sexta-feira, 31 de julho de 2020

Produto de alguns dias



Lembro-me das aclamações no início da pandemia que ditou o encarceramento em massa do mundo; a Natureza sobrevivia alheia, como sempre, às desgraças do Homem. Mais do que isso, ressurgia. Sarava. Conciliava-se. Ouvia-se melhor os pássaros. As estrelas, pela noite calada, soltavam brilhos estridentes. Os verdes eram mais verdes do que alguém se lembrava, os azuis, profundos e o silêncio que engolia as cidades era uma bênção. De algumas dessas coisas fui testemunha, outras imaginei e as restantes fiz relativo caso de quem contou, consumida de dúvidas mais urgentes.

Aos poucos, dizem que vamos, agora, retomando a vida que perdemos, ou a que podemos, a que sobra por trás da máscara, do gel com que nos purificamos freneticamente, doseando o nojo com que nos medimos sem agravo nem remorso. Com brio. A Natureza regenerada aquieta-se, parece-me. Excepto aquelas nuvens de chumbo, compactas, que, há quatro dias, vejo da varanda, ao cair da noite, em marcha lenta, arrastando-se resignadas e ordeiras, pesadas como grilhões, até já não se distinguirem do mar onde se deixam naufragar num abandono consentido até ser outra vez dia.

E os dias sucedem-se, indiferentes às nossas penas. Leio que o PIB português contraiu 16,5% no segundo trimestre deste ano fatídico, de anunciada má memória. Que os resultados da auditoria ao Novo Banco que estaria pronta em Maio passado, também não serão conhecidos hoje, como estava previsto, e é sabido como sabemos prever coisas. Precaver também. 

Outro homem de setenta e muitos anos matou a tiro, na rua, a ex-mulher e aguardo o tuite de pesar de André Ventura, esse poço de virtude e coragem, seguido do registo criminal da vítima desavergonhada, uma rameira, seguramente, provocadora, a pedi-las, que alguma deve ter aprontado, a cadela tinhosa. 

A mania das vítimas, de se porem sempre a jeito. Não haver mais gente como a very impressive dra Stella Immanuel, que encantou o Trump e a Madonna, a médica (parece que sim) que já sabe da existência de uma vacina escondida para travar a covid, que garante ser o sexo com demónios a causa dos problemas ginecológicos e que os EUA são governados por uma espécie de répteis, ou lá o que é. Parece absurdo, mas, se pensarmos (não) muito no assunto, há uma parte qualquer desta história que convence; a mim, pelo menos, mas será mais avisado calá-la. Talvez não para sempre, mas já hoje tive o meu momento cafajeste e receio outros contágios.

 

Cresce um rebuliço. Há umas gaivotas serenas e outras tresloucadas largando gritos que soam sempre a desgraça. Mesmo que nem o próprio mar se rebele.  


Sem graça, Fonseca





Não é que seja suposto, a Ministra da Cultura ter graça. Para lá do nome, quero dizer.  Mas, era suposto ter mais qualquer coisa de relevante para o cargo que ocupa. Não tem. É, simplesmente, arrogante. A cultura é o que a Graça quiser. Quando quiser. Entre drinques e tartes. Ou tardes. Haja seriedade, não é?

quinta-feira, 30 de julho de 2020




Arrasta-se em peregrinação, acendendo as velas que transporta ao colo como um filho, com a devoção dos mártires. Move-se em silêncio, no ar, como um anjo, como se o próprio acto de pisar o chão sagrado se constituísse sacrilégio, ali mesmo e contra sua vontade. Espreito-a pelo canto do olho. Parece perseguir-me, mas sei que é só uma ilusão. Percorremos o mesmo caminho casualmente, alentadas de diferentes propósitos. Eu, numa demanda do belo, apenas, sem aspirar a transcendência maior que a de pasmar diante da arte de domar o traço, as cores, a mistura de ambos com o travo de loucura que assiste somente aos génios.

A igreja está vazia de gente. Como a rua lá fora, numa quietude que assombra, desumana e velhaca. Mas na igreja, nas igrejas, pelo menos, movem-se os reflexos, sussurram as sombras vertidas pelas exíguas entradas de luz, animam-se de cores as pinturas dos tectos e das capelas, soltam-se os dourados dos altares, como faíscas, as naves imensas, cobiçosas como arcas de tesouros, e os mármores perfeitos embalando santos de pedra maciça.

A mulher continua fechada em si mesma, sem me ver, tomada de orações, enfiada no mesmo silêncio imutável e seco, e eu na minha contemplação sem fé, profana, rendida apenas ao génio dos homens. Ou, talvez, o divino tenha os seus desígnios e, estes, os seus próprios embustes.

 


E não vinha falar de nada disto, mas pus-me a organizar fotografias e perdi-me, como me acontece tantas vezes, nem sempre pelos melhores motivos.






quarta-feira, 29 de julho de 2020

Dedicado a todas as "cabras de merda"





>Já está um bocadinho longe, no tempo e no trato, do stupid woman que, num acesso de irritação e idiotice, Jeremy Corbyn atirou a Theresa May, então sua primeira-ministra, mas, os britânicos sempre foram mais polite. O insulto também tem berço. Além de género, cor, credo, enfim, o enxovalho terá sempre o cunho do escandaloso detalhe que nos enerva para lá do razoável e é a melhor (pior!) arma de arremesso quando escasseiam argumentos. E inteligência. O insulto grosseiro é a expressão máxima da falta de inteligência, ainda que a falha seja momentânea, ao contrário do dano que provoca. Não subscrevo, não totalmente, pelo menos, a teoria de que palavras não são acções e, portanto, ao contrário destas, não matam. As palavras podem matar. Se acenderem o rastilho, se completarem o triângulo. Tal como não é o calor, sozinho, que faz rebentar os incêndios em que Portugal se consome a cada verão, mas, sem ele, não haveria fogo que pegasse.
Mas falava de insultos. E, ainda assim, há uma imensidão de diferenças entre o stupid woman de Jeremy Corbyn e o fucking bitch que o congressista republicano da Florida, Ted Yoho rosnou à porta do Capitólio, Washington D.C., tendo como alvo da sua miserável fúria a congressista americana Alexandria Ocasio-Cortez. A resposta da congressista é, como já li, uma obra-prima. Em vários sentidos. A sua intervenção é de uma lucidez assombrosa. Cristalina. Ali, Alexandria Ocasio-Cortez expõe-se, denuncia, rejeita. Sem vitimização, mas sem subterfúgios, quase sem emoção. Não basta a um homem ter mulher e filhas para ser decente, afirma, enquanto vai lembrando outros insultos de que já foi alvo por parte de outros homens. Outros políticos igualmente respeitáveis – Donald Trump, o inqualificável presidente norte-americano mandou-a p´ra sua terra, como se diria (e diz!) por cá; o candidato a governador da Florida chamou-lhe rapariga ou lá o que ela é –, ou os anónimos que já teve de aturar e enfrentar como empregada de mesa, nas viagens de metro, ou, simplesmente, por caminhar na rua. Já foi, como tantas de nós, mulheres perigosas, assediada vezes suficientes para não se sentir particularmente horrorizada pela linguagem de taberna, mesmo quando proferida por alguém de fato e gravata e camisa elegante, de botões de punho. Nem todas chegámos ainda, infelizmente, à clareza arrojada de Ocasio-Cortez. O seu testemunho devia ser visto por todas as mulheres. Principalmente, por aquelas que são sistematicamente, jocosamente, abusadas pelos cobardes de serviço e do costume.

