quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Quino

 





Equilíbrios

 


Nazaré, fotografia de Aidan Williams, National Geographic


O tal debate


Creio que nunca terei ficado acordada com o único propósito de ver ao vivo, mais ou menos, um debate entre candidatos às eleições americanas. Mas, os tempos são outros e tenho a imensa sorte de dormir muitíssimo bem e, se for caso disso (muito raramente é), retomar facilmente o sono a meio da noite. Pois bem, ontem era o caso. Tinha uma grande expectativa sobre o confronto entre Donald Trump e Joe Biden, o que prova que devo estar a ficar senil.

Partilho das opiniões generalizadas, de que o debate foi miserável. Na verdade, para lá de miserável. Achei péssima a prestação de Chris Wallace, não gostei de ouvir Biden chamar palhaço a Trump – não é que a criatura não seja bem pior que isso e talvez até nem tenha sido um deslize – e surpreende-me sempre a deferência que existe com os descaradamente mentirosos poderosos, a quem nunca se exige, com a mesma assertividade implacável que se reserva aos outros, que provem o que estão a dizer, que documentem, que expliquem. Claro que isso também é difícil, quando se tenta estabelecer o mínimo de conversa com alguém com o perfil do actual presidente dos EUA. Aliás, se nos abstrairmos disso, Trump é, realmente, uma personalidade fascinante do ponto de vista médico – da área da psiquiatria. O nosso protótipo nacional só não se lhe assemelha porque, precisamente, é-lhe mais difícil fingir que é tão ignóbil quanto pretende parecer. Já Trump é o que é, é-lhe indiferente, e lida lindamente com todos os atropelos à verdade dos factos porque criou a sua própria realidade virtual, que os seus apoiantes mais fiéis trazem em ombros sobre as ruínas do que vão esmagando pelo caminho. Só lhe falta mesmo o shoot somebody no meio da 5ª Avenida e safar-se com isso, who cares?

Claro que Trump não foi capaz de assegurar que vai aceitar os resultados das eleições se perder  não vai – nem de condenar os grupos de supremacistas brancos pelos actos de violência; usou o habitual tom jocoso (estou tão preparado, quem é que quer que eu condene) para, imediatamente a seguir, lançar achas para a fogueira que o há-de manter vivo até 3 de Novembro, pelo menos: “Proud Boys, stand back and stand by. But I'll tell you what: Somebody's got to do something about antifa and the left. Because this is not a right-wing problem — this is a left-wing problem”, e os Proud Boys, very proud, já vieram responder, heil trump, quantas cabeças partidas quer? 

É importante semear o caos para, depois, impor a lei e a ordem. 

 


Não vai acabar bem. Não vai acabar nada bem. E é penoso ver o estado a que chegou a América. Mais do que miserável.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Make Trump Great Again




Que bom! Como todos os outros presidentes americanos foram uns crápulas, no mínimo, incompetentes à sua maneira, Trump, pelo menos, tem feito algumas coisas boas nos EUA e pelos EUA. E, como o que se passa na América não interessa nada a Portugal, a não que um senhor embaixador nos venha dizer a que país nos devemos vender a retalho, e artistas na arte de escapar aos impostos também os temos por cá em tamanho XS, está tudo muitíssimo bem. O que é o homem representa assim de tão fastidioso? Isto da inveja e do ódio, realmente...


Estranhezas

 


Choveu, e há um cheiro intenso a terra fértil e a musgo verde. Coada pelos ramos altos e quase despidos das árvores, a luz morna da manhã estica-se, apressada, sobre o chão húmido, exaltando as cores de Outono em pulsos desordenados, como o bater de um coração antecipando a tempestade.

