Há
dois dias foi João Miguel Tavares a escrever um texto que eu queria ter
escrito. Hoje, foi a Clara Ferreira Alves, e os textos da Clara Ferreira Alves
são sempre mais brilhantes; até quando eu não concordo com ela. Não é o caso,
neste caso.
Cumpriu-se
um ano sobre aquele dia surreal: o assalto ao Capitólio. É a marca de Donald
Trump. E, apesar do estupor, não se pode dizer que tenha sido totalmente
inesperado. Estavam lá todos os sinais, “very fine people, on both sides” no horror de Charlottesville; "stand back and stand by", para os seus Proud
Boys, no debate com Joe Biden; a perseguição à caravana de campanha de Biden
por patriotas que não fizeram nada de mal, mesmo que um desses patriotas
tivesse investido contra um dos veículos; e mais. O
presidente Trump nunca perdeu uma oportunidade para atiçar a sua matilha armada
e sempre deixou claro que não iria aceitar o resultado das eleições, a não ser
que as vencesse. E o ignominioso discurso nesse dia igual, em que incitou à desordem instigando os seus apoiantes a descerem ao Capitólio, a serem fortes, o derradeiro
apelo à rebelião. Não se acreditou porque há momentos em que nos recusamos a acreditar.
Como se fosse possível travar o absurdo apenas por rejeitar imaginá-lo.
O que acontece nos Estados Unidos da América nunca fica nos Estados Unidos da América. O mundo democrático enfrenta um monstruoso desafio na preservação dessa Democracia. Não sei se ampliado ou não pelo eclodir da pandemia. Há quem diga que foi ela a responsável pela derrota de Trump e haverá nisso alguma verdade. Talvez a democracia americana não tivesse resistido, à época, a um segundo mandato de Trump. Mas, o mundo de há um ano não é o mundo de hoje, e o mundo de hoje não é, seguramente, o mundo do calendário das próximas eleições presidenciais americanas. Também acredito que, se Donald Trump puder vir a candidatar-se às presidenciais de 2024, e se, até lá, os Democratas não tiverem uma alternativa sólida a Joe Biden, Donald Trump voltará a ser presidente dos EUA. Da próxima vez, não haverá medo da pandemia, que terá perdido, entretanto, o estatuto de ameaça, de desconhecido. Não são só os chamados negacionistas. Há um misto de egoísmo e cansaço. Quando não é cansaço, é desilusão, e a desilusão, talvez mais do que o desespero, é terreno maduro para acolher rancores. Donald Trump, a sua eleição em 2016, abriu um caminho sombrio; tornou aceitável, apetecível, a maldade na sua forma nauseabunda, é esse o seu grande legado. E a França de Éric Zemmour bebe da mesma fonte. O Brasil de Bolsonaro, e veremos o que se prepara no rescaldo das próximas eleições. Há uma audiência cada vez mais sedenta de sangue. A cultura do “politicamente correcto”, do policiamento e da censura tornou-se tão absurda que ajudou a elevar o insulto à categoria de argumento. Agora mesmo, nos nossos debates pré-eleitorais. Com a bênção de jornalistas e jornalismos de referência.