Os
previdentes e os presidentes tomam de ponta
Os inocentes que têm pressa de voar
Os revoltados fazem de conta fazem de conta...
Os revoltantes fazem as contas de somar.
Embebo-me na solidão como uma esponja
Por becos que me conduzem a hospitais.
O medo é um tenente que faz a ronda
E a ronda abre sepulcros fecha portais;
Os edifícios são malefícios da conjura
Municipal de um desalento e de uma Porta.
Salvo a ranhura para sair o funeral
Não há inquilinos nos edifícios vistos por fora
Que é dos meninos com cataventos na aérea
Arquitectura de gargalhadas em cornucópia?
Almas bovinas acomodadas à matéria
Pastam na erva entre as ruínas da memória,
Homens por dentro abandalhados em unhas sujas
Que desleixaram seu coração num bengaleiro;
Mulheres corujas seriam gregas não fossem as negras
Nódoas deixadas na sua carne pelo dinheiro;
Jovens alheios à pulcritude do corpo em festa
Passam por mim como alamedas de ciprestes
E a flor de cinza da juventude é uma aresta
Que me golpeia abrindo vácuos de flores silvestres
E essa ansidedade de mim mesma me virgula
Paula de pátria entressonhada. É um crisol.
E, o fruto agreste da linfa ardente que em mim circula
Sabe-me a sol. Sabe-me a pássaro. Pássaro ao sol.
Entre mim e a cidade se ateia a perspectiva
De uma angústia florida em narinas frementes.
Apalpo-me estou viva e o tacto subjectiva-me
a galope num sonho com espuma nos dentes.
E invoco-vos, irmãos, Capitães-Mores do Instinto!
Que me acenais do mar com um lenço cor da aurora
E com a tinta azulada desse aceno me pinto.
O cais é a urgência. O embarque é agora.
(Ainda) Natália Correia
Chamo
sempre àquele poema "Cântico do País Submerso”, que é o que sinto muitas
vezes. Não é intencional: foge-me para lá o pensamento, e, com ele, a palavra.
Não interessa nada, emerso ou submerso, acima ou abaixo, é intemporal.
Não ouvi o “líder da oposição” renegar entendimentos e coligações com o partido cujo nome não deve ser pronunciado, mas se calhar apenas por isso, impronunciar, já que o líder daquele bando de arruaceiros de bem veio acusar o toque – afinal, sempre se reconhecem como “políticos racistas”, “xenófobos”, “oportunistas” e “populistas”. Ou isso, ou Montenegro não quis dizer o que efectivamente não disse, de onde, até às próximas eleições, a aritmética dirá com quantos desses se faz uma nova geringonça, no caso, à direita.
Há
pouco, vi numas imagens de televisão um dos filhos de Jair Bolsonaro (diziam as
legendas, não conheço a fera), fazer peito para um outro deputado com idade,
talvez, para ser pai dele, o que não tem qualquer relevância, na verdade, e nem
prestei muita atenção ao que se dizia, mas assaltou-me uma espécie de revelação
do chiqueiro, pardon my french, em que se pode vir a tornar o nosso Parlamento
se (quando?) o Chega chegar ao Governo – em vez de andarem aos murros entre si,
sempre podem atirar-se, literalmente, aos deputados das outras bancadas. Pancadaria
vivinha. Um luxo. A Democracia encarcerada entre a parede de uma endogamia
política em avançado estado de decomposição e a espada desses valentes cavaleiros
da pátria, cruzados do bem, ámen. Venha, finalmente!, o Diabo e escolha, que eu
já não me sinto capaz.
Ouvi
alguém defender que apenas Passos Coelho ou Carlos Moedas podem salvar ou
resgatar o PSD, mas Passo Coelho ainda não foi perdoado, creio, e Carlos
Moedas, enfim, nem sei o que dizer; a montanha pariu um rato, talvez.
Por estes dias, um fotógrafo recusou um primeiro prémio num concurso de fotografia a que se apresentou com uma imagem gerada por inteligência artificial com objectivo de demonstrar se “competições do género estão preparadas para discriminar imagens criadas através de inteligência artificial”, concluindo que “não estão”, apesar de um “representante da Organização Mundial da Fotografia” ter confirmado que “Boris Eldagsen tinha assumido a “cocriação” da imagem – para a qual a inteligência artificial também contribuiu”. Estou confusa, e não é pela fotografia, que me parece bastante artificial. Mas eu não sou de retratos, sou de paisagens ou, no extremo oposto, de pequenos detalhes, não sei nada de retratos a não ser que quase me intimidam. E aquelas mãos… são estranhíssimas aquelas mãos, parecem-me suficientemente artificiais. Gosto de mãos naturais.
Por
falar em estranho, e eu ainda estranho: uma editora americana declinou publicar “Pão de Açucar”, de Afonso Reis Cabral (de quem nunca li uma obra e desconheço
tudo, excepto a circunstância de ser trineto de Eça de Queiroz), porque não foi
capaz de encontrar um leitor de sensibilidade LGBTQI+ que lesse em português. Espero
que todas as edições revistas por “leitores de sensibilidade” venham a exibir
uma marca, um selo, uma prova do crime que alerte leitores insensíveis como eu
para o perigo da estupidificação em massa; em marcha.
O mundo avança como um tornado. Violento como sempre, veloz como nunca. Perco, várias vezes, o fio condutor, e não há um dia em que não agradeça o meu lugar de privilégio – o meu trabalho, as minhas viagens, os meus livros, os meus Meus –, consciente de quão frágil esse lugar pode ser. Basta o humor da Terra ou de um lunático sedento de poder e de vingança a quem devemos apaziguar convencendo a Ucrânia esventrada, queimada, massacrada, a render-se em prol de uma certa ideia de paz. Não mudei de opinião em relação à guerra de Putin, mas percebo melhor o pragmatismo, mesmo que cínico, dos que defendem essa coisa a que chamam Realpolitik – é um trabalho sujo, mas alguém tem de o fazer – do que a indignação dos que apontam à hipocrisia e aos interesses camuflados e tenebrosos dos EUA/NATO amparados pela subserviente UE. Não é que eu duvide das más intenções destes também, não duvido nada, mas, se fizemos do mundo este lugar perverso, prefiro viver sob um regime que, sendo muitíssimo imperfeito e maligno demasiadas vezes, ainda assim, dá-me voz. Para concordar ou discordar, aceitar ou rejeitar. É muito confortável bradar contra a hegemonia intolerável de países democráticos sem correr o risco de cair de uma janela, ser envenenada, encarcerada, espancada, e outros mimos do género.