No tronco da árvore maior, não muito acima do solo, há uma cavidade aberta, semi-oculta, inundada a diferentes tempos pela luz que lá chega ao sabor do andamento das nuvens carregadas ainda. Mesmo aí, à entrada, uma pequena aranha de ventre ovalado e negro encontrou algum abrigo enquanto tece a sua teia de seda, ardilosa, uma artesã paciente e escrupulosa numa azáfama encantada, movendo as patas muito finas, um maestro guiando uma orquestra a movimentos precisos, subindo e descendo, soltando melodias silenciosas magistralmente materializadas numa renda delicada e enganadoramente frágil, um leito fatal aguardando a primeira presa.

Suspenso na parte já esculpida da teia, há um fio fino de gotinhas cristalinas de água harmoniosamente alinhadas como as contas de um colar.

Tenho tempo. Fico a vê-la montar o seu ardil. Paciente como ela.


segunda-feira, 28 de setembro de 2020

São negócios, estúpidos!


Mandava a inteligência e o bom senso que estivesse mais preocupada com o nosso o "Mecanismo de Recuperação e Resiliência" e a forma como Portugal pensa aplicar a tal bazuca com a qual vamos, finalmente, - desta vez é que é, não é? - sair da cauda da Europa e crescer como nunca antes, do que com a declaração de rendimentos do charlatão que ocupa, actualmente, o cargo de presidente da "America First". E estou. Apesar de suspeitar que não preciso. Afinal, Portugal pode ensinar outros países a fazer bons negócios, nem é preciso ir às 51 carruagens da CP, basta olhar para o negócio que o fundo Lone Star fez com o Novo Banco e para os negócios que o Novo Banco tem feito com fundos que não têm nada que ver com a Lone Star. 

Portanto, como por cá vai correr tudo bem, tenho aproveitado para me distrair com as acrobacias do senhor Trump e seus acólitos. 

A notícia da eventual fuga aos impostos do brilhante homem de negócios, entre outros pirilampos, não vai afugentar a sua base de apoio, obviamente. Os seus adoradores vão continuar a papar a teoria das fake news, dos testes antidoping (really, mesmo really?!), das fraudes dos outros, dos ataques e do mal que as Finanças tratam o pobre senhor. Mas servirá, pelo menos, para esclarecer o que vem, realmente, primeiro quando Trump pespega um dos seus gatafunhos num documento oficial.

Sobre histerismos e algo mais.

Como gosto de ler Miguel Sousa Tavares, no EXPRESSO, mais do que de o ouvir, não posso deixar de lamentar a burrice – vou conceder-lhe, antes, a burrice – do desabafo expresso no seu último artigo: "naquele clube de histérico-feministas/bloquistas da Universidade Nova, de Carcavelos", para repudiar uma hipotética intenção (que não é intenção nenhuma, que se saiba) do BE, na pele da mal-amada Mariana Mortágua, de nos atirar com outro imposto extraordinário para ricos, daqueles ricos em que me incluo e, portanto, percebo bem a indignação do Miguel.

Li e não gostei; depois, meteu-se tanta coisa pelo meio que me esqueci de que não tinha gostado – gostei mais do resto do artigo e deve ter sido suficiente – e lembrei-me hoje; ou melhor, lembrou-mo a Ana Sá Lopes.

Assim sendo, aproveito para também dizer qualquer coisa de inútil sobre o senhor professor doutor Francisco Aguilar, a Faculdade de Direito de Lisboa, a deputada Hortense, os juízes e o Parlamento. Podem não ser todos iguais, mas que parecem, parecem. O pior mal que toda esta gente faz à democracia é precisamente este: à custa de tanto e tanto descaramento e falta de ética – da ética de que só se lembram quando a coisa aperta nas redes sociais; aí, é salamaleques para cá, salamaleques para lá, por quem são, por quem somos, ora essa e mais não sei quê para português ver – começamos mesmo a não ver diferença alguma. É como as bruxas. Por princípio, não se acredita, mas, depois, é o que se (não) vê...


