado mantém, sobre a Ucrânia, sobre a Europa, uma estratégia de terror à altura dos piores criminosos de que conta a História, aquela que nunca nos ensina nada, não serve para isso. Vladimir Putin está decidido a descarregar toda a sua ira sobre quantas cidades ucranianas forem necessárias para exibir o seu poderio, e nenhuma das culpas que carregam outros me serve para diluir a injúria. Mostram-me as falhas de Zelensky, a sua propaganda e arrogância, e garantem-me que a única saída é a rendição da Ucrânia, que a Putin é preciso compreender-lhe os motivos e saciar-lhe a sede de vingança, afagar-lhe a humilhação a bem da paz, finalmente a paz, e não sou capaz de entender que paz seria essa.
domingo, 20 de março de 2022
sexta-feira, 18 de março de 2022
quinta-feira, 17 de março de 2022
domingo, 13 de março de 2022
“— Nenhum povo – começou ele, como se lesse um texto e, ao mesmo tempo, continuando a olhar com fúria para Stavróguin –, nenhum povo ainda se organizou com base na ciência e na razão; nunca houve exemplo disso, a não ser por um instante, por asneira. O socialismo, pela sua essência, tem de ser um ateísmo, porque proclama precisamente, desde as primeiras palavras, que é um sistema ateísta e tenciona organizar-se exclusivamente com base na ciência e na razão. A razão e a ciência na vida dos povos, tanto na actualidade como desde o princípio dos tempos, desempenha apenas um papel secundário e de serviço; e terão este papel até ao fim dos tempos. Os povos constituem-se e movem-se por outra força, uma força que governa e impera mas cuja origem é desconhecida e inexplicável. Esta força é a força do desejo incansável de ir até ao fim e, ao mesmo tempo, a força que nega o fim. É uma força de confirmação ininterrupta e incansável da existência e da negação da morte. O espírito da vida, como rezam as Sagradas Escrituras, é “rios de água viva”, que o Apocalipse ameaça de esgotamento. É o princípio estético, como dizem os filósofos, e o princípio moral, com que eles também o identificam. A “procura de Deus”, como lhe chamo eu, de modo mais simples. O objectivo de todo o movimento do povo, válido para qualquer povo e para qualquer período da sua existência, é unicamente a procura de Deus, do seu Deus próprio, é a fé n’Ele como único verdadeiro. Deus é a personalidade sintética de todo o povo, desde o seu início até ao seu fim. Nunca aconteceu que todos os povos, ou muitos povos juntos, tivessem um deus comum, mas cada um sempre teve o seu deus particular. O sinal do desaparecimento das etnias é a unificação de deuses. Quando os deuses se tornam comuns, morrem esses deuses e a fé neles juntamente com os próprios povos. quanto mais forte é o povo, mais individual é o seu deus. Ainda nunca existiu um povo sem religião, ou seja, sem o conceito do bem e do mal e, por consequência, o seu próprio bem e o seu próprio mal. Quando, entre muitos povos, os conceitos do bem e do mal começam a tornar-se comuns, extinguem-se esses povos, e a própria diferença entre o bem e o mal começa a desvanecer-se até desaparecer. Nunca a razão foi capaz de definir o mal e o bem, nem sequer separar o mal do bem, nem mesmo por aproximação; pelo contrário, sempre os confundiu vergonhosa e miseravelmente; quanto à ciência, as soluções que apresenta assentam nos punhos. Assim se tem caracterizado, sobretudo, a meia ciência, o mais terrível flagelo da humanidade, pior do que a peste, a fome e a guerra; ora, ela era desconhecida até o século actual. A meia ciência é um déspota que até ao momento nunca tinha aparecido. Um déspota que tem os seus sacerdotes e escravos, um déspota diante do qual tudo e todos se prostraram com um amor e uma superstição impensáveis até este momento, diante do qual a própria ciência treme, apoiando-o vergonhosamente. Tudo isso são palavras suas, Stavróguin, excepto o que eu disse sobre a meia ciência... que são palavras minhas, uma vez que eu próprio não sou mais do que meia ciência, por isso a odeio até ao extremo. Quanto às palavras da sua autoria, não mudei nada, nem uma letra.
— Não acho que não tenha mudado — observou Stavróguin, com cautela. —Aceitou-as com ardor, mas também as transfigurou com ardor, sem reparar nisso. Até pelo facto de o senhor reduzir Deus ao simples atributo da nacionalidade...”
