segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

“A manhã era de sol, e fria. Não sabem como é este sol da beira-rio, pálido, e que mergulha nas águas como alumínio, ficando elas iluminadas só na superfície, e parece que anda a luz na flor das águas, pálida e desligada?”

A Brusca

Agustina Bessa-Luís

Espanto Absoluto

Tudo no acto de votar me seduz. A antecipação, a solenidade, o poder de decidir, a ilusão de mudança – mesmo que, muitas vezes, seja maior a ilusão do que a mudança. É-me muito difícil compreender que alguém, conscientemente, abdique desse direito; mais ainda, brandindo a sentença do “são todos iguais” etc. Não concordo com a obrigatoriedade do voto, mas não entendo a desistência.


Os portugueses votaram, e ver o mapa do país quase totalmente pintado a cor-de-rosa causa-me quase tanta impressão como pensar nos doze deputados que o partido de André Ventura acabou de eleger. Mas, é assim em Democracia. António Costa conseguiu a maioria absoluta que o BE e o PCP juraram ser a sua intenção primeira ao não ceder às reivindicações dos seus ex-parceiros de geringonça. Não sei se foi ou não foi, mas o PS, aparentemente, acabará por aplicar o Orçamento detestado: aquela imagem de António Costa exibindo, sorridente, o seu encadernado azul, em frente às câmaras, no final do debate com Rui Rio, vai demorar a esbater-se nos pesadelos de alguns. E só por muita ingenuidade se pode pensar que António Costa estará aberto ao diálogo nos próximos quatro anos.


Por muito que me expliquem das razões da gente que vota no Chega "apesar de", não chego lá. Como nunca percebi das razões idênticas no apoio a Donald Trump ou a Jair Bolsonaro. Mas, se for esse o caso, se houver, realmente, algo de bom na subida do Chega a terceira força política – ainda me custa escrever isto , vamos, seguramente, ter oportunidade de o comprovar nos próximos quatro anos. Até lá, gostaria que André Ventura berrasse menos. O que se diria se aquele diabo vestisse saia.

Por falar em diabo, o dito está mesmo nos detalhes. Se as sondagens não se enganaram, outra vez, estrondosamente, se não houve manipulação grosseira dos cálculos, Rui Rio é capaz de ter deitado tudo a perder nos detalhes, e nos detalhes ali da recta final. Do “em termos de eficácia, a justiça piorou desde o 25 de Abril”, ao não há entendimento com o Chega, mas, se calhar até há, se uma geringonça à direita assim o exigir, ensinou o dr. António Costa que se pode fazer diferente. Acho que foi o que levou muitos dos indecisos a votar no PS: o medo de ver um Governo apoiado no Chega. De outra forma, não entendo um país que dá uma maioria absoluta ao PS que pariu alguém como Sócrates, ao mesmo tempo que abre os caminhos do Parlamento aos onze apóstolos de Ventura: mais um e era realmente bíblico.


Lamento a saída de João Oliveira e de António Filipe do Parlamento e o fim do CDS. Também lamento o desnorte de Rui Rio naquela resposta disparatada a um jornalista, apesar de perceber a falta de paciência. 

Desejo, ainda assim e sobretudo, que a Oposição, toda a Oposição, saiba fazer o seu trabalho com a responsabilidade que se exige: a partir de hoje, ainda mais.


Quanto ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, deve voltar ao beijinhos assim que a pandemia ou o fim dela o permitam: para o resto, resta pouco.

domingo, 30 de janeiro de 2022



sábado, 29 de janeiro de 2022

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022



Holocausto



Roubei um título, uma história e uma obra de arte.

Vi pela primeira vez A Lista de Schindler no cinema, quando estreou em Portugal. Fiz um esforço enorme para não chorar. Enorme. O tempo todo. Quando o filme acabou, tinha marcas profundas, encarnadas, das minhas unhas cravadas nas palmas das minhas mãos. Sei que é um mecanismo de defesa inconsciente quando preciso de controlar emoções violentas.