“Um homem pode ser poderoso e assediar mulheres. Pode ter filhas e assediar mulheres, sem remorsos. Pode posar para a fotografia e projectar para o mundo a imagem de um homem de família e assediar mulheres, sem remorsos e com um sentimento de impunidade. Acontece todos os dias neste país. Aconteceu aqui, nos degraus do Capitólio da nossa nação”. 
A rejeição e a denúncia, isto eu já subscrevo. Totalmente.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Coincidências do Diabo





“No dia 8 de Novembro de 2017, uma quarta-feira, António João Barata da Silva Barão, engenheiro de formação e pintor, que fundou e dirige a tertúlia artística Parlatórioem Lisboa, e a sua companheira, Ana Paula da Costa Lapa, registaram cinco sociedades imobiliárias de uma só vez. Todas com a mesma morada onde já tinham muitas outras, na loja 19 do Shopping Columbia, na Avenida Júlio Dinis, n.º 14, perto do Campo Pequeno, em Lisboa.

Cada um ficou com 50% das quotas das imobiliárias, mas António ficou como gerente de todas. Não que isso lhe viesse a ocupar muito tempo. Apesar do "boom" nos preços do imobiliário em Lisboa, daquelas cinco sociedades que criaram só uma registou uma venda, no valor de 200 euros. As outras acabaram o ano a zero.

Cinco dias antes deste registo em Lisboa, nas distantes ilhas Caimão, mais concretamente no Cayman Corporate Centre, número 27 da Hospital Road, em George Town, foi criado um "hedge fund", um fundo de investimento muito mais arriscado do que os tradicionais. Chama-se "Anchorage Illiquid Opportunities Master VI (A) LP". Os valores que ostenta na data da sua criação são muito diferentes dos cinco mil euros de capital social das empresas criadas no Shopping Columbia em LisboaMil duzentos e cinquenta milhões de dólares é o valor do fundorepartido por mais de 18 investidores anónimos, tal como vem descrito na documentação entregue à Securities and Exchange Commission dos EUA

Para reforçar o anonimato e para pagar ainda menos impostos do que nas Caimão (um dos mais conhecidos “paraísos fiscais” do mundo), o hedge fund atravessou o Atlântico e registou, no dia 11 de Dezembro, no Luxemburgo, uma sociedade de responsabilidade limitada, chamada AIO VI S.a r.l., com sede na Avenue J.F. Kennedy, 43. 

Para completar esta história, que parece não ter qualquer tipo coerência, o fundo das Caimão ordenou à sua filial do Luxemburgo, no dia 8 de Outubro de 2018, que comprasse as cinco sociedades imobiliárias lisboetas a António Barão e Ana Paula Lapa.

Dois dias depois desse negócio, fechou-se o círculo destas entidades, menos de um ano depois de terem sido criadas. A venda, pelo Novo Banco, anunciada no dia 10 de Outubro de 2018 à CMVM, de 5552 imóveis e 8719 fracções às sociedades lisboetas, detidas pela sociedade luxemburguesa, que, por sua vez, pertence ao fundo de investidores anónimos nas ilhas Caimão.”

 

É assim que começa a notícia do PÚBLICO onde se expõe o negócio da China, perdão, o negócio da “pechincha” portuguesa, com certeza, que permitiu que um fundo de investimento, detido por 18 investidores anónimos comprasse, ao Novo Banco, milhares de imóveis por metade (mais coisa menos coisa) do valor da avaliação ditada pelo próprio banco. Consequentemente, o Fundo de Resolução foi chamado, outra vez, a cobrir as perdas de tal negócio. Parece que não directamente, como já esclareceu o Novo Banco, naquela ladainha ambiciosa e oca, para encher chouriços, sem desprimor para os chouriços, evidentemente. Qualquer coisa sobre a generalidade dos imóveis a saldo – ou a saque – estar "fora do mecanismo de protecção de capital". Pois. A riqueza da língua portuguesa não serve só poetas e escritores brilhantes, também serve causas menos nobres e circuitos mais habilidosos. Ao lado do desenrascanço, o engonhanço é outro portento luso. Intraduzíveis, ambos. Bestialmente legais, um e outro.

Aliás, a única ilegalidade neste magnífico negócio, e noutros de parto idêntico, seria, dizem, a venda de activos, pelo Novo Banco, a entidades relacionadas com a Lone Star, coisa que, como é sabido, é passível, não só, de implacável regulação, como de escrutínio cerrado e fácil. Sobretudo fácil. O PÚBLICO perguntou ao Banco de Portugal como é que se faz: “Quando os adquirentes dos activos são fundos de investimento ou fundos de "private equity", o que se procura apurar é se o fundo em causa é um adquirente credível, nomeadamente tendo em conta as suas credenciais e o seu historial”; “Por outro lado, essas situações — i.e. as situações em que os adquirentes são fundos de investimento ou fundos de "private equity — são precisamente aquelas em que a venda normalmente resulta de processos organizados, abertos e competitivos, em que o adquirente é o concorrente que oferece as melhores condições”; “esta conjugação de elementos (para além da análise que é feita quanto ao desenrolar dos processos de venda) minimiza a probabilidade de haver aquisição de activos pelo accionista privado do Novo Banco, mas em qualquer caso, se porventura viesse a ser detectado, mesmo após a transacção, que o adquirente de activos abrangidos pelo mecanismo de capitalização contingente era uma parte relacionada com a Lone Star, então nesse caso o Fundo de Resolução poderia invocar que teria havido violação do contrato”. Se alguém perceber, que me explique... foi o que pensei.  