Demónios
Fiódor Dostoiévski
Reparo na pequenita, que não tira os olhos da minha mão. Conheço-a de vista, de vê-la caminhar com a mãe, às vezes, nos passeios junto ao mar. A princípio, penso que é o meu verniz beringela, a causa de admiração. Mas não. Tem o mesmo ar de maravilhado espanto que o meu filho quando, pela primeira vez, talvez um pouco mais novo que ela, viu um daqueles telefones em que metemos o dedo num buraquinho e rodamos para marcarmos o número. É a minha caneta de tinta permanente o objecto de assombro. Mostro-lha. Digo-lhe que, se a mãe deixar, posso eu também deixá-la experimentar, se quiser. A mãe sorri, que é melhor não, que pode estragar, mas aproveito-me do sorriso, decido correr o risco e passo-lhe a caneta para a mão. É uma das minhas canetas preferidas. Escreve sem esforço, num traço leve, fluído, não demasiado fino, num azul que o frasco de tinta diz “real” mas que eu digo cobalto. Ensino como pegar-lhe: segurar sem carregar e com o bico prateado voltado para cima. Pergunta se pode desenhar. Não é uma caneta para desenhar, mas eu não sei nada sobre desenhar: respondo que sim, que pode tentar. Desenha uma boneca, uma menina, dessas cujos braços são traços finos e horizontais, e as mãos, apenas dedos disformes noutro traçado de riscos imperfeitos como cerdas das vassouras de bruxa, e o vestido, o triângulo inacabado a que fica sempre a faltar um vértice. Nada mal, até para uma caneta que não serve para desenhar. Digo-lhe que é lindo, o seu desenho, e é mesmo. Quero arrancar a folha de papel do caderno, para que o possa levar, mas diz que é para mim e que a menina sou eu. Vou negar, já não sou menina, não uso vestido, não de momento, e o meu cabelo é mais curto que o da menina do desenho, mas há em tudo aquilo como que uma aura de deliciosa irrealidade e não me atrevo. Guardo o desenho no caderno, como uma relíquia.
sexta-feira, 11 de março de 2022
Sou
capaz de jurar que te consinto nas partes mais ocultas dos meus sonhos, mesmo naqueles que não recordo. Um dia
qualquer, dispo-me de toda a prudência, de todos os artifícios que sustentam os
meus muros, e conto-te o meu nome ao ouvido, num sussurro insolente, só não sei
ainda se para que me renegues ou para que me ames.
quarta-feira, 9 de março de 2022
As
peças de artesanato enchem completamente a loja. A terceira a contar do início da segunda
rua que desce à esquerda, nada mais passar a loja do antiquário excêntrico, o
dos baús repletos de roupa de festa e dos colares grossos, maciços, de ligas ricas
de prata, pendurados com elegância feminina nos mostradores de madeira entalhada
e pintada à mão. Não há GPS. Ainda preciso de contar as ruas, decorar outros
entalhes, as portas de outras lojas e o padrão da pedra lascada nas paredes
sujas das esquinas onde devo virar.
O
próprio chão está quase todo coberto de tapetes de muitas cores, os de
entrançado idêntico sobrepostos em camadas compondo uma imensa tela de
intermináveis escamas garridas. Um caleidoscópio. Gosto do vermelho exuberante dos
tapetes berbere, mas não só.
Há
candeeiros de vários tamanhos, de ferro retorcido e pele de camelo pintada; as cornucópias
do ferro lembrando as suaves colunas de fumo dos cachimbos de água que os
homens fumam nas escadas de pedra voltadas para o mar, e as pinturas, tatuagens
de henna num gradiente ondulado de ocres. Peças de latão martelado em desenhos
geométricos, e outras de estanho liso denso e baço – algumas das minhas preferidas. Tajines
de argila rosa e puffs de pele cosida a linha grossa, torcida como as tranças
do chapéu de palha da velha sem idade que se senta sempre ao fundo da mesma
escada à entrada do mercado de verduras.
A
loja está quase às escuras. Tudo o que vejo, é o que já vi antes. A luz só se
acende generosamente quando há turistas e eu já perdi esse estatuto. Sou residente.