Ainda a Cidadania

 

Ontem, a SIC Notícias promoveu um debate entre Daniel Oliveira e Sérgio Sousa Pinto sobre a desgraçada disciplina de Educação para a Cidadania. Daniel Oliveira deve dispensar apresentações; Sérgio Sousa Pinto, não sei, mas, para os mais distraídos, como eu, é, pelo menos, o deputado socialista que assinou o manifesto contra a obrigatoriedade da frequência das aulas da dita. Já o debate foi bastante educativo; teve cidadania, e falta dela também.

Sérgio Sousa Pinto começou, aparentemente mais para o cínico do que para o calmo, e já espumava ainda a coisa ia no adro. A leitura de todos os géneros de tópicos de género associados à lista do tal “Guião de Educação para o 2º ciclo” esgotou-o de vez, de modo que, o único troglodita de esquerda presente, que Sousa Pinto trouxe à conversa duas ou três vezes, era mesmo o próprio. Se dúvidas houvesse sobre o que, na realidade move os indignados contra a suposta tentativa do Estado de promover lavagens cerebrais nas nossas crianças, aí esteve Sousa Pinto, esmurrando-as uma a uma. Ou isso, ou alguém cometeu um erro de casting e enganaram-se na escolha.

Posso não concordar totalmente com Daniel Oliveira (por acaso, acho que, no caso, concordei com tudo o que à Cidadania dizia respeito), mas, não há dúvida de que esteve francamente bem. Também não era preciso muito; era só ter preparado o debate com algum cuidado e defender os seus argumentos com inteligência. Tudo o que parece ter faltado ao outro senhor.

Ainda sobre o tema, vale a pena ler dois artigos que o PÚBLICO publicou por estes dias: primeiro, o de António Barreto – que leio, normalmente, com gosto, o que, aqui, não foi o caso; não imagino o que lhe terá dado, mas, à laia de penitência (claro que não), escreveu este outro, sobre justiça e corrupção – e, mais recentemente, o de Francisco Bethencourt.

De modo que, deixem, realmente, as crianças em paz. Na paz do desassossego de aprender, de descobrir, na paz de errar, tropeçar e crescer. Os pais de Famalicão e os seus apóstolos não concordam com o que se diz, na escola, sobre igualdades e desigualdades, sexualidade e outros demónios? Têm o direito de discuti-lo à mesa de jantar. Dava um bom trabalho de compensação das faltas que os miúdos deram, passavam de ano com a distinção que queriam os progenitores e teriam contribuído para um debate a sério. E sério. Devem ter influência suficiente para rebater, se não com eficácia, pelo menos, com estrondo, as miseráveis seis horas anuais, ou lá o que é, mas não é muito mais, da carga horária destinada à cidadania escolar. Até podem jogar a cartada do “é assim, porque eu digo e eu é que mando”, como faço, algumas vezes, com o meu filho, ao seu enésimo “porque-eu-que-não-posso” e, agora, acrescente-se ali o que se quiser, e eu já de paciência esgotada. Sousa Pinto esteve quase. Foi por um triz, como se diz.

domingo, 27 de setembro de 2020

Diplomacias Maléficas

 

O senhor embaixador George Glass esqueceu-se das regras básicas da boa educação – coisa banal em quem comunga da cartilha do actual e inenarrável presidente dos EUA – e achou por bem disciplinar o anfitrião na sua própria casa. 

Adverte o senhor embaixador que a China não é a mesma de há 500 anos, antes “uma nova China com planos a longo prazo para acumular influência maligna através da economia, política e outros meios”. É sempre bom estarmos avisados. Os mais mal-intencionados poderiam ser levados a pensar que os EUA de agora não eram os EUA de há quatro anos e que estes novos EUA, presididos pelo amigo Trump, pretendessem acumular influências malignas através, essencialmente, de outros meios. Por exemplo, insultar rasteiramente adversários políticos, os vivos e os mortos; ensaiar esgotadas piadas machistas sempre que a crítica mete saias; apelar ao crime desde que o crime favoreça a sua retórica nojenta; vilipendiar métodos legítimos de votação de que, no passado, já fez uso sem qualquer chilique;  ou recusar-se a aceitar a derrota democrática, se essa derrota chegar, e eu espero que chegue, só para que conste.