Por uma – ou várias – coincidências, daquelas que um conhecido senhor, especialista na mesma matéria, atribuía ao diabo, a notícia do PÚBLICO dá, ainda, conta do seguinte: “Durante a apresentação das propostas para a compra dos imóveis do Novo Banco (houve duas propostas vinculativas na fase final, tendo ganho a do Anchorage), um dos vice-presidentes da Lone Star era David Bartlett. Já era um quadro do fundo norte-americano que comprou o Novo Banco, e ficou nessa posição exactamente no ano em que este negócio se fez, entre Dezembro de 2017 e Dezembro de 2018Em Janeiro de 2019, já com o negócio contratualizado, Bartlett foi contratado pelo Anchorage Capital, onde exerce agora as funções dedirector.” O que não prova nada, claro, são apenas os fastidiosos detalhes em que se esconde o famoso diabo. O das coincidências. Com um enorme rabo de fora.

Já o disse de outras vezes. Há alturas em que se torna difícil expressar indignação com a mesma eloquência com que somos insultados, se quisermos manter o nível acima do deboche descarado, sem deixar, ainda assim, que nos tomem por papalvos. E talvez assim se perceba o discurso repugnante dos auto-proclamados frugais, "tolerados" por uns, "desprezados" por outros

A fraude elegante, de fraque riscado à medida, talhado e costurado nos melhores escritórios de advocacia, onde nenhuma linha sai do rigorosíssimo traço legal, não é um exclusivo português. Mas é apenas nos países desgraçadamente corruptos, imundos, que a fraude é embalada por aqueles que tinham o dever primeiro de a repudiar.


terça-feira, 21 de julho de 2020

O mundo é um ovo (não me ocorreu nada melhor...)

Como não se esperava até à ideia peregrina de Rio, terminam os debates quinzenais com a presença do primeiro-ministro no Parlamento. A sugestão de Rui Rio – e, por arrasto, manso, do PSD – foi aceite pelo PS, imagino que, com prazer, imenso alívio e, eventualmente, uma nota de agradecimento que não pôde, ainda, ser emitida. Por recato. Talvez chegue com um cargo menos fastidioso, por medida. Como a promoção de Portas a vice-primeiro-ministro, que foi quem se lembrou (ainda não nessa qualidade) primeiramente das tais invenções estúpidas, corria o tempo de Sócrates. Ele há coisas, como diriam outros…

Não sei se Rui Rio conta com a chegada ao cargo de primeiro-ministro um dia qualquer sem nevoeiro e pretendeu não deixar para essa altura o que podia fazer hoje. A disciplina alemã a plantar frutos. Certo é que Rio nunca escondeu a maçada que é o não-trabalho parlamentar, de modo que, assunto arrumado. Deixem o primeiro-ministro trabalhar. Calha bem, porque vão chegar (não vão?) os tais milhões de Bruxelas e convém, desta vez, aplicar bem o dinheiro, isto é (não é?) tornar Portugal mais rico, não apenas cuidar do enriquecimento dos do costume.

Não sei se – a juntar à supervisão dos frugais – não devíamos criar assim uma espécie de comissão extra do povo, que se encarregasse de conter excessos, para lá do vinho e das mulheres. Parece que é também para isso que escolhemos os nossos representantes, mas não se tem notado muito. Precisamos de pares acção-reacção mais anónimos, mais enérgicos, mais eficazes. Dizem que os temos como os merecemos, os representantes, mas não creio. Temos gente bem melhor do que a presumida (duplamente literal) elite que é suposto governar-nos. A não ser assim, há muito que Portugal teria ruído como um castelo de cartas. Como outros impérios. Como se tem visto. E não se via antes, de modo que, haja alguma esperança.

Li que António Costa terá dito que "As novas gerações em Portugal nunca nos perdoariam se desperdiçássemos a oportunidade que agora temos à nossa frente" e ouvi, de raspão, o Presidente da República referir-se ao "envelope" que caberá a Portugal em ajuda comunitária como a nossa maior oportunidade, ou qualquer coisa assim. Se não exactamente assim, era este o sentido. Queria muito acreditar nos dois, mas, para dançar este tango, serão precisos mais e nem mesmo aqueles são bailarinos exímios para a coreografia que nos (des)espera.

Entretanto, ganhou forma um “supertravão de emergência” que há-de permitir a um país questionar outro país sobre a forma como anda a gastar o dinheiro do plano que nos há-de salvar a todos. A uns mais do que a outros. Em caso de divergência com a Comissão - que é quem avalia as reformas e investimento e aprova desembolso de verbas - "o assunto pode ser submetido ao Conselho Europeu" pelo país queixoso e a Comissão fica impedida de aprovar pagamentos "até que o Conselho Europeu seguinte tenha discutido exaustivamente o assunto". Um processo que não pode demorar mais do que três meses”. Tendo em conta quem se sabe ser os uns e os outros, a coisa não se avizinha nada fácil.


E, por falar em coisas importantes, parece que chegou outro pacote de ajuda à economia portuguesa. Jorge Jesus aterrou em Tires, num voo privado, na companhia de Luís Filipe Vieira que o foi buscar com o mesmo alarido com que o despachou há cinco anos, ou lá o que é, que percebo pouco de futebol. Ainda menos do que percebo do resto. E, mesmo assim, sou menina para desconfiar do que diriam os comentadeiros desportivos deste país, nos seus programas dia sim e no outro também, se fosse um treinador - português ou não - a fazer ao Benfica o que Jesus fez ao Flamengo. 


segunda-feira, 20 de julho de 2020

Trump à beira de um ataque de nervos

Donald Trump encomendou uma entrevista à FoxNews, mas alguém deve ter-se esquecido de entregar o guião e a lista de instruções. Em vez de um emplastro pró-Trump, o pacote trazia um jornalista assertivo e incómodo, apostado em apurar a verdade possível dos factos e, como é sobejamente (e sabujamente) conhecido, a verdade está para o actual presidente dos EUA como o Natal para uma certa parte da Humanidade: é quando o homem quiser; e o homem quere-a à sua gananciosa medida.

Trump, que trata todos os que se lhe opõem com a classe que se lhe conhece  um senhor, desde que sentado à esquerda do filho que a sua imagem pariu, o comparsa Jair, de narizinho limpo às costas da mão –, portou-se como o bruto que é. Elogiou-se, agastou-se, irritou-se. Quem diria. E, como a entrevista não lhe correu de feição, foi lamber as feridas para o Twitter, where else?, impor a verdade manhosa que lhe dita o ego e insultar os seus adversários, o corrupto Biden e o louco Bernie, um exemplo de lisura e sentido de estado a que (ainda nem todos) nos habituámos.