Uma das cenas que mais me marcou – posso recordá-la vivamente de memória – é protagonizada por Ralph Fiennes: em tronco nu, numa (outra) manhã qualquer, Amon Leopold Göth assoma à varanda da sua casa, com vista privilegiada para o campo de concentração nazi de Plaszow. Agarra na espingarda, observa a azáfama dos condenados, ajusta a mira da arma e escolhe a primeira vítima. Pousa o cigarro e aponta certeiro à mulher agachada no chão. Assim que ela se ergue, dispara a matar. Recolhe, indolente, o cigarro pousado no muro e, entre duas passas, escolhe uma segunda vítima. Aleatoriamente, sem qualquer critério especial. Apenas porque pode e porque isso lhe dá gozo.

Quando vejo imagens do líder do Chega, nos palcos das suas imensas vaidades, de joelhos no chão e braço estendido fingindo que faz-e-não-faz a saudação nazi, não sei se me repugna mais a imbecilidade ou a cobardia. Será a imbecilidade. Até a cobardia exige uma certa têmpera.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022



Os nossos, morrem-nos menos se, no fim, pudermos continuar a encontrá-los no silêncio dos cemitérios? Se nos deixarem, depois de mortos, os seus corpos ainda intactos sepultados na terra ou encerrados nos elegantes jazigos, em vez de, cumprindo a sua última vontade que é a minha também, consentirmos que se desfaçam no pó último das suas cinzas, quero dizer. A Morte é menos Morte na ilusão física da presença?


A Política Mora ao Lado

Acho que a primeira vez que vi Joacine Katar Moreira foi no programa de Ricardo Araújo Pereira. Era o tempo do Gente que Não Sabe Estar, estávamos em vésperas das eleições legislativas de 2019 e Joacine Katar Moreira era candidata pelo Livre. Nesse programa, Joacine proferiu duas frases que me ficaram na memória. Já não sou capaz de reproduzi-las fielmente, mas, o que disse, traduz-se exactamente assim: gaguejava quando falava, mas, muitos havia que gaguejavam a pensar; e que ninguém esperasse que, confrontada toda a vida com a circunstância de ser mulher e negra, escondesse, agora, a evidência (eventualmente, a vantagem, subentendia-se) dessa condição. Depois disso, lembro-me de ter ouvido alguém (vários "alguéns", na verdade) sugerir que a eleição de Joacine Katar Moreira como deputada pelo partido que ainda representava ficou a dever muito a essa entrevista que deu a Ricardo Araújo Pereira (nunca cheguei a perceber se teria sido por culpa da entrevista ou por culpa da gaguez).

Uma ou duas declarações de interesse: eu ainda sou capaz de me render facilmente ao humor de Ricardo Araújo Pereira; e, na altura, fiquei bastante impressionada com a ousadia de Joacine Katar Moreira. Não, não votei no Livre na altura e não vou votar no Livre agora, mas, sim, foi necessária uma enorme ousadia para assumir-se como candidata a um cargo político sem possuir uma das competências mais importantes para desempenhar esse cargo político com sucesso. Podemos fazer piadas, seria mais do que uma a incompetência, tanta graçafingir que não há nada de extraordinário no facto de uma mulher negra guineense e gaga propor-se ao exercício de um cargo de representação política no seio da Assembleia da nossa República; mas há. Aliás, podíamos ficar logo ali apenas pelo gago, profundamente gago, mesmo no masculino, e já seria tarefa hercúlea. Outra coisa diferente é criticar a conduta política da deputada, nomeadamente, naquela penosa novela que acabou com a sua saída do Livre (o próprio Livre fez bastante pelo desastre, sejamos justos).

E tudo isto porquê? Porque começa a parecer-me absurda esta promiscuidade crescente entre o humor e a política; ou, pelo menos, entre alguns dos seus actores. Bem sei que é um exemplo admirável e inequívoco de simbiose perfeita, mas começa a ter pouca graça. Não porque acredite que os programas de Ricardo Araújo Pereira possam moldar intenções de voto – para isso já temos as sondagens, não é, ou as Tracking Poll, como dizemos agora – mas porque começamos a ter dificuldade em distinguir os palhaços. Mas posso ser só eu. Afinal, foi preciso ouvir o RAP, também dizemos assim agora, para saber que ainda vive essa coisa chamada Big Brother e que um dos concorrentes é Bruno de Carvalho.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Ainda não percebi bem se as sondagens pretendem cumprir uma função de escrutínio ou de ameaça. O que seria deste estafado país se são continuássemos a dispor de um dia inteirinho para reflexão...


sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

“Pedes o impossível. Pedes mesmo o impossível. Se realmente amas essa rapariga como dizes, será melhor que a ames intensamente de modo a ganhar em força o que faltará em duração e continuidade. Percebes? Outrora, as pessoas dispunham de uma vida inteira. E agora que a encontraste, se tiveres ainda duas noites deves espantar-te de tanta sorte. Duas noites para amares, para te enterneceres. Para o melhor e para o pior. Na doença e na morte. Não, enganei-me; na doença e na saúde. Até que a morte nos separe. Em duas noites.”

Por Quem os Sinos Dobram

Ernest Hemingway

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

O tempo que empresto à leitura de poemas, ou de cartas, ou de contos, ou de crónicas tem, se não outra, a virtude de consentir uma ilusão breve de desordem. Posso ler o que vem por último antes de ler o que vem primeiro, o seguinte antes do segundo e assim não sucessivamente, e, na posse de tão frágeis embustes, posso, talvez, também fingir que ainda sou dona da minha vontade e senhora absoluta de todos os caminhos que levam a mim.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022



terça-feira, 18 de janeiro de 2022

"Há diálogos formidáveis na obscuridade."

Húmus

Raul Brandão

Há diálogos formidáveis no silêncio, também.




segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

 


 

Os Rebeldes Assim-Assim

Não sei se percebi bem a novela à volta do tenista sérvio Djokovic. Daquilo que ouvi aqui e ali, acho que foi mais ou menos isto:

Na minha primeira vez, o homem que estava sentado na cadeira ao meu lado tinha a máscara colocada imediatamente abaixo do nariz. Um rapaz com ar demasiado novo, enfiado num daqueles fatos espaciais, branco da cabeça aos pés, máscara e luvas inclusive, avisou o homem da necessidade de colocar a máscara bem colocada. O homem grunhiu qualquer coisa que não percebi e penso que fosse essa a intenção, e subiu a máscara o mínimo possível, para voltar a baixá-la assim que o miúdo se afastou. Veio, então, uma mulher mais velha, num passo seguro de quem conhece o terreno em que se move, mandou – literalmente – o homem olhá-la de frente e perguntou-lhe se ele estava a ver como ela tinha a máscara colocada: É assim que deve colocar a sua, caso contrário, vai ter que esperar lá fora. O homem já não grunhiu, colocou a máscara a tapar também o nariz e assim ficou, pelo menos até ao momento em que apareceu o meu número a piscar no écran e saí da sala de espera. 

Devo dizer que começo a sentir mais simpatia pelos chalupas do que pelos deixa-lá-ver-se-isto-passa. Não sei em qual dos dois encaixa Djokovic. Há aquela questão do privilégio, se podemos ou não tolerar a diferença na desobediência dependendo de quem a pratica, mas, neste caso, não creio que exista tanto romantismo: estão lá as falsas declarações, as posteriores tentativas de explicação e os pedidos de desculpa. Não há, propriamente, um acto de resistência. É uma pena.

Boris Johnson também resiste, mas, no caso do ainda primeiro-ministro do Reino Unido percebe-se, pela assumida dificuldade em distinguir o trabalho do prazer. Dizem que devia ser assim sempre. Se calhar por falta disso, António Horta-Osório acaba de demitir-se do cargo de presidente do Credit Suisse.

Mas, estamos em campanha eleitoral e há coisas que nos deveriam interessar mais. Menos mal que este blogue não é desses.

domingo, 16 de janeiro de 2022

 



sábado, 15 de janeiro de 2022

“Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto — e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras — quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.”

Um Sopro de Vida

Clarice Lispector

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Até já tinha arrumado Lloyd Cole, mas, liguei o carro e a TSF estava a passar isto, e eu tenho a certeza de que há bruxas. 

