"The
Medulla Nebula Supernova Remnant", Kimberly Sibbald
Hoje, o Anjo que, desde há anos e do Céu (às vezes acredito no Céu), vela por mim na estrada, tenho a certeza, porque me amou profunda e pacientemente num tempo em que eu nem
sabia bem o que era isso de amar – salvou-me (desta vez) do imbecil em marcha-atrás na auto-estrada, num corredor da via verde único, comigo atrás e a chegar. Há manobras tão estúpidas, tão estúpidas, que custam a crer.
Aqui
as noites têm sido mornas e silenciosas. Excepto pelo vento, em liturgias de
capela, soprando grave por entre os tubos enferrujados e sujos dos andaimes acabados
de montar na frente do prédio de quatorze andares. Uma vertigem. Juro que há
noites em que o meu vento canta assim
…vidros partidos e gente trancada na casa de banho. Esquecimentos, confusões, omissões, mentiras descaradas e pareceres da semântica. Mensagens por WhatsApp a autorizar indemnizações de meio milhão de euros, exonerações por telefone, tão bom e moderno e banal – há dias, contaram-me de um casamento de quinze anos, com duas filhas pequenas, que acabou por sms, lamento muito apaixonei-me por outra pessoa e vou viver para (não interessa nada), over and out –, tudo nesta comédia trágica da TAP e seus mosqueteiros há-de ser muito regular, eu é que não chego lá. Valha ao desgoverno de António Costa o papão do Ventura e Companhia, como, aliás, ele bem sabe e por isso não se cansa de os evocar. Ou invocar?
Alguém de quem gosto muito diz-me que o melhor remédio para acabar com aquele
partido de arruaceiros seria enfiá-los no Governo com uma pasta complicada, entre
as Finanças e a Saúde, e deixá-los mostrar do que não são capazes. Talvez, não
sei. Sei que o CHEGA me parece bastante mais inofensivo do que outros partidos congéneres
e André Ventura não é Donald Trump nem Santiago Abascal. É preciso um certo estômago
para aquilo, daí aqueles problemas abdominais que costumam adoecer Bolsonaro sempre que a coisa
fica preta para o lado dele (o vídeo em que questionava o sistema eleitoral
brasileiro depois da sua derrota foi, afinal, publicado por engano, era para si
mesmo apenas, claro, a sacanagem, para levar a bom porto, exige uma certa coragem).
Se isto não é uma degradação absoluta da nossa Democracia...
“E
penso que a chamada inteligência artificial enquadra-se muito bem nisto. [As
ferramentas de IA] estão a induzir no público uma sensibilidade que nega
fundamentalmente o objectivo da ciência. De que vale compreender o que quer que
seja quando se pode analisar um sem fim de dados e prever o que vai acontecer?
Este é o mais radical ataque ao pensamento crítico, à inteligência crítica e
particularmente à ciência que eu alguma vez vi.”
"A legislação não ajuda. Não podemos proibir o Mein Kampf [livro de Adolf Hitler]. O que se tem de fazer é encorajar as pessoas a lê-lo e a descobrir o que é. Quer viver neste tipo de mundo? Isso é o que se faz."
Amava-as assim, superficialmente. Sem audácia. Com a leveza oca da espuma desfeita pela brisa
do mar, não com a urgência do rio cheio que cava a terra, sofregamente,
lavrando margens e leitos numa ânsia de fim e de regresso. Um amor breve, que não
magoa porque nunca sangra e, por isso, nunca deixa marcas, nem memória, nem
saudade.
O(s) papelucho(s) do Chega no Parlamento, com as suas bandeirinhas da Ucrânia mais os cartelinhos anti-corrupção e os batuques de bancada para mostrar o que já se sabe que são, é para lá de ridículo. Não sei se serve para “envergonhar” Portugal, porque, em princípio, seria necessário mais do que um grupo de doze paspalhos, mesmo se deputados, para façanha tamanha. Sinto-me muito mais envergonhada por esta confraria patética, onde os principais representantes da Nação, seja lá o que isso for por estes dias, se comportam como miúdos no recreio gabando-se das últimas proezas, ou velhos decrépitos fazendo prova de vida. É tão penoso assistir àquilo que até me custa deixá-lo aqui exposto: fica a ligação, pelo menos enquanto não for censurado de vez. E o Presidente da República metido naquilo.