A pandemia deixou o mundo à beira de um ataque de nervos e Donald Trump à beira de uma apoplexia aguda. O vírus, que se entretém a rebaptizar para delícia dos pândegos, espatifou-lhe a economia e os planos desesperados de retoma, o seu maior trunfo eleitoral a par dos espectáculos de stand up comedy a que chama comícios, onde ensaia, magistralmente, o bobo da sua deleitada corte. Se nos abstrairmos da figura do presidente, o homem chega – salvo-seja – a ter uma certa graça. E com Joe Biden à frente nas sondagens, está montado um novo circo assente num barril de pólvora.

Com ou sem pandemia, Biden, convenhamos, é um candidato a presidente tão entusiasmante como uma alforreca. Esvaziada. Daquelas que já nem urticária provoca. Mas parece ser o único caminho de salvação para a América e arredores. Não imagino o que mais quatro anos de Trump poderão (não, não, não!) fazer à democracia, não só americana. O que acontecer nos Estados-Unidos, não ficará nos Estados-Unidos. Espalhar-se-á como veneno por uma Europa (e não só) débil, também ela, com consequências imprevisíveis, em tempos mais do que incertos. A tempestade mais que perfeita.


Bem sei. Por cá, muita coisa merece, igualmente, a minha devoção. Mas, de momento, parece que a Cristina voltou para a TVI e o Jorge Jesus, para o Benfica. De modo que, nos próximos dias, o fim mais do que iminente dos debates quinzenais no Parlamento, o pandemónio do regresso às aulas, e a potência da bazuca com que Bruxelas nos há-de armar, não deve encher notícias. Ainda virei a tempo.

José Miguel Júdice, o impoluto disto tudo

José Miguel Júdice tem-se esforçado imenso por parecer impoluto. Desde que rebentou o escândalo (outro) Luanda Leaks, desta vez na pessoa de Isabel dos Santos, outra dona de muita coisa que nunca levantou qualquer suspeita entre pares e ímpares, que o agora não advogado – como também se esforça por lembrar – não se tem poupado a esgrimir as suas desassombradas virtudes, ele disse, ele soube, ele não teme, ao contrário de outros, inclusive colegas, que também sabem, mas temem, muito, ele é livre como poucos, ele almoça e pequenalmoça, avisam-no para que não se meta, e ele arma-se e mete-se, avisado e redentor, e eu desconfio sempre de quem precisa muito, muito, de se mostrar sempre virtuoso. Estridentemente.

Sempre tão atento e perspicaz, Júdice nunca viu nada de suspeito no tempo em que trabalhava para  ou com, fará toda a diferença – Isabel dos Santos e será isso que o traz martirizado. Independentemente da legalidade da coisa feita – e não duvido nada da legalidade , há uma mácula reputacional que permanece como uma cicatriz desastrada e grosseira, que nenhuma operação de charme, por mais poeticamente suada, poderá disfarçar. A vaidade, por vezes, tem um preço demasiado elevado. Peçonhento.


Da Sabedoria Divina

Istambul foi um namoro difícil e nem sempre consentido. O arrebatamento veio de mansinho, se é que se pode dizer assim. Nada é manso em Istambul. 



Quando cruzei a entrada principal da imponente Basílica de Santa Sofia pela primeira vez, os andaimes necessários aos trabalhos de restauro que decorriam no interior do templo conviviam com os ancestrais mosaicos bizantinos, em representações de Cristo, da Virgem e dos Arcanjos e, estes, em paz aparente com gracioso mihrab, apontando a Meca, e os mahfilis dos muezins, enquanto os imensos painéis circulares, maciços, de madeira negra, exibiam elegantes arabescos dourados evocando Alá, Maomé e versos do Corão. Candeeiros assombrosos caíam do tecto magnífico, vertiginosamente e em equilíbrio perfeito, impossível, debruando um quadro de urnas de mármore e tapetes flamejantes. Era mais, muito mais, do que um museu, mais que basílica, mais que mesquita, uma metamorfose de diferentes estilos e fés, de império em império, opulenta, esplêndida, cobiçada e adorada por todos na sua majestosa natureza singular, na beleza dos mosaicos geométricos, na profusão frenética de luzes e cores e reflexos irrequietos, ouro, prata, vidro, terracota, pedras coloridas, mármores riquíssimos, repartindo histórias, um colosso de arquitectura e de resistência teimosa e sobranceira.




Há em Santa Sofia, como em todos os locais sagrados não necessariamente por uma qualquer lei ou ordem religiosa, uma convergência palpitante, densa, esmagadora, entre o real e o imaginado, o virtuoso e o herético, onde até as pedras desfiam lendas de sabedoria divina ou profana, pois tudo se mistura em encantadora harmonia, em Aya Sophia. Ou misturava. Erdogan resgatou o templo, submeteu-o aos seus caprichos, a jóia bizantina de Istambul, e devolveu-lhe o estatuto de mesquita. Há quem tema pelas consequências da transferência do monumento para a Directoria de Assuntos Religiosos e a sua consequente entrega ao culto religioso. Nomeadamente, a proibição de entrada a não muçulmanos e a ocultação, novamente, dos mosaicos bizantinos. 

Dia 24 de Julho terá lugar a primeira oração naquele possante e pulsante santuário, obra admirável de engenho, arte, da devoção que alimenta ambos, e fala-se em usar cortinas ou recorrer a técnicas de iluminação adequadas, durante o ritual, de forma a ocultar os símbolos cristãos, que o Governo Turco promete preservar. Hagia Sophia continuará, asseguram-nos, aberta a todos os visitantes, incluindo, turistas. Veja-se a Catedral de Córdova, sossegam-nos outras tantas vozes, onde tudo se harmoniza em apaziguada coexistência! 

Insha'Allah. Esse, ou outro qualquer, desde que Aya Sophia continue a sobreviver à cobiça.

Fotos próprias


sexta-feira, 17 de julho de 2020

O(s) Banco(s) do Nosso Empobrecimento

E da nossa vergonha também. O que se vai lendo nos jornais sobre as entranhas do despacho de acusação do Ministério Público ao caso BES, com Ricardo Salgado à cabeça, ou quase sem ela, é de fazer vergar de vergonha um país inteiro. Parece que o homem que já foi dono disto tudo – aparentemente, de forma muito mais literal do que supúnhamos, os incautos – tem prontinho a sair um livro de memórias, de modo que, o melhor é apertarmos os cintos, enquanto os mandados disto tudo apertarão mais qualquer coisa. Vai continuar a não ser bonito.