Só mais uma vez…


quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

David(es) e Golias

Como não percebo nada de política, gostei do debate entre Rui Rio e João Oliveira. Foi um dos debates, dos que vi, que mais gostei de ver. Gosto do João Oliveira. Digo de João Oliveira o que Marques Mendes disse de Rui Tavares: a Assembleia da República merece ter lá alguém como ele(s). É inteligente, eloquente, assertivo, cordial sem ser pateta, é alentejano e senhor de um humor à altura da terra e das gentes. Também é comunista, é certo, e não se pode ter tudo; mas antes comunista – pelo menos, dos de trazer por esta Casa – que André Ventura. Reitero o meu desejo de ver o Chega definhar até ao próximo dia 30 para, aí chegado, receber a extrema unção. Ámen. Como Deus conversa com Ventura, ou é ao contrário, já não sei, o líder do Chega pode aproveitar o momento para lhe encomendar a alma na próxima e definitiva visita, antes da ressurreição de todos os homens de bem.

De resto, estou como o Luís Pedro Nunes: apesar do escândalo, não volto a chamar Chicão ao futuro ex-líder do CDS. Mas, muito bem fez Catarina Martins em deixar o porco a brincar sozinho.

O outro debate que gostei muito de ver foi o de agora mesmo, entre Rui Rio e António Costa. Quase tão bom como deve ser um bom debate político. Até me atrevo a dizer que ganhou Rui Rio, como se diz agora. Lá se baralharam as sondagens outra vez...

Prova Cega

A propósito de outro fenómeno de identidade escondida com palavras de fora, na forma de livro, ocorreu-me que também seria interessante que se pudessem organizar “provas cegas” de literatura. Tenho imensa curiosidade – e, às vezes, tempo livre para desperdiçar em parvoíces – sobre a crítica que se faria à escrita de autores conhecidos desconhecendo-os. Partindo do princípio de que as palavras não denunciariam o seu rosto. Há escritores cujo corpo e alma batem em cada sílaba. Ou não, e tudo não passa de uma identidade inventada...

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

“Todos os erros humanos são impaciência, uma interrupção prematura do metódico, uma aparente delimitação da coisa aparente.”

 

Franz Kafka

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Um amigo diz-me que o melhor dos velhos discos de vinil eram as capas. As dos LP, especialmente. Enormes. Desdobráveis, algumas. “O melhor” é aquele comparativo a que se recorre quase sempre no espanto exagerado, intraduzível de outro modo na ilusão de um instante. Eu gostava sobretudo de fixar o movimento lento, levemente ondulado, hipnótico, da agulha deslizando suavemente para o centro, de rotação completa em rotação completa sobre os sulcos gravados no vinil, lendo alto um bordado de notas invisíveis. Vinil é  como pecado  outra palavra extraordinária. Não é? 

Ando a soprar a poeira ao gira-discos antigo. Não sei se sou capaz de pô-lo a funcionar outra vez, mas, enquanto tento, vou também redescobrindo velhas músicas, velhas notas. Memórias. Ao contrário do que ouço dizer a muita gente ilustre e a outra, não canto no duche. Canto no carro. Às vezes. À semelhança de outro tanto de gente. No duche, gosto do silêncio nublado e húmido, móvel, que se dissolve no estalar seco da água corrente. Entre muitas outras coisas muito mais importantes, a pandemia sabotou parte abundante das minhas melhores intenções para com o meio ambiente. Troco de máscara freneticamente, consciente (ou inconsciente) de que o faço mais por compulsão do que por necessidade absoluta; e passei a demorar-me indecentemente no duche. Não sei se pelo desejo de diluir a soma de todos os meus vícios – covídicos ou não covídicos –, se apenas pelo prazer. Prazer é outra palavra de que gosto muito.



domingo, 9 de janeiro de 2022

A Química está no Ar. No Amor e na água dos tremoços. Na outra também. E por aí fora...

Ouvir Nuno Maulide falar de Química levou-me de volta aos velhinhos anfiteatros da FCUP e à memória das aulas de Química Orgânica com o professor Carlos Corrêa; embora os dois só se pareçam na paixão pela Química Orgânica. O professor Carlos Corrêa era muito mais corrosivo. Tinha - creio que ainda terá - um sentido de humor daqueles que aleija. As paredes do gabinete que mantinha no antigo edifício da Faculdade estavam forradas com os disparates que os alunos escreviam nas respostas das frequências, ou dos exames. Entrei lá poucas vezes, e sempre receosa de dar de caras comigo ali estampada na parede. Nunca calhou, mas pode bem ter sido por não ter prestado a devida atenção. 

