domingo, 17 de janeiro de 2021

Chego ao supermercado ao som do velhinho êxito Ok, põe-me ko, das "Doce". Passo a porta aos primeiros acordes, que reconheço imediatamente. Vá lá saber-se porquê, se não ouvia aquilo há anos. 

Não gosto de ir ao supermercado ao fim-de-semana, mas muitas vezes, mesmo muitas vezes, não tenho alternativa.

Percebo que ainda a sei cantar de memória. Aquela música das “Doce”. Quando o subconsciente se torna, subitamente, consciente e assume o comando. Implacavelmente. Outra vantagem de usar a máscara, podermos cantarolar sem que (quase) ninguém se aperceba: no distanciamento tornamo-nos mais silenciosos aos ouvidos dos outros e a máscara dissimula a expressão dos lábios. Receio começar a encontrar demasiadas vantagens nesta espécie de camuflagem imposta. Consentida. Ainda assim, vou resistindo.

Preciso de um bem não essencial e fico na dúvida se posso colocá-lo no carrinho ou não. Já me tinha perguntado como fariam os hipermercados para submeter ao exílio, desta vez, esses proscritos. Dúvida escusada. Tão inútil como a intenção em si. Não há necessidade de esconder, de controlar. Não há vigilância e não há multas, confia-se na bondade responsável de todos nós. 

É um produto de marca branca, de marca própria. O meu bem não essencial. Ignoro a ameaça de culpa e agarro uma unidade da coisa, é o que me diz a aplicação do telemóvel.

Fui uma cumpridora escrupulosa de todas as regras do primeiro confinamento. Passei mais de três meses sem tomar um café fora de casa. Saía exclusivamente para fazer compras; para os tais bens essenciais e nada mais que essenciais. Não havia, sequer, lugar a passeios higiénicos, a não ser até à varanda de casa, não sei se conta para as estatísticas. Via, como ainda vejo, o mar da minha janela, consciente do meu lugar de privilégio, bem maior do que a vista da linha do horizonte, mesmo ali ao fundo, onde o céu e o mar estancam num alinhamento infinito mais que perfeito. A não ser que haja muitas nuvens. Então, não há um e outro, são um só, desarranjados, num emaranhado de folhos. Repousei, na altura, repouso agora, muitas vezes, os olhos nos pores-de-sol que ali assomam e, por momentos, finjo que nada se alvoroçou. Apenas as cores parecem mais arrojadas, mais vivas e travessas. Ou então, o confinamento, o primeiro, fez-me, afinal, mais atenta à luz que embala a matéria subatómica, atirando-a de degrau em degrau, uma mescla de quanta energéticos e espectros únicos que se engalfinham em tons de violeta, laranja-chama e vermelho-sangue, até a linha do horizonte engolir o astro em estilhaços mudos de negro cinza, em remoinhos bailados, e o silêncio encher a noite.

 

Mas, cumpri tudo, dizia. Cumpri, até, a penitência de Natal, ignorando a saída precária concedida pelo Governo, com a bênção de todos, que eu me tenha dado conta. De todos os que se poderiam ter oposto, se fosse caso disso (e era), com o mesmo escândalo com que nos entretêm agora. Sei que consto da lista dos parvos. O Natal não teve nada a ver com isto, não é?, dos números, da curva e dos erres-não-sei-quê de que todos, de repente, se descobriram, mais do que esclarecidos, conhecedores abalizados

Pela primeira vez desde que tenho memória, passei o Natal longe dos meus pais. O meu filho queixava-se do desgosto de um Natal sem avós e o meu sobrinho acrescentava-lhe o desalento de um Natal sem Natal. Já não sei há quanto tempo não vejo os meus pais. Não quero contabilizá-lo, de momento. Não sei bem o que fazer com isso e preciso de manter a tranquilidade que ainda me sobra.


Passa pouco das 9.30 h da manhã e já estou despachada. A aplicação pergunta-me se quero finalizar a compra. Quero, mas, entretanto, esbarro num outro bem não essencial, que, sendo isso mesmo, está na minha lista frequentemente. Gosto de guardar algumas edições em papel da National Geographic. Pequenos gestos de resistência; ou de resgate. Há pedaços de mim que resistem violentamente a esta existência virtual, asséptica e insalubre, com que ensaiamos um novo normal que nos livre do desassossego de tentar recolher os cacos do antigo. Sou desastradamente incompetente para esta não-vida em rede, clique-a-clique, de videochamada em videochamada, sem rugas nem riscos, atrás de um écran. Não sou, sequer, capaz de manter um fio condutor que una decentemente as singelas páginas de um blogue. Temo não ser capaz de regressar a mim, quando, finalmente, tudo ficar bem, mesmo sabendo que esse bem também resultará num outro novo qualquer, nada semelhante ao que já fui.

Agarro na “Jóias do Passado em Portugal” e pouso-a em cima dos restantes artigos. Agora, sim, quero finalizar a compra.

Depois da linha de caixas, reparo que a tabacaria está a funcionar. Há pessoas a registar apostas naqueles jogos de azar. Só a categoria deveria ser suficiente para afastar a vontade, mas, também lá está o factor sorte e, aparentemente, o (re)confinamento não é capaz de dar conta das duas.

A cafetaria ao lado também está a funcionar. Em regime de take away, que se converteu no modelo da sobrevivência possível de alguns espaços de restauração. E lembro-me de ter recebido um sms da FNAC informando-me do seu não confinamento absoluto. E outro, de teor idêntico, do Leroy Merlin. Alegrava-me eu com o não encerramento das escolas.

Ainda me sinto tentada a tomar outro café, desta vez, fora de casa, mas desisto. As chávenas são daquelas de cartão, e não estou assim tão desesperada. Também me assalta uma ponta de culpa por não me sentir tão predisposta à obediência, desta vez. 


Quando ligo o carro, o rádio devolve-me a voz de Bryan Ferry. Também não o ouvia há muito tempo. Também sei cantar esta música de memória. Mas, desta vez, não me espanto.