Entretanto, um José Maria Ricciardi ilibado daquilo tudo e telefonicamente histérico, exaltou, em crescendo para terminar aos berros (ok, quase), na SIC Notícias, o seu desejo de ver uma certa senhora desaparecer de vez. A senhora em questão é Mariana Mortágua, que, como toda a gente sabe, tem um problema com bancos, banqueiros e derivados de ambos.

O motivo do desabafo histriónico de Ricciardi são as declarações de Mariana Mortágua à TVI, na sequência da decisão do Ministério Público de ilibar o primo de Ricardo Salgado de todos os crimes. A deputada acredita que Ricciardi tinha conhecimento da fraude, dada a sua posição na estrutura do império que já foi santo, Ricciardi não gostou do que ouviu e mandou a senhora remeter-se ao silêncio ou desaparecer de vez. Quem está habituado a mandar muito e passa a mandar menos, tem alguma dificuldade em habituar-se. Sim, pessoalmente, nutro mais simpatia pela senhora Mortágua, do que pelo senhor Ricciardi. A primeira tem, pelo menos, uma qualidade que admiro: consegue nunca elevar o tom de voz, mesmo que a situação o exija, e, como se sabe, não há nada pior para quem gosta de gritar do que esbarrar na contenção irritante do alvo.

Por falar em mandar calar, foi notícia (há tempos) a decisão  que, afinal, já não o é  de instruir os professores da Nova SBE (que, como escreveu Daniel Oliveira num belo artigo de opinião, é uma faculdade pública, mas pouco, e portuguesa com enviesada certeza, a começar na língua em que se ensina e aprende) que professam opiniões em jornais e afins, que deixem o nome da faculdade em paz. Na paz da omissão, para não melindrar os senhores que pagam as contas. A pecadora-mor tem nome, Susana Peralta, e mantém a heresia de usar o nome e o cargo na assinatura dos artigos que escreve no PÚBLICO. Gosto muito de a ler e hoje fui lá buscar o título disto tudo. Mais ou menos. Também gosto muito de títulos, embora não tenha apreciado o livro, a propósito de heresias.

Mas, há quem devesse calar-se de vez em quando, para não dizer disparates. Por exemplo, António Costa, sobre a não negociação de valores. Há exercícios de hipocrisia (para ser mansinha) extraordinários. E a Hungria devia ser expulsa da União Europeia, parindo do princípio que continuará a haver União Europeia. Também concordo com Rui Tavares, embora, aqui, não se defenda exactamente isso. Não foi bonito, senhor ministro. 

E não é que António Costa e Angela Merkel fazem hoje anos? No mesmo dia em que se inicia a cimeira extraordinária de líderes europeus que há-de selar as condições para o plano de salvação da nossa economia supostamente comum? Ele há coincidências do diabo! Esperemos que, deste vez, o diabo seja bonzinho...


quinta-feira, 16 de julho de 2020

Não nos livrem d'Os Maias

“Com a mania francesa e burguesa de reduzir todas as regiões e todas as raças ao mesmo tipo de civilização, o mundo ia tornar-se uma monotonia abominável. Dentro em breve um touriste faria enormes sacrifícios, despesas sem fim, para ir a Tungubutu – para quê? – para lá encontrar pretos de chapéu alto, a ler o Jornal dos Debates.”

Os Maias

Já confessei algures que, periodicamente, volto à leitura d’“Os Maias”. Supostamente, uma remissão tardia do que me custou a obra nos meus tempos de escola. Na altura, não havia resumos de resumos, análises de análises e, a não ser que tivéssemos quem nos contasse a história em detalhes relevantes para o estudo da coisa, lê-la era o único remédio. Li-a. Contrariada. Saltando páginas. Como quem lê os títulos gordos das notícias, qualquer coisa no princípio, duas linhas no meio e outro pouco no fim, na expectativa, ora tosca, ora imbecil, de ficar informado. No meu caso, naquele tempo, a expectativa era apenas passar, com a melhor nota possível, num teste de português. Ponto final, e a história acabava ali. Mas há histórias que nos consomem, e livros que nos espreitam com a paciência dos predadores mais atentos e hábeis, cercando a presa que se passeia em trilhos descuidados e alheada dos perigos do caminho, até se ver emboscada e perdida para sempre. Acontece-me frequentemente e não só com a astúcia de Eça. 

No momento em que rebentaram as manifestações anti-racismo na sequência da morte de George Floyd – esse criminoso perigoso e infame que, por isso, não deixa pena, nem marca, a não ser, eventualmente, a do joelho do executor no seu pescoço, viva a democracia cujas regras se ajeitem à nossa medida – estava eu tomada de amores, e horrores, de outra obra que aguardara, até aí, a sua vez no pó da estante, já lá iam vários anos. O Sonho do Celta, de Mario Vargas Llosa, narra a história (conhecida de muitos) de Roger Casement, cônsul britânico no Congo Belga corriam anos do século XIX, anjo e demónio, herói e traidor, que como traidor acabou condenado à morte e executado, não sem antes denunciar as atrocidades do regime colonial do rei Leopoldo II cometidas sobre os trabalhadores-escravos do Congo subjugado à lei da mais (im)pura e implacável ganância. Daí que, quando me perguntam se acho mal que se destruam estátuas que simbolizam o poder esmagador, tirânico, de uns homens sobre outros, na forma mais ignóbil e cobarde como foi e ainda é, no nosso tempo e em muitos sítios, a escravatura, a resposta óbvia, mais do que correcta, seria claro que não acho mal, como poderia achá-lo alguém que despreze tal conduta? Consequentemente, não sofro, francamente, pela remoção das estátuas de Leopoldo II, nem mesmo sabendo que o rei nunca pôs os pés no Congo e foram outros, e não o próprio, quem fez sofrer os congoleses ao serviço de sua majestade. 

A discussão em torno das estátuas que merecem a forca, dos livros que merecem a fogueira dos infernos que evocam e revolvem, da erradicação eterna dos símbolos que nos lembram do que fomos e somos capazes a troco da superioridade que, julgamos, nos assiste não é, por isso, descabida. E é difícil encontrar o equilíbrio entre a preservação das memórias – mesmo das que nos assombram e insultam – e a busca de uma sociedade mais igualitária, sem lugar à violência sobre o outro com base numa diferença que cremos intolerável à luz da nossa civilidade, seja ela qual for. Há um tempo de reconciliação com o passado. Sem essa reconciliação, tornamo-nos nos mesmos monstros que pretendemos combater.