Deixo aqui o link da conversa de Nuno Maulide com Vítor Gonçalves. Para os que gostam de boas conversas, ainda que não gostem de Química. 

E, sim, há uma fórmula para a felicidade, mais ou menos, mas, não, não dá para agarrar...






Teremos Sempre a Democracia?

Há dois dias foi João Miguel Tavares a escrever um texto que eu queria ter escrito. Hoje, foi a Clara Ferreira Alves, e os textos da Clara Ferreira Alves são sempre mais brilhantes; até quando eu não concordo com ela. Não é o caso, neste caso.

Cumpriu-se um ano sobre aquele dia surreal: o assalto ao Capitólio. É a marca de Donald Trump. E, apesar do estupor, não se pode dizer que tenha sido totalmente inesperado. Estavam lá todos os sinais, “very fine people, on both sides” no horror de Charlottesville; "stand back and stand by", para os seus Proud Boys, no debate com Joe Biden; a perseguição à caravana de campanha de Biden por patriotas que não fizeram nada de mal, mesmo que um desses patriotas tivesse investido contra um dos veículos; e mais. O presidente Trump nunca perdeu uma oportunidade para atiçar a sua matilha armada e sempre deixou claro que não iria aceitar o resultado das eleições, a não ser que as vencesse. E o ignominioso discurso nesse dia igual, em que incitou à desordem instigando os seus apoiantes a descerem ao Capitólio, a serem fortes, o derradeiro apelo à rebelião. Não se acreditou porque há momentos em que nos recusamos a acreditar. Como se fosse possível travar o absurdo apenas por rejeitar imaginá-lo.

O que acontece nos Estados Unidos da América nunca fica nos Estados Unidos da América. O mundo democrático enfrenta um monstruoso desafio na preservação dessa Democracia. Não sei se ampliado ou não pelo eclodir da pandemia. Há quem diga que foi ela a responsável pela derrota de Trump e haverá nisso alguma verdade. Talvez a democracia americana não tivesse resistido, à época, a um segundo mandato de Trump. Mas, o mundo de há um ano não é o mundo de hoje, e o mundo de hoje não é, seguramente, o mundo do calendário das próximas eleições presidenciais americanas. Também acredito que, se Donald Trump puder vir a candidatar-se às presidenciais de 2024, e se, até lá, os Democratas não tiverem uma alternativa sólida a Joe Biden, Donald Trump voltará a ser presidente dos EUA. Da próxima vez, não haverá medo da pandemia, que terá perdido, entretanto, o estatuto de ameaça, de desconhecido. Não são só os chamados negacionistas. Há um misto de egoísmo e cansaço. Quando não é cansaço, é desilusão, e a desilusão, talvez mais do que o desespero, é terreno maduro para acolher rancores. Donald Trump, a sua eleição em 2016, abriu um caminho sombrio; tornou aceitável, apetecível, a maldade na sua forma nauseabunda, é esse o seu grande legado. E a França de Éric Zemmour bebe da mesma fonte. O Brasil de Bolsonaro, e veremos o que se prepara no rescaldo das próximas eleições. Há uma audiência cada vez mais sedenta de sangue. A cultura do “politicamente correcto”, do policiamento e da censura tornou-se tão absurda que ajudou a elevar o insulto à categoria de argumento. Agora mesmo, nos nossos debates pré-eleitorais. Com a bênção de jornalistas e jornalismos de referência.

sábado, 8 de janeiro de 2022


 


A rapariga da papelaria diz-me que “agora são quatro euros e cinquenta”. Digo que sim, que sei, que até estou quase a comprar duas vezes, porque sou assinante, mas, por causa do ataque informático não posso aceder à versão digital. “Ataque? Qual ataque?”, e pensei que não era a sério, que era uma tentativa de piada, porque nos conhecemos há bastante tempo. Era a sério. Não sabia nada de ataques informáticos. Às vezes penso que as pessoas mais felizes são as que vivem assim, de costas voltadas às coisas mundanas.

