“O Ministério Público do
Departamento Central de Investigação e Ação Penal deduziu acusação contra
25 arguidos, 18 pessoas singulares e 7 pessoas coletivas, nacionais e
estrangeiras, no âmbito do processo principal do designado “Universo Espírito Santo”
(NUIPC 324/14.0 TELSB). Foi deduzida acusação pelo crimes de associação
criminosa (relativamente a 12 pessoas singulares e 5 pessoas coletivas) e pelos
crimes de corrupção ativa e passiva no setor privado, de falsificação de
documentos, de infidelidade, de manipulação de mercado, de branqueamento e de
burla qualificada contra direitos patrimoniais de pessoas singulares e
coletivas.”
É assim que começa, segundo leio e transcrevo, o comunicado do Ministério Público sobre o despacho de acusação a Ricardo Salgado
e os restantes 24 arguidos, naquele que é considerado o maior escândalo financeiro
na história de Portugal. Ou esse era o BPN? Ou o BCP? Ou o BBP? Se juntarmos o
prefixo – ou o sufixo, dependendo da sua justa posição – económico, podemos ir até à Operação Marquês e a outros títulos igualmente (pouco)
nobres. Portugal tem uma elite de fazer inveja aos madoffes de outros mundos. Com
a diferença de que, por cá, as coisas do direito resolvem-se num tempo muito próprio, particularmente (in)útil, cheio de esses e erres, de vírgulas letradas, que
se arrasta nos tribunais com bonomia requintada, requentada se fizer falta, até
ao estertor, pelo menos, da paciência da nossa consciência conjunta. Já nos
avisaram, aliás, que, em qualquer um dos principais casos que compõem o
ramalhete da nossa vergonha e dos ódios de estimação que selam a inimizade intrincada e mordaz entre Carlos Alexandre e Ivo Rosa – Marquês,
EDP, BES, PT, enfim, todos aqueles que reúnem mais ou menos os mesmos actores,
o país é pequeno, como se sabe e não se esquece, até porque há quem não se
canse de o repetir para nos explicar por que motivo não há falta de idoneidade
em coisa nenhuma, o que falta é gente competente, graças a deus que temos estes
–, dificilmente, dizia, algum julgamento terá lugar na próxima década. Dos que decorrem na barra do tribunal, entenda-se. Um dos problemas mais graves deste atraso endémico da justiça portuguesa é abrir espaço à condenação pública à menor suspeita. Quando, como naqueles casos ali em cima, as suspeitas se avolumam e ganham a dimensão que se conhece, enquanto os processos se arrastam nos interlúdios da lei que o dinheiro e o poder podem comprar, é difícil manter a credibilidade nas instituições e, sobretudo, nas pessoas. Mas, é assim se chega ao crime perfeito. De uma simplicidade estrondosa, não menos perfeita e patuscamente lusa. Basta aguentar o tempo da
justiça até ao falecimento de uma de três coisas não necessariamente incompatíveis, embora, às vezes, pareçam: da
própria justiça, do autor do crime, ou do crime em si mesmo, na forma de prescrição
do dito. Desde que não se guardem memórias e outros empecilhos e se faça uma escolha capaz e escrupulosa do leque de advogados de defesa, é só deixar o tempo correr. Não deve ser difícil. Há
advogados competentíssimos, em sintonia perfeita
com o bem de alguns públicos, e há público capaz de viver vidas de luxo, mesmo
despojado de qualquer bem privado, valha-lhes o auxílio de amigos generosos, jurisconsultos
dedicados e familiares, ou fundações, que tomem como seu o que não se quer deixar
cair em mão alheia, ainda que justa, enquanto a vida se vai fazendo a gosto, com um ou
dois ordenados mínimos. E desde que se resista à inveja do povo, obviamente,
ficará tudo bem. Não se podendo nascer duas vezes, deve ser o estado mais próximo da honestidade absoluta.
Já o devia ter afirmado antes. Ricardo
Salgado (também) é inocente até prova em contrário. A acusação diz que há. Provas. E a defesa, que as esconderam até agora, impedindo os
acusados de se defenderam como merecem. Entre os argumentos de uns e de outros, parece haver muitas certezas quanto à falsificação de contas e relatórios, numa promiscuidade entre o Grupo e o Banco, que se revelou fatal para todas as partes envolvidas, com ou sem consciência da dimensão da tragédia. E, sob todos os escombros, os que perderam toda uma vida de poupanças e sacrifícios, uns, eventualmente, aliciados por uma ganância à sua medida, outros confiando nos conselhos (desprevenidos?) dos seus gestores de conta, incentivados a adquirir produtos financeiros que, provavelmente, já não valiam sequer o papel do contrato.
Ricardo Salgado continua a afirmar que nunca fez nada de errado. Que, no seu tempo, não havia lesados dos BES, evidentemente. A culpa disto tudo é de outros, da crise, de Passos Coelho, do contabilista e do Banco de Portugal. Permanecesse, Carlos Costa, de olhos ainda mais vendados que a figura da Justiça, e o buraco financeiro não era buraco financeiro. Era tudo uma questão de gestão. Engenhosa, primeiro, enganosa, depois, a troco da sustentação de um logro, um império em derrocada de que já só sobrava o trono manco de um cada vez menos poderoso. À semelhança daquelas outras
famílias, ainda assim menos gulosas, que vão pagando um cartão de crédito com
outro cartão de crédito, até que o último banco se recuse a avençar a derradeira gota, o último copo que é sempre a desgraça dos bêbados inconfessos.
Segue-se, agora, o tempo da defesa. Que se quer longo o suficiente para que aquela se construa com a dignidade que merece. E, talvez, a morosidade necessária para esquecermos isto tudo. Sendo certo que haverá crimes muito
difíceis de provar,
há presunções despudoradamente insuportáveis de defender. A bem da presunção de que a justiça é cega, mas não moribunda, menos
ainda, velhaca, seria bom assistirmos a um desfecho, também ele digno, de algum daqueles
casos lá em cima. Eventualmente, deste. Antes de todos falecermos, quero
dizer.
Claro que o monstro não se alimentou sozinho. Ricardo Salgado, como outros, contou sempre com a cumplicidade do poder político – até esbarrar em Pedro Passos Coelho, faça-se-lhe esta justiça – e da comunicação social, fosse na forma de fazedores de opinião, fosse na forma de jornalistas fofos, que lhe emprestavam a deferência necessária para dispensar escrutínios pecaminosos e perguntas maçadoras. E os mais próximos, nunca viram nada, como convém. Até tudo ter mudado.
Se tudo isto for verdade e se provar, e num acesso de loucura – ou lucidez tardia – Ricardo Salgado decidisse expiar as culpas em público arrastando consigo todos os peões do tabuleiro, quantos cairiam?