E, assim, voltamos ao tema central das sociedades modernas, covid-19 à parte. Quando é que a expressão deixa de poder ser livre, quando é que a censura passa a ser aceitável.  A resposta óbvia – como nas estátuas – será nunca! Nenhuma voz pode ser calada e qualquer forma de censura é abominável. E eu tendo a concordar. A imposição de um “politicamente correcto” maquilhado que nos tornou reféns das palavras (talvez subscrevesse isto) e tem vindo a minar os debates políticos e sociais ameaça tornar-se a pior emenda para um soneto de desigualdades que devem ser combatidas, sim, mas não há custa da castração do pensamento. A questão é onde fica a fronteira entre a opinião e o insulto, a verdade e a farsa, a liberdade e o abastardamento. O limite – a existir algum – não é de traço simples, mas tem, forçosamente, de acompanhar a sofisticação dos tempos, e é também por isso que acredito que perdemos mais em destruir estátuas, mesmo aquelas que desprezamos, ou em censurar livros, mesmo os que branqueiem (não sei se é o caso, não o li) partidos como o de Ventura, do que em usá-los como tomadas de consciência para o que não queremos ver repetido. Deixemos a História contar os seus marcos, com os seus defeitos e virtudes, deixemo-la viver e morrer através dos seus heróis e dos seus vilões, sem falsetes nem retoques, e, talvez, possamos entender-nos melhor.

Tudo isto me leva ao recente boicote de que foram alvo o Facebook e o Instagram, depois de o Twitter ter decidido começar a assinalar as publicações do presidente norte-americano que violem as regras de conduta da plataforma, enquanto, por cá, a ministra Mariana Vieira da Silva anunciava a intenção do Governo de passar a monitorizar discursos de ódio online. E há discursos repugnantes. Que vão além da discordância de opiniões. O dos novos heróis de uma certa direita torta, arvorada da coragem clarividente que falta aos outros, hipócritas, deve ser repudiado. Como se a revolta desses paladinos brilhantes contra o sistema e o poder instalado não fosse apenas um logro: o que pretendem não é abater os vícios do sistema, é moldá-lo à sua imagem e semelhança. Calar vozes que apelam à violência pura e dura, com base no ódio ao outro, porque sim, porque se pode, não é bem o mesmo que calar vozes discordantes, por mais mordazes ou incómodas. Ainda assim, talvez seja melhor não tentar calar ninguém. Pelo menos, sabemos de onde vêm os golpes.

E tudo isto vinha a propósito de estátuas e livros indigestos. E filmes, esqueci-me dos filmes. E da música. Mas, acho que poderia viver sem o resto, se não me levassem os livros. 

Há um momento em que a penitência se cumpre com imenso prazer e deixa de servir o seu propósito. Essa é uma fronteira mais fácil de traçar, aquela entre a culpa e o prazer. Ou talvez não, tendo em conta que já perdi a noção do tempo em que me rendi ao génio de Eça. Isto falando daquela culpa e deste prazer. Espero que a ninguém ocorra a lembrança de branquear Os Maias, ou contextualizá-los. Historicamente, estoicamente que seja, é um paternalismo escusado. Quem leu Os Maias não se livra de males, não tem salvação.


Falsificações


“O Ministério Público do Departamento Central de Investigação e Ação Penal deduziu acusação contra 25 arguidos, 18 pessoas singulares e 7 pessoas coletivas, nacionais e estrangeiras, no âmbito do processo principal do designado “Universo Espírito Santo” (NUIPC 324/14.0 TELSB). Foi deduzida acusação pelo crimes de associação criminosa (relativamente a 12 pessoas singulares e 5 pessoas coletivas) e pelos crimes de corrupção ativa e passiva no setor privado, de falsificação de documentos, de infidelidade, de manipulação de mercado, de branqueamento e de burla qualificada contra direitos patrimoniais de pessoas singulares e coletivas.”

É assim que começa, segundo leio e transcrevo, o comunicado do Ministério Público sobre o despacho de acusação a Ricardo Salgado e os restantes 24 arguidos, naquele que é considerado o maior escândalo financeiro na história de Portugal. Ou esse era o BPN? Ou o BCP? Ou o BBP? Se juntarmos o prefixo  ou o sufixo, dependendo da sua justa posição  económico, podemos ir até à Operação Marquês e a outros títulos igualmente (pouco) nobres. Portugal tem uma elite de fazer inveja aos madoffes de outros mundos. Com a diferença de que, por cá, as coisas do direito resolvem-se num tempo muito próprio, particularmente (in)útil, cheio de esses e erres, de vírgulas letradas, que se arrasta nos tribunais com bonomia requintada, requentada se fizer falta, até ao estertor, pelo menos, da paciência da nossa consciência conjunta. Já nos avisaram, aliás, que, em qualquer um dos principais casos que compõem o ramalhete da nossa vergonha e dos ódios de estimação que selam a inimizade intrincada e mordaz entre Carlos Alexandre e Ivo Rosa – Marquês, EDP, BES, PT, enfim, todos aqueles que reúnem mais ou menos os mesmos actores, o país é pequeno, como se sabe e não se esquece, até porque há quem não se canse de o repetir para nos explicar por que motivo não há falta de idoneidade em coisa nenhuma, o que falta é gente competente, graças a deus que temos estes –, dificilmente, dizia, algum julgamento terá lugar na próxima década. Dos que decorrem na barra do tribunal, entenda-se. Um dos problemas mais graves deste atraso endémico da justiça portuguesa é abrir espaço à condenação pública à menor suspeita. Quando, como naqueles casos ali em cima, as suspeitas se avolumam e ganham a dimensão que se conhece, enquanto os processos se arrastam nos interlúdios da lei que o dinheiro e o poder podem comprar, é difícil manter a credibilidade nas instituições e, sobretudo, nas pessoas. Mas, é assim se chega ao crime perfeito. De uma simplicidade estrondosa, não menos perfeita e patuscamente lusa. Basta aguentar o tempo da justiça até ao falecimento de uma de três coisas não necessariamente incompatíveis, embora, às vezes, pareçam: da própria justiça, do autor do crime, ou do crime em si mesmo, na forma de prescrição do dito. Desde que não se guardem memórias e outros empecilhos e se faça uma escolha capaz e escrupulosa do leque de advogados de defesa, é só deixar o tempo correr. Não deve ser difícil. Há advogados competentíssimos, em sintonia perfeita com o bem de alguns públicos, e há público capaz de viver vidas de luxo, mesmo despojado de qualquer bem privado, valha-lhes o auxílio de amigos generosos, jurisconsultos dedicados e familiares, ou fundações, que tomem como seu o que não se quer deixar cair em mão alheia, ainda que justa, enquanto a vida se vai fazendo a gosto, com um ou dois ordenados mínimos. E desde que se resista à inveja do povo, obviamente, ficará tudo bem. Não se podendo nascer duas vezes, deve ser o estado mais próximo da honestidade absoluta.