Miserável.
Sobre
o ombro do meu filho, o menino, curioso, espreita-lhe o livro aberto sobre o
colo, páginas cheias de letras corridas como formigas num carreiro,
incompreensíveis ainda para os seus minúsculos três anos: “ih, tantas palavras…”,
num assombro quase confessional, baixo e sigiloso, uma pequena revelação.
Que idade é essa, em que perdemos a capacidade de nos maravilharmos com as coisas simples?
Sei de segredos lavrados sobre o poente vermelho do Sol. Sei do deserto, do desejo, do rumor do luar nas noites nuas de fim de mundo, sal de lágrimas por abrir, dunas de estrelas cadentes, ondas de mar a morder-me no ventre, trilhos de versos por desbravar, e uma muralha de nuvens negras caminhando sobre as águas ásperas de Primavera adiada.
Os
previdentes e os presidentes tomam de ponta
Os inocentes que têm pressa de voar
Os revoltados fazem de conta fazem de conta...
Os revoltantes fazem as contas de somar.
Embebo-me na solidão como uma esponja
Por becos que me conduzem a hospitais.
O medo é um tenente que faz a ronda
E a ronda abre sepulcros fecha portais;
Os edifícios são malefícios da conjura
Municipal de um desalento e de uma Porta.
Salvo a ranhura para sair o funeral
Não há inquilinos nos edifícios vistos por fora
Que é dos meninos com cataventos na aérea
Arquitectura de gargalhadas em cornucópia?
Almas bovinas acomodadas à matéria
Pastam na erva entre as ruínas da memória,
Homens por dentro abandalhados em unhas sujas
Que desleixaram seu coração num bengaleiro;
Mulheres corujas seriam gregas não fossem as negras
Nódoas deixadas na sua carne pelo dinheiro;
Jovens alheios à pulcritude do corpo em festa
Passam por mim como alamedas de ciprestes
E a flor de cinza da juventude é uma aresta
Que me golpeia abrindo vácuos de flores silvestres
E essa ansidedade de mim mesma me virgula
Paula de pátria entressonhada. É um crisol.
E, o fruto agreste da linfa ardente que em mim circula
Sabe-me a sol. Sabe-me a pássaro. Pássaro ao sol.
Entre mim e a cidade se ateia a perspectiva
De uma angústia florida em narinas frementes.
Apalpo-me estou viva e o tacto subjectiva-me
a galope num sonho com espuma nos dentes.
E invoco-vos, irmãos, Capitães-Mores do Instinto!
Que me acenais do mar com um lenço cor da aurora
E com a tinta azulada desse aceno me pinto.
O cais é a urgência. O embarque é agora.
(Ainda) Natália Correia
Chamo
sempre àquele poema "Cântico do País Submerso”, que é o que sinto muitas
vezes. Não é intencional: foge-me para lá o pensamento, e, com ele, a palavra.
Não interessa nada, emerso ou submerso, acima ou abaixo, é intemporal.
Não ouvi o “líder da oposição” renegar entendimentos e coligações com o partido cujo nome não deve ser pronunciado, mas se calhar apenas por isso, impronunciar, já que o líder daquele bando de arruaceiros de bem veio acusar o toque – afinal, sempre se reconhecem como “políticos racistas”, “xenófobos”, “oportunistas” e “populistas”. Ou isso, ou Montenegro não quis dizer o que efectivamente não disse, de onde, até às próximas eleições, a aritmética dirá com quantos desses se faz uma nova geringonça, no caso, à direita.