Expatriada, quando eu era demasiado jovem e pensava saber o que havia
para saber sobre ser-se expatriado.
Chamo-lhe Ali Baba porque, desde o primeiro dia, a sua loja leva-me à memória da caverna dos quarenta ladrões. Ele ri-se, fechando os olhos, e não se ofende. Nunca se ofendeu. Recebe-me sempre de braços abertos, mesmo sabendo que não me deixo abraçar. Já não me oferece o chá, que me enjoa miseravelmente. Sabe que prefiro sempre o café, quente e amargo; solo. De pé, de braços esticados paralelos ao chão fofo de tapetes, com a djellaba riscada em tons suaves de azul, lembra-me uma janela voltada para o mar que se agita, invisível, lá ao fundo. A noite de ontem foi de tempestade. Em noites de tempestade, aquele mar enlouquece. Conheço aquele mar nas noites assim. Os barcos sobem e descem como finas folhas à mercê da fúria dilatada das ondas. Desde lá de dentro, num instante, vêem-se as luzes embaciadas dos candeeiros do porto, e, no instante seguinte, o ventre do mar contrai-se violentamente num espasmo vazio, grave, e só se vê o negro íngreme da água subindo vertiginosamente. Toda a Noite silva, redundante como ecos.
Pergunta-me
se quero agora tomar o meu café.
O Inferno somos nós
Tudo
me comove nas imagens que chegam da Ucrânia. Evito trazer para aqui as que mais
me violentam – quase todas, na verdade – porque me parece quase indecente a impotência
de quem, como eu, pode pouco mais do que assistir, compreender, tentar compreender o que deve haver para compreender. Toda a ajuda conta e toda a
ajuda é um imenso nada no meio de tanta destruição. Mas vou guardando tudo o que não quero esquecer.
As imagens das crianças são sempre as que me doem mais. Talvez porque sou mãe e vejo-me totalmente incapaz da coragem daquelas mães.
Ontem, vi um bebé que chorava no
colo do pai, e enquanto chorava batia-lhe nos ombros e no capacete de militar, com as mãozinhas minúsculas, e tudo naquela pequena grande fúria era a expressão mais exasperada do absurdo
da guerra.
Não vejo
como será possível sair disto. Há-de haver quem saiba. Acredito que há-de haver
quem saiba. Não pode ser de outra maneira.
terça-feira, 8 de março de 2022
Dia da Mulher
Não sou dada a dias de. Esqueço-me deles indecentemente. Às vezes, propositadamente. Este dia não é excepção, mas hoje faço dele uma excepção. E, se algum desconhecido me oferecer flores, o não tão desconhecido da confeitaria ao lado que, há anos, insiste em oferecer uma flor a todas as mulheres no dia da Mulher, uma flor para o café, hoje prometo não lhe rosnar.
segunda-feira, 7 de março de 2022
Sobre Censuras
Acho pouco decente (e é tentador) romantizar a morte e o sofrimento, a coragem e o heroísmo, e menos decente ainda quando é a “informação” a testar o limite, a pisar a fronteira entre informar e doutrinar. Já vimos, a seu tempo, os sermões de Domingo – já não recordo se exactamente ao Domingo – de reputados jornalistas a propósito dos sacrifícios que o combate à pandemia exigia a todos, mesmo que a uns mais que a outros. Mas o extremo oposto, fingir que há comparação entre agressores e agredidos, no pressuposto aleivoso de pensar pela própria cabeça, como se tal coisa obrigasse a estar sempre contra a opinião dominante porque sim, causa-me a mesma perplexidade que as aulas de catequese em que, por vezes, se transforma o "jornalismo de referência". Dito isto, espero que a União Europeia dê um passo atrás naquela proibição de emissão de alguns canais de televisão russos, mesmo que eu não perceba nada de russo e seja muito mais sensível à propaganda que não vem do Kremlin.
domingo, 6 de março de 2022
É difícil vir aqui falar de outra coisa que não seja a tragédia que se vive na Ucrânia. Custa-me um esforço que, de momento, não me apetece fazer. E vir aqui falar da tragédia que se vive na Ucrânia é inconsequente; é quase leviano. Não sei nada de fugir da guerra, de ficar pela pátria, de lutar pela sobrevivência, a não ser que continuo a achar assombrosa a capacidade de resistência desses tantos que resistem. Não apenas na Ucrânia.