Já o devia ter afirmado antes. Ricardo Salgado (também) é inocente até prova em contrário. A acusação diz que há. Provas. E a defesa, que as esconderam até agora, impedindo os acusados de se defenderam como merecem. Entre os argumentos de uns e de outros, parece haver muitas certezas quanto à falsificação de contas e relatórios, numa promiscuidade entre o Grupo e o Banco, que se revelou fatal para todas as partes envolvidas, com ou sem consciência da dimensão da tragédia. E, sob todos os escombros, os que perderam toda uma vida de poupanças e sacrifícios, uns, eventualmente, aliciados por uma ganância à sua medida, outros confiando nos conselhos (desprevenidos?) dos seus gestores de conta, incentivados a adquirir produtos financeiros que, provavelmente, já não valiam sequer o papel do contrato. 

Ricardo Salgado continua a afirmar que nunca fez nada de errado. Que, no seu tempo, não havia lesados dos BES, evidentemente. A culpa disto tudo é de outros, da crise, de Passos Coelho, do contabilista e do Banco de Portugal. Permanecesse, Carlos Costa, de olhos ainda mais vendados que a figura da Justiça, e o buraco financeiro não era buraco financeiro. Era tudo uma questão de gestão. Engenhosa, primeiro, enganosa, depois, a troco da sustentação de um logro, um império em derrocada de que já só sobrava o trono manco de um cada vez menos poderoso. À semelhança daquelas outras famílias, ainda assim menos gulosas, que vão pagando um cartão de crédito com outro cartão de crédito, até que o último banco se recuse a avençar a derradeira gota, o último copo que é sempre a desgraça dos bêbados inconfessos. 


Segue-se, agora, o tempo da defesa. Que se quer longo o suficiente para que aquela se construa com a dignidade que merece. E, talvez, a morosidade necessária para esquecermos isto tudo. Sendo certo que haverá crimes muito difíceis de provar, há presunções despudoradamente insuportáveis de defender. A bem da presunção de que a justiça é cega, mas não moribunda, menos ainda, velhaca, seria bom assistirmos a um desfecho, também ele digno, de algum daqueles casos lá em cima. Eventualmente, deste. Antes de todos falecermos, quero dizer.

Claro que o monstro não se alimentou sozinho. Ricardo Salgado, como outros, contou sempre com a cumplicidade do poder político  até esbarrar em Pedro Passos Coelho, faça-se-lhe esta justiça – e da comunicação social, fosse na forma de fazedores de opinião, fosse na forma de jornalistas fofos, que lhe emprestavam a deferência necessária para dispensar escrutínios pecaminosos e perguntas maçadoras. E os mais próximos, nunca viram nada, como convém. Até tudo ter mudado

Se tudo isto for verdade e se provar, e num acesso de loucura  ou lucidez tardia  Ricardo Salgado decidisse expiar as culpas em público arrastando consigo todos os peões do tabuleiro, quantos cairiam?

sexta-feira, 10 de julho de 2020

No país dos esquemas, é só mais um...

A primeira vez que alguém me propôs dinheiro a troco da realização de um exame foi, talvez, há uns quatro anos. Demorei uns minutos a perceber o alcance da proposta de fraude. Começou com uma pergunta tão inocente quanto legítima, na forma de sms para o meu contacto telefónico profissional: era eu fulana-de-tal, que preparava alunos assim-assim para exames assim-assado?, e mais uns quantos pormenores a que fui respondendo com a ingenuidade que, por vezes, me assalta, me irrita e me desespera, tendo em conta os anos que levo disto, que já levava na altura, e que são, realmente, muitos.

Quando comecei a assimilar a dimensão da coisa, respondi que haveria, certamente, algum equívoco, já que o meu trabalho não era esse. A criatura ofendeu-se com o meu atrevimento, quem é que eu achava que era!, e atirou-me com um valor obsceno, perguntando-me se não chegava. Respondi que não era questão de valor, antes uma questão de valores, e dei a conversa por encerrada.


A última vez que recebi uma proposta idêntica, não chegámos à parte do valor. Foi há cerca de um mês e a pergunta foi directa, tal como a resposta, e não houve mais assunto. Pelos vistos, a fraude está muito mais agilizada e traz muito menos constrangimentos. Já não me sinto tão chocada. Afinal, os que embarcam no esquema limitam-se a reproduzir um comportamento que, desde as mais altas esferas do Estado e arredores, não só não vêem penalizado, como vêem, muitos vezes, premiado. O incómodo, o escândalo, a indignação parecem emergir apenas quando não se pode comer do pote.


quinta-feira, 9 de julho de 2020

Vírus e outras (bi)charadas

Tenho-me sentido como o Coelho Branco de Lewis Carrol. Mais ou menos. Mais atrasada e menos lúcida. Muito menos. O mundo em sobressalto e eu enfiada no meu casulo, menos figurativamente do que desejava. Pensei escrever sobre rabanetes, embalada pela loucura das personagens em que por vezes me perco sem perceber porquê, mas falta-me a inteligência, o sentido de humor, a arte de muitos, ou poucos, dependendo da exigência do palco, e a deliciosa arrogância de alguns. 

Lembrei-me do Coelho Branco porque, há tão pouco tempo que, neste tempo, se eterniza, comprei uma edição ilustrada de Alice no País das Maravilhas para oferecer ao meu filho. O miúdo trocou-me as voltas e as quedas e preferiu começar a ler O Diário de Anne Frank, o meu exemplar velhinho, ainda ninguém andava a decapitar estátuas, a espichá-las de vermelho-ultraje e a afogá-las nos rios, sem olhar a quem, como se não tivesse havido o ontem com que se constrói o amanhã e a História não tivesse nada para nos ensinar e pudesse ser retocada como um quadro antigo às mãos de aprendizes. Não tem dado bons resultados. 