"Parece que as palavras, na tua pena, se tornam carne, estremecem, pulsam, vibram! Dizes "Apetece-me!, apetece-me!", e a gente fica com fome e sede sem saber de quê... Escreves como modelas o barro e acaricias: dás vida ao que tocas. Deste-me vida a mim também, que estava morta..."


Fiz como ouvi contar e fui à minha biblioteca municipal requisitar o segundo volume de O Milagre Segundo Salomé, de José Rodrigues Miguéis. Também só tenho o primeiro volume, mas, no meu caso, ainda mantenho uma pequenina esperança de vir a encontrar o segundo perdido algures entre a poeira das estantes de livros da casa dos meus pais.

Li tudo com a avidez do costume quando os livros me devoram.

O país de agora não é o país turbulento e satirizado sem dó nem piedade nas setecentas páginas do livro, dois livros, de Miguéis, mas há sempre um pedaço de miséria que sobrevive ao passar do tempo; e não é preciso grande esforço para encontrar, no país de agora, muito daquele atraso, muita da desesperança dos pobres e da arrogância de rapina de uma certa elite amarelenta, que enchem as páginas d’O Milagre. E o milagre é, como rapidamente se adivinha, em tudo idêntico ao de Fátima, sem que nada do que se possa saber à partida diminua a vontade e o prazer da leitura. Os regionalismos são, ao mesmo tempo, deliciosos e contundentes. Os “entremezes” de  Gabriel Arcanjo são ácidos e, mesmo que o autor não tivesse pretendido “reconstituir factos ou acontecimentos nem evocar pessoas”, como se lê na introdução, é sempre possível encontrar semelhanças, antes como agora, e sem grandes abusos de imaginação.

Depois, há Salomé. A “insondável contradição da maioria dos homens”, a “fêmea sabida, mas pura; facilmente exaltada, mas submissa e fiel”. A meretriz eternamente virginal que encontra, finalmente, o amor. A personificação do feminino imaginado e imaginário perfeito, por isso, irreal. Mas é bom, às vezes, um “vago sabor de conto de fadas”, como (também) dele disse Pedro Tamen. Entregarmo-nos a uma leve embriaguez. Acreditar que cabemos no sonho de alguém, ser a urgência da saudade, o objecto que se deseja em segredo; que é meu o nome que morre na tua boca.


quinta-feira, 6 de janeiro de 2022


 


Vinha dizer qualquer coisa sobre os debates. O "killer Ventura" e os (supostamente) moderadores e comentadores. Nomeadamente sobre a estratégia estafada do líder do Chega: driblar para baralhar; desviar – como os mágicos em momentos chave – a atenção do público para o acessório, para que ninguém se detenha no essencial; e como o público continua a pasmar e a maravilhar-se, apesar de o truque ser sempre o mesmo e já ter sido visto dezenas de vezes. Não fui capaz de encontrar um fio condutor e dar corpo a um texto que se lesse, e desisti. Esbarrei neste do João Miguel Tavares sobre o mesmo assunto, e é muito melhor do que aquele que eu tinha pensado. Assim, vou só falar das manhãs mudas de nevoeiro rendilhado como teias de aranha, por onde a luz, escassa, se deixa filtrar em finos fios, uma levíssima e delicada filigrana, etérea, num labor paciente e amoroso, como as fiandeiras fiando o linho, rolando com embalada minúcia o fuso na ponta dos dedos. Não interessa nada na mesma, mas faz-me mais feliz.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022



terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Afinal tenho um desejo para 2022: que André Ventura e o seu Chega morram nas urnas, no próximo dia 30. Como deve ser. De preferência, em agonia.


segunda-feira, 3 de janeiro de 2022



“Emily Brontё. Tudo o que emana d’Ela tem a capacidade de me perturbar. Haworth é o meu local de peregrinação.”

Emil Cioran

 

Lembra-me que O Monte dos Vendavais é um dos livros a que regresso sempre com gula; para encontrar qualquer coisa que nunca lá esteve da vez anterior.


domingo, 2 de janeiro de 2022