Tenho uma pilha de
livros à cabeceira da cama. Como não leio na cama, os livros que tenho à
cabeceira – quando tenho – são, ou os que já li e ainda não tive o tempo
(eventualmente, o espaço) necessário para os arrumar, ou os que ainda esperam
para serem lidos. Às vezes, também por ali ficam os que já li, mas sei que
hei-de ler outra vez; os que preciso de ler outra vez. E outra vez, talvez.
Sou incapaz de ler de qualquer maneira. Para descontrair. Quem é que lê para descontrair? Só se for o horóscopo, entre dois cafés, para escapar à conversa bafienta da senhora da mesa ao lado, quando havia cafés com mesas ao lado, que os jovens de agora são isto e aquilo, tudo e o seu contrário, e mais não sei quantos pecados – nunca chego a perceber se o problema são os jovens ou o agora –, e nem havia pandemia.
Eu não leio para
descontrair. Preciso de estar descontraída para ler. Posso ler no maior
pandemónio, desde que o pandemónio não me esgadanhe por dentro. Já contei dos meus
caprichos, não já? De alguns dos meus caprichos? Como só beber vinho num copo
de pé? E o café numa chávena de louça. Pode ser sem asa, mas de louça. Como gosto do café curto, sem açúcar e não demasiado quente, pode ser numa
chávena sem asa. Desde que de louça. Sei que também se pode dizer de loiça, mas eu não digo.
Tanta gente a quem a
pandemia fez despertar a paixão pelos livros, e eu, que os amo desde que me
lembro de mim, não tenho sido capaz de ler. Ler o que lia. No meu velho
normal.
Tenho uma pilha de
livros à cabeceira da cama. Três pilhas de livros na verdade, perfeitamente
alinhadas, não exactamente à cabeceira, à espera da minha atenção. Ainda
assim…ainda assim, fartei-me (não fartei nada, é um vício de que nunca me
farto) de gastar dinheiro em livros, nos últimos meses. Comprei livros onde
raramente compro livros. Encomendei livros online. Nunca encomendo
livros online, a não ser que sejam técnicos e não os encontre por cá. Comprei
livros no hipermercado. Raramente compro livros no hipermercado e, agora, nem
sequer se pode comprar livros no hipermercado. Pelo menos na semana passada
não pude comprar livros no hipermercado. Os bens não essenciais estavam
cercados sanitariamente; convenientemente; necessariamente. Não sei se
legalmente. Pude comprar chocolate, no entanto. Para mim, um livro é um bem
mais essencial do que um chocolate, mas, de vez em quando, não me importo de
trocar. Sobretudo se for chocolate negro. Gosto do chocolate como gosto do
café: negro, intenso, amargo. O café quente, mas não demasiado. Já tinha dito,
não já? O chocolate, simples, de preferência.
Onde é que eu ia? Os
livros.
De entre todos os
livros que comprei e ainda não li, decidi-me, há dias, por entrar de mansinho
n’ “O Infinito num Junco”, da Irene Vallejo. Não gosto particularmente de comprar
livros aclamados pela crítica, porque é bastante comum gostar de ler a
crítica e não gostar de ler o livro, e gostar de ler o livro sem ter gostado de
ler a crítica. E o mesmo é válido para as séries do momento, que
raramente vejo no momento.
Mas comecei a ler “O Infinito num Junco”. Gostei tanto do título. Gosto muito de um bom título. Ultimamente, não tenho sabido escolher bons títulos. Ando distraída.
Um
livro sobre livros. “Misteriosos grupos de homens a cavalo percorrem os
caminhos da Grécia. Os camponeses observam-nos com desconfiança desde as suas
terras ou desde as portas das suas cabanas. A experiência ensinou-lhes que só as
pessoas perigosas é que viajam: soldados, mercenários e traficantes de
escravos. Franzem a testa e grunhem até que os vêem fundir-se no horizonte. Não
gostam de forasteiros armados.” Não foi Garcia Marques que disse que um
livro deve conter tudo o que quer dizer no primeiro parágrafo? Acho que o
ouvi de uma amiga. Pois, ali, o livro, por pouco, cabia todo no prólogo. Mas, sim, creio que
talvez tivesse bastado o primeiro parágrafo, embora já não saiba bem em que
momento me veio à memória o cavaleiro da medina de Fez, no seu traje
deslumbrante, o turbante azul, elegantíssimo, o rosto moreno esculpido a régua
e esquadro, o cavalo branco, de pêlo sedoso e brilhante, uma história de uma noite.
Não é uma ameaça de clássico, o “O Infinito num Junco”, mas é, de momento, um livro delicioso; ainda não acabei. Lembrou-me – como se eu precisasse – de todos os motivos por que jamais serei capaz de ler um livro virtualmente, na insipidez de um écran. O tal ritual que implica gestos, posições, modulações de luz. Podia ser mais que ler um livro, mas, por vezes, ler um livro é suficiente. Ou ler alguém, simplesmente, ainda que não num livro. Esse ler em que me perco irremediavelmente, aonde regresso tantas vezes, cheia de cuidados, sabendo bem que sairei dilacerada.
Mas, agora, falava dos livros. Do latejar das folhas sob os meus dedos, enquanto vou virando as páginas. Do "murmúrio constante de palavras sussurradas". Do cheiro do papel. Da companhia e da presença.
Quando o acabar, "O Infinito num Junco", talvez volte cá.
Entretanto, bati com o joelho na esquina da mesa pequena da sala. Aproveitei para chorar tudo o que não chorava desde Março passado. Desde antes de Março passado. Já não me lembro há quanto tempo não chorava. Acho que, de vez em quando, é preciso chorar.