E lembrei-me da entrevista do Miguel Esteves Cardoso sei lá bem porquê. É a parte da lucidez que me tem faltado, ou a memória do prazer com que a li, o descaramento desempoeirado, destapado em amena conversa e os consequentes acometimentos, à data, macilentos, inevitáveis, contra tudo o que mexe para aqueles lados que dormimos pior. Sei, no entanto, que, nessa altura, escrevi qualquer coisa sobre a falta de tempo para acompanhar a vertigem da actualidade. Nesta - que também era essa - altura do ano padeço sempre do mesmo mal. Desse, pelo menos. Com a idade, vão chegando outros. O mais recente – para lá da covid de que tenho escapado – tomou-me parte do juízo, com toda a certeza. Passei a acreditar em (algumas) teorias da conspiração. Por exemplo, quando li que Kanye West se apresentava como candidato a presidente dos EUA nas próximas eleições a realizar em Novembro naquele país, ocorreu-me que o golpe poderia ter sido acertado com o ídolo em falecimento a quem o cantor não pretende realmente suceder, apenas ressuscitar. O tremendous genius daqueles tipos! E quando li que Bolsonaro se declarava contaminado – com covid, entenda-se , mas se sentia perfeitamente bem, pensei, querem ver que o homem arranjou maneira de provar que a bicha é mesmo uma gripezinha que se cura com hidroxicloroquina e, no fim, vai mesmo ficar tudo bem? Tentava estancar a demência quando vi o sketch publicitário, e piorei. Mas, ele confia, aleluia, que descanso, só faltou a sanfona, essa expressão maior de homenagem aos que se foram. Entretanto, o presidente do Brasil também veio dizer que nenhum país preservou vidas e empregos como o seu. Excepto, talvez, os EUA. Mas, isto, quem diz sou eu. O outro magnânimo diz que ele é que é o presidente do país que fez um great job no combate à doença que ia desaparecer em Abril, com o calor. Nada de confundir o tamanho das américas.

Por falar em bom trabalho. Depois de termos conseguido trazer a Champions para Lisboa, poupando-nos um ror de dinheiro em publicidade para gastar em isenções fiscais, que o tempo não está para extravagâncias, passámos a figurar na lista de indesejados de alguns países que críamos e queríamos amigos. Enquanto Marcelo e Costa, o primeiro, se multiplicam em lamentos sobre a falta de turistas ingleses no Algarve, a polícia do Algarve vê-se a braços com a falta de responsabilidade dos jovens holandeses em viagens de finalistas. Parece que os miúdos andam aos magotes, abraçam-se e beijam-se sem pudor nem temor, enchem os bares à noite e as raparigas não querem usar máscara porque lhes estraga a maquilhagem. Que horror! A bem da nossa saúde pública, que não tarde a troca dos adolescentes holandeses pelos adultos britânicos, jovens e menos jovens. Esses sim, sabem ir a bares sem colocar vidas em risco. Desde que o Reino Unido e outros nos mantenham na lista negra, devemos estar a salvo. Até porque não há evidências de contágios nos transportes públicos, a saber, autocarros e comboios. E aviões da TAP, que também são públicos. Quem disse que o milagre português não era milagre português?

Deixemos a covid e os turistas em paz.

Mário Centeno foi ao Parlamento fingir que prestava os esclarecimentos que os deputados fingiram exigir a fingir que pretendiam fazer-lhes caso, aos esclarecimentos, para terminar fingindo uma discordância com que todos fingem concordar. Com excepção do Iniciativa Liberal, que ainda não sei bem o que finge. Tudo isto depois de António Costa fingir que ouvir uns e outros era importante para uma decisão que todos fingiam não estar tomada ainda Centeno não tinha acabado de limpar a secretária de Ministro das Finanças. A política é uma maçada. Fingida.

A SATA pediu auxílio ao Estado, no valor de mais uns milhões de euros a somar a outros pedidos de auxílio milionários. Conhecidos. Como, há tempos, carpia outro senhor, aplicam coimas de milhões como se fossem bagatelas. A questão é que nem todos merecíamos. As bagatelas. 

Também ficámos a saber que essa outra entidade estratégica para o sustento financeiro do país, o Novo Banco, vendeu a preço de saldo, outra vez, uns tais de activos a “entidades” ligadas a um tal de fundo norte-americano que é o principal accionista de um banco austríaco que foi gerido por outro tal de Byron Haines, actualmente, chairman do Novo Banco. Confuso? É capaz de ser intencional, para nos garantirem que tudo está em conformidade com tudo e não há qualquer motivo de desconfiança. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, e o mesmo se passa com a gente e com todas as outras coisas que sobram. Uma entidade é uma entidade, uma instituição é uma instituição, um fundo é um fundo, até os de resolução, e esta gente sabe muito bem distinguir umas coisas das outras coisas. Sem conflitos, tudo dentro da lei e dos inevitáveis “processos de restruturação e desalavancagem de activos não produtivos”, parece que é assim. Dependendo do que se entende por “não produtivo”, evidentemente.

Houve mais coisas. A ministra Mariana Vieira da Silva destapou a possibilidade de o Governo poder vir a "monitorizar discursos de ódio" publicados nas redes sociais, o que, em tempos bastante anormais, levanta mais desconfianças do que certezas, sendo certo que há uma liberdade que há muito deixou de ser de expressão; Rui Rio propõe acabar com os debates quinzenais na Assembleia da República e fez saber que encontra pouca utilidade na manutenção das reuniões do Infarmed, que, entretanto, foram suspensas, e o Ministro da Educação tem sido criticado por não ter um plano sério (a sério?) para o início do próximo ano lectivo. Talvez não venha a ser preciso. Da maneira como tudo está a correr tão bem cá dentro e lá fora, em Outubro, é possível que estejamos todos em casa outra vez e muito mais aptos a televiver em todas as suas variáveis, inclusive, a escolar. Educação também será outra coisa. 

sábado, 4 de julho de 2020

Revelações

José Frade/Museu do Fado


O regresso a esse novo estado de coisas que em nada se assemelha à normalidade tem-me custado mais do que a princípio supus. Pela vontade que não tinha de me encarcerar, mesmo consciente da inevitabilidade das medidas ditas de confinamento e convencida da sua mais que razoável necessidade. Entre o vai ficar tudo bem e o nada será como dantes, há uma multiplicidade de estados que, ora me espantam, ora me assombram e que ainda não aprendi a definir. Não que isso me preocupe em demasia. Creio, aliás, que resultam dramas maiores quando nos deixamos convencer, por culpa própria ou alheia, de que tudo carece de definições. Percebi, no entanto, que se tornou muitíssimo mais fácil distinguir aqueles que são realmente capazes de aguentar os nossos olhos. Ainda assim, anseio pelo momento da libertação.


Entretanto, reconciliei-me com o fado. Não sei bem quando, mas não é de agora. Foi um processo em crescendo, em pezinhos de lã, a alma que cá dentro se acalma nos versos que não canto, mas ouço cantar, nas notas que ouço tocar. E tocaram-se guitarras em homenagem a Amália. 100 guitarras por 100 anos. Ainda não tinha tido tempo para ouvir.