Há
pouco, vi numas imagens de televisão um dos filhos de Jair Bolsonaro (diziam as
legendas, não conheço a fera), fazer peito para um outro deputado com idade,
talvez, para ser pai dele, o que não tem qualquer relevância, na verdade, e nem
prestei muita atenção ao que se dizia, mas assaltou-me uma espécie de revelação
do chiqueiro, pardon my french, em que se pode vir a tornar o nosso Parlamento
se (quando?) o Chega chegar ao Governo – em vez de andarem aos murros entre si,
sempre podem atirar-se, literalmente, aos deputados das outras bancadas. Pancadaria
vivinha. Um luxo. A Democracia encarcerada entre a parede de uma endogamia
política em avançado estado de decomposição e a espada desses valentes cavaleiros
da pátria, cruzados do bem, ámen. Venha, finalmente!, o Diabo e escolha, que eu
já não me sinto capaz.
Ouvi
alguém defender que apenas Passos Coelho ou Carlos Moedas podem salvar ou
resgatar o PSD, mas Passo Coelho ainda não foi perdoado, creio, e Carlos
Moedas, enfim, nem sei o que dizer; a montanha pariu um rato, talvez.
Por estes dias, um fotógrafo recusou um primeiro prémio num concurso de fotografia a que se apresentou com uma imagem gerada por inteligência artificial com objectivo de demonstrar se “competições do género estão preparadas para discriminar imagens criadas através de inteligência artificial”, concluindo que “não estão”, apesar de um “representante da Organização Mundial da Fotografia” ter confirmado que “Boris Eldagsen tinha assumido a “cocriação” da imagem – para a qual a inteligência artificial também contribuiu”. Estou confusa, e não é pela fotografia, que me parece bastante artificial. Mas eu não sou de retratos, sou de paisagens ou, no extremo oposto, de pequenos detalhes, não sei nada de retratos a não ser que quase me intimidam. E aquelas mãos… são estranhíssimas aquelas mãos, parecem-me suficientemente artificiais. Gosto de mãos naturais.
Por
falar em estranho, e eu ainda estranho: uma editora americana declinou publicar “Pão de Açucar”, de Afonso Reis Cabral (de quem nunca li uma obra e desconheço
tudo, excepto a circunstância de ser trineto de Eça de Queiroz), porque não foi
capaz de encontrar um leitor de sensibilidade LGBTQI+ que lesse em português. Espero
que todas as edições revistas por “leitores de sensibilidade” venham a exibir
uma marca, um selo, uma prova do crime que alerte leitores insensíveis como eu
para o perigo da estupidificação em massa; em marcha.
O mundo avança como um tornado. Violento como sempre, veloz como nunca. Perco, várias vezes, o fio condutor, e não há um dia em que não agradeça o meu lugar de privilégio – o meu trabalho, as minhas viagens, os meus livros, os meus Meus –, consciente de quão frágil esse lugar pode ser. Basta o humor da Terra ou de um lunático sedento de poder e de vingança a quem devemos apaziguar convencendo a Ucrânia esventrada, queimada, massacrada, a render-se em prol de uma certa ideia de paz. Não mudei de opinião em relação à guerra de Putin, mas percebo melhor o pragmatismo, mesmo que cínico, dos que defendem essa coisa a que chamam Realpolitik – é um trabalho sujo, mas alguém tem de o fazer – do que a indignação dos que apontam à hipocrisia e aos interesses camuflados e tenebrosos dos EUA/NATO amparados pela subserviente UE. Não é que eu duvide das más intenções destes também, não duvido nada, mas, se fizemos do mundo este lugar perverso, prefiro viver sob um regime que, sendo muitíssimo imperfeito e maligno demasiadas vezes, ainda assim, dá-me voz. Para concordar ou discordar, aceitar ou rejeitar. É muito confortável bradar contra a hegemonia intolerável de países democráticos sem correr o risco de cair de uma janela, ser envenenada, encarcerada, espancada, e outros mimos do género.