Os EUA estão sentados sobre uma mina activada (há quem comece a dizer e à beira de uma guerra civil, e não sei se será tão estapafúrdio assim) e o embaixador George Glass sente-se suficientemente à vontade para vir ameaçar (novamente) Portugal. Se pudesse, provavelmente despedia-nos, como faz o seu presidente sempre que se sente contrariado.

A China é uma potência maligna, sim. Se não por mais (e há tanto mais!), pela infâmia dos campos de reeducação da população uigure, predominantemente muçulmana. Nesses campos – que Xi Jinping classifica como um sucesso que há-de continuar – praticam-se formas horrendas de tortura, como mulheres obrigadas a usar dispositivos intra-uterinos, quando não mesmo esterilizadas; crianças brutalmente afastadas dos pais; obrigação de comer carne de porco, cuja recusa pode resultar, inclusive, em violação como prática correctora; suspeitas de julgamentos fraudulentos, enfim, a aplicação disciplinadíssima de todos os mecanismos, legais ou ilegais, humilhantes e desumanos, como forma de ensinar o pensamento e comportamento únicos que fazem da China a China.

Obviamente – mesmo com Donald Trump na presidência há quatro longos e negros anos para a democracia americana – os EUA estão bastante longe da China de Xi Jinping. A grande questão é como estarão os EUA daqui a mais 4 anos de Trump como presidente. Infelizmente, não é um cenário completamente afastado, o que torna tudo ainda mais surreal: como que é que o partido Democrata não foi capaz, neste período, de encontrar e consolidar uma candidatura infalível, à prova de Trump e dos republicanos que lhe prestam vassalagem?

É verdade. Vários republicanos vieram a público garantir que, sim, haverá uma transição pacífica de poder, caso Joe Biden vença as eleições de Novembro próximo. Alguns são os mesmos que, em 2016, juravam que, em ano de eleições, um presidente não devia nomear um juiz para o Supremo Tribunal, e, agora, que todas as leis de Murphy parecem ter-se alinhado para garantir a Trump a derradeira cartada para afastar de vez o pandemónio político da pandemia e resgatar o trono que ameaçava escapar-lhe, agora, dizia, apressam-se a querer substituir a juíza Ruth Bader Ginsburg. Como habitualmente, as regras só são válidas quando são para ser cumpridas por outros (sim, já sei, foi mesmo só uma regra de momento, naquele momento). Percebe-se bem porquê. Estima-se um número record de eleitores a recorrer ao voto por correio e Trump tem feito o possível e o para lá de indecente para atacar esse legítimo direito dos americanos. Se Joe Biden ganhar as eleições de Novembro com uma expressiva margem por essa via, Donald Trump agitará, mais histericamente ainda, o fantasma da fraude que tratou de inventar até aí, exigirá uma decisão feita à sua medida do Supremo Tribunal e, aí chegados, contará com a obediência da maioria republicana que, nessa data, muito provavelmente, contará já com a presença de Amy Coney Barrett, o tal 6-3 com que Trump pretende manter o estatuto de um deus maior.

De modo que, no que toca a métodos maléficos, nem sequer estamos como há quatro anos, senhor embaixador.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

A propósito do "debate" entre João Cotrim de Figueiredo e José Gusmão

 

…que, por acaso, vi em directo, na SIC Notícias, e que tem feito algumas linhas.

Não tenho uma opinião totalmente formada sobre as vantagens e desvantagens da taxa única de IRS, eventualmente, de 15%, como propõe a Iniciativa Liberal. Não foi isso que retirei do tal “debate”. É que parece já ser difícil debater o que quer que seja com alguém com quem não estamos de acordo. 