Há-de vir um tempo para refectir sobre "os cúmplices de Putin"; sobre "o vício do dinheiro sujo russo". Se não até agora, há-de chegar um tempo
para mudar radicalmente a forma como o mundo que se diz livre finge não ver o
que não convém que se veja, porque aceitar que se vê obriga a tomar uma
atitude, e uma atitude pode conduzir a uma situação de confronto. Fingir é uma técnica estafada.
Rudimentar. Pode ser bastante útil com pouca gente durante muito tempo, ou com
muita gente durante pouco tempo, mas nunca com toda a gente todo o tempo. E o
tempo, agora, é global, sôfrego, implacável. Nenhum fingimento pode escapar
incólume. A China ao virar da página, quando se puder virar a página.
Há-de chegar o momento, mas não é agora. Agora, não há dúvida nem comparação que possa ser tentada entre quem agride e quem se defende, entre quem invade e quem resiste. Agora, resistem estoicamente os Ucranianos. Sabe-se lá até quando. Sabe-se lá quem cede primeiro. O presidente russo não tem qualquer intenção de recuar na sua guerrilha megalómana, sanguinária. Acredito que testará todos os limites, inclusive, na provocação às forças da NATO, e é tão assustador pensar que a NATO não intervém no conflito, deixando a Ucrânia entregue a si própria, um escudo desumano a favor do que resta de paz no resto da Europa, como imaginar que consequências teria uma intervenção directa da Aliança Atlântica. Pelo meio, veremos se a solidariedade com a Ucrânia resiste à crise económica que aí vem.
Agora, não imagino como será possível estancar este desastre.
quinta-feira, 3 de março de 2022
quarta-feira, 2 de março de 2022
Do mundo, para fugir do mundo
“À
noite, voltou a chover. Esteve a ouvir o borbulhar da água durante muito tempo;
depois deve ter adormecido porque quando acordou já só se ouvia uma chuva
miudinha. Os vidros da janela estavam embaciados e, do lado de fora, as gotas
resvalavam em fios grossos como lágrimas. “Via cair as gotas iluminadas pelos relâmpagos
e, sempre que respirava, suspirava e sempre que pensava, pensava em ti, Susana.”
A chuva transformava-se em brisa. Ouviu: “O
perdão dos pecados e a ressurreição da carne. Amén.” Isso era cá dentro, onde
as mulheres rezavam o fim do rosário. Levantavam-se; fechavam os pássaros; trancavam
a porta; apagavam a luz.
Só permanecia a luz da noite, o ciciar da chuva
como um murmúrio de grilos…”
Pedro Páramo
Juan Rulfo
terça-feira, 1 de março de 2022
A Paz a qualquer preço?
O
que eu percebo (é um eufemismo) de guerra, de estratégia militar, de geopolítica, de tudo e mais
alguma coisa do que se tem falado nestes últimos dias é menos que nada. Vários degraus abaixo de zero. Por
isso, tudo me espanta. Nem sequer sou capaz de sentir medo. Espanto e Desolação. É só. É demasiado. Junto-me, assim, ao coro dessa gente indecente que tem convivido bem com outras
guerras por esse mundo fora, da Sérvia ao Iraque, da Palestina ao Afeganistão,
tão indecente, tão indecente, que nem serei capaz de enumerá-las todas, sem
esquecer a maior simpatia que nutro por um regime democrático, os EUA como a
cabeça do monstro, do que por outros regimes mais amigos da ordem social
manietada. Menos mal que ainda nos sobra gente que nunca perde o rumo, ou o mundo seria um lugar ainda mais terrível.
É espantoso que Kiev resista. Que os ucranianos resistam. Da coragem dos que partem para salvar os filhos, à coragem dos que ficam para salvar o país. E é evidente, até para mim, que não deve ser porque as tropas russas não tenham capacidade para vencer aquela resistência. Também me parece evidente que ninguém – não apenas Vladimir Putin – esperava que o Presidente da Ucrânia (não é a Putin que devemos agradecer, de repente, a união da União Europeia: é a Zelensky) se revelasse um verdadeiro líder, e é muito difícil perceber o dia seguinte. A hora seguinte. Como é que pode Vladimir Putin vir a perder a guerra? Como é que pode vir a ganhá-la? Como pode, a Ucrânia, outra coisa qualquer que não seja capitular?