Não sinto qualquer simpatia, nem empatia, por quem, vivendo em democracia e em liberdade (tanto quanto as duas sejam possíveis nos seus incontáveis desmandos – diria “incontornáveis”, mas estou cada vez menos segura disso), se manifesta com intencional violência, destruindo, incendiando, mutilando, como se vê recorrentemente nas ruas de Paris e arredores a propósito de tudo e de nada. Mas posso sentir repúdio idêntico por quem – e aqui me incluo, por absurdo que pareça –, nessa mesma liberdade democrática, tolera ao poder político eleito nas urnas o que temos vindo a tolerar a este poder político nos últimos tempos.
O caso TAP é escabroso, mas é o retrato clarinho clarinho do abuso, do menosprezo e da leviandade com que o Governo de António Costa, ou o PS de António Costa, ou talvez as duas coisas juntas e outras antes destas, tratam a cousa pública e, naturalmente, os dinheiros públicos; no que toca a dinheiros públicos há uma ligeireza criminosa cuja responsabilidade nunca se apura, dos trezentos mil euros do pavilhão do senhor Moutinho aos um ponto trinta e cinco milhões de euros daquele outro senhor, o Maximilian Otto Urbahn – quinhentos mil euros para Alexandra Reis mal chegam para os sapatos Louboutin que tantos dentes fizeram ranger. E veremos em quanto será o Estado obrigado a indemnizar Christine Ourmières-Widener; depois dos três e não sei quê mil milhões de euros que doámos colectiva e serenamente para salvar qualquer coisa que era estratégica e fundamental para o país até deixar de o ser exactamente com a mesma veemência.
O Presidente da República não se atreve a dissolver o Parlamento porque não confia em Montenegro nem um bocadinho, e não é apenas pela inevitável aliança que o PDS há-de forjar com o Chega: sou capaz de apostar que nem o próprio Montenegro se sente à altura do colossal desafio, governar um país ingovernável. "Bom dia, sei que isto é um incómodo para ti mas não podemos mesmo perder o apoio político do Presidente da República. Ele tem-nos apoiado no que diz respeito à TAP, mas se o humor dele mudar, tudo se perde. Uma frase dele contra a TAP ou o Governo e ele empurra o resto do país contra nós. Não estou a exagerar. Ele é o nosso principal aliado político, mas pode transformar-se no nosso pior pesadelo". Espantoso. E não há um abalo.
Pasmo com a postura quase cândida – mas os ingénuos somos nós – daqueles
que ainda são capazes de vir a público defender, sem gaguejar, a idoneidade destas
personagens de tragicomédia, como Pedro Delgado Alves no seu frente-a-frente semanal
com Miguel Morgado, e Deus, se existir, é testemunha do que me irrita a inflamação
discursiva de Miguel Morgado.
Não imagino como será possível ao Presidente da República – se não ao primeiro-ministro antes dele – aguentar este desgoverno até ao fim da legislatura. É verdade, só de imaginar ver o Chega integrar um próximo Governo da República Portuguesa dá-me náuseas. Desprezo gente capaz de defender, de promover, a perseguição de outra gente apenas pela cor, pelo credo, pelo berço, pelo género, pelos actos criminosos de alguns dos seus, o que não é o mesmo que aceitar o exacto oposto, dos géneros socialmente construídos aos leitores de sensibilidade, mas, de algum modo, chegámos aqui: se não é preto é absolutamente, visceralmente, branco; tentar encontrar pontes de entendimento é traição, amamo-nos ou odiamo-nos, e nunca foi tão fácil, tão simples, pese embora a garantia de muitos de que o mundo sempre foi assim de medonho, provam-no a História, os clássicos da literatura e os sketches dos Monty Python, nada deste desvario é de agora, e a internet, onde as mesmíssimas velhas injúrias viajam à velocidade da luz, tem muito pouco a ver com a tragédia. Educação. Seremos salvos pela Educação. Sou Mulher, sou Mãe, e, como se não bastasse, ganho a vida a (tentar) ensinar – nunca poderia desmerecer a Educação. Simplesmente, encontro-a demasiado lenta para os dias que correm, bela, mas perigosamente lenta, e os dias correm lestos e odiosos.