quarta-feira, 9 de março de 2022

As peças de artesanato enchem completamente a loja. A terceira a contar do início da segunda rua que desce à esquerda, nada mais passar a loja do antiquário excêntrico, o dos baús repletos de roupa de festa e dos colares grossos, maciços, de ligas ricas de prata, pendurados com elegância feminina nos mostradores de madeira entalhada e pintada à mão. Não há GPS. Ainda preciso de contar as ruas, decorar outros entalhes, as portas de outras lojas e o padrão da pedra lascada nas paredes sujas das esquinas onde devo virar.

O próprio chão está quase todo coberto de tapetes de muitas cores, os de entrançado idêntico sobrepostos em camadas compondo uma imensa tela de intermináveis escamas garridas. Um caleidoscópio. Gosto do vermelho exuberante dos tapetes berbere, mas não só.

Há candeeiros de vários tamanhos, de ferro retorcido e pele de camelo pintada; as cornucópias do ferro lembrando as suaves colunas de fumo dos cachimbos de água que os homens fumam nas escadas de pedra voltadas para o mar, e as pinturas, tatuagens de henna num gradiente ondulado de ocres. Peças de latão martelado em desenhos geométricos, e outras de estanho liso denso e baço – algumas das minhas preferidas. Tajines de argila rosa e puffs de pele cosida a linha grossa, torcida como as tranças do chapéu de palha da velha sem idade que se senta sempre ao fundo da mesma escada à entrada do mercado de verduras.

A loja está quase às escuras. Tudo o que vejo, é o que já vi antes. A luz só se acende generosamente quando há turistas e eu já perdi esse estatuto. Sou residente. Expatriada, quando eu era demasiado jovem e pensava saber o que havia para saber sobre ser-se expatriado.

Chamo-lhe Ali Baba porque, desde o primeiro dia, a sua loja leva-me à memória da caverna dos quarenta ladrões. Ele ri-se, fechando os olhos, e não se ofende. Nunca se ofendeu. Recebe-me sempre de braços abertos, mesmo sabendo que não me deixo abraçar. Já não me oferece o chá, que me enjoa miseravelmente. Sabe que prefiro sempre o café, quente e amargo; soloDe pé, de braços esticados paralelos ao chão fofo de tapetes, com a djellaba riscada em tons suaves de azul, lembra-me uma janela voltada para o mar que se agita, invisível, lá ao fundo. A noite de ontem foi de tempestade. Em noites de tempestade, aquele mar enlouquece. Conheço aquele mar nas noites assim. Os barcos sobem e descem como finas folhas à mercê da fúria dilatada das ondas. Desde lá de dentro, num instante, vêem-se as luzes embaciadas dos candeeiros do porto, e, no instante seguinte, o ventre do mar contrai-se violentamente num espasmo vazio, grave, e só se vê o negro íngreme da água subindo vertiginosamente. Toda a Noite silva, redundante como ecos.

Pergunta-me se quero agora tomar o meu café.