sexta-feira, 31 de julho de 2020

Produto de alguns dias



Lembro-me das aclamações no início da pandemia que ditou o encarceramento em massa do mundo; a Natureza sobrevivia alheia, como sempre, às desgraças do Homem. Mais do que isso, ressurgia. Sarava. Conciliava-se. Ouvia-se melhor os pássaros. As estrelas, pela noite calada, soltavam brilhos estridentes. Os verdes eram mais verdes do que alguém se lembrava, os azuis, profundos e o silêncio que engolia as cidades era uma bênção. De algumas dessas coisas fui testemunha, outras imaginei e as restantes fiz relativo caso de quem contou, consumida de dúvidas mais urgentes.

Aos poucos, dizem que vamos, agora, retomando a vida que perdemos, ou a que podemos, a que sobra por trás da máscara, do gel com que nos purificamos freneticamente, doseando o nojo com que nos medimos sem agravo nem remorso. Com brio. A Natureza regenerada aquieta-se, parece-me. Excepto aquelas nuvens de chumbo, compactas, que, há quatro dias, vejo da varanda, ao cair da noite, em marcha lenta, arrastando-se resignadas e ordeiras, pesadas como grilhões, até já não se distinguirem do mar onde se deixam naufragar num abandono consentido até ser outra vez dia.

E os dias sucedem-se, indiferentes às nossas penas. Leio que o PIB português contraiu 16,5% no segundo trimestre deste ano fatídico, de anunciada má memória. Que os resultados da auditoria ao Novo Banco que estaria pronta em Maio passado, também não serão conhecidos hoje, como estava previsto, e é sabido como sabemos prever coisas. Precaver também. 

Outro homem de setenta e muitos anos matou a tiro, na rua, a ex-mulher e aguardo o tuite de pesar de André Ventura, esse poço de virtude e coragem, seguido do registo criminal da vítima desavergonhada, uma rameira, seguramente, provocadora, a pedi-las, que alguma deve ter aprontado, a cadela tinhosa. 

A mania das vítimas, de se porem sempre a jeito. Não haver mais gente como a very impressive dra Stella Immanuel, que encantou o Trump e a Madonna, a médica (parece que sim) que já sabe da existência de uma vacina escondida para travar a covid, que garante ser o sexo com demónios a causa dos problemas ginecológicos e que os EUA são governados por uma espécie de répteis, ou lá o que é. Parece absurdo, mas, se pensarmos (não) muito no assunto, há uma parte qualquer desta história que convence; a mim, pelo menos, mas será mais avisado calá-la. Talvez não para sempre, mas já hoje tive o meu momento cafajeste e receio outros contágios.

 

Cresce um rebuliço. Há umas gaivotas serenas e outras tresloucadas largando gritos que soam sempre a desgraça. Mesmo que nem o próprio mar se rebele.