Dois pontos, para início, a favor de Cotrim Figueiredo. A calma e a elegância no trato são qualidades que, à partida, ainda aprecio o suficiente, mesmo que me fique apenas por aí no apreço.

Não gostei nada de ouvir José Gusmão exaltar a “mentira” do “vão todos pagar menos”, quando a “mentira” reside, afinal, no facto de, em virtude da proposta da IL, não passarem a pagar menos IRS os que já actualmente pagam…zero. Certo, o vídeo promocional poderia ter feito referência a isso – todos, não é bem todos; são só todos os que, efectivamente, pagam IRS. Foi só por isto, o alarido?

Os mais ricos vão ter “borlas” fiscais, agitadas um par de vezes na argumentação de Gusmão. Cada vez tenho menos paciência para a linguagem rasteira nos espaços dedicados a coisas sérias, para discutir entre pessoas igualmente sérias. Começo a passar da impaciência à náusea. Chega-se ao fim e percebe-se que, quem fala assim, não está nada interessado em discutir coisa nenhuma. O debate está morto ainda antes das câmaras começarem a gravar. Assim, não vamos a lado nenhum, mas o objectivo é mesmo esse.

Como já disse, não sei bem se uma taxa única de IRS é mais vantajosa do que uma taxa progressiva que aparenta, pelo menos, ser mais justa em termos sociais. Mas, numa coisa, concordo com Cotrim Figueiredo: o problema não será tanto Portugal "ter ricos a mais", "é ter pobres a mais". E o facto de os mais ricos poderem a vir pagar menos impostos, não me choca particularmente, desde que, mais uma vez, esses impostos sejam sérios e justos. Para isso, há muito a fazer a nível da tal corrupção instalada, que não se pode dizer que está instalada porque é populismo (isto, isto, isto, etc, etc, etc, são só umas quantas, poucas, maçãs podres, nada que outros não tenham, não é alarme nenhum), e a nível do combate à evasão fiscal, nomeadamente, travestida de negócios bem embalados em linguagem jurídico-financeira, de preferência em inglês, e despachados para harmoniosos entre os seus pares paraísos fiscais: offshore, off the record, off de tudo o que permita esclarecer tudo o que seja importante esclarecer; of course.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

O Horror

 

Nuno Rogeiro é dos poucos (não sei se o único) jornalista e comentador político que tenho ouvido denunciar assiduamente, no seu Leste/Oeste, o horror que se vive em Cabo Delgado. Provavelmente por minha responsabilidade apenas, que não estarei suficientemente atenta.

Não vou colocar o vídeo, porque não fui capaz, sequer, de o ver. O vídeo da mulher nua executada com 36 tiros, depois de ter sido espancada por um grupo de selvagens que, poderão parecer, mas, não são militares, nem são homens.

Não sei como é possível. Não sei como é possível. É mais do que ódio. Até para odiar é preciso ter uma sombra que seja de humanidade. 

Não sou defensora do olho-por-olho, dente-por-dente, mas, por vezes, parece ser a única justiça possível.

Imagens de marca

 




Há poucos meses, nos EUA, dava-se conta do sobressalto que causava o estado de saúde da juíza Ruth Bader Ginsburg. Aliás, desde que Trump ocupa, estrondosamente, o cargo de presidente daquele país, que qualquer ameaça de espirro da juíza Ginsburg provoca ondas de pânico em todo o território americano. Ou quase todo. Facilmente se percebe porquê: o cargo que ocupava como Juiz do Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América é vitalício, aquela juíza, em particular, não tinha em grande conta o actual presidente americano e, sob aquela aparência frágil – quase ternurenta – era bastante mais do que uma mulher extraordinária. Donald Trump, se pudesse, muito provavelmente, tê-la-ia despedido, como, de resto, faz amiúde com os que ousam denunciar e contrariar os seus tiques de um deus maior. Assim, restava esperar que a natureza seguisse o seu curso. Ruth Bader Ginsburg deixou um vazio que Trump e a sua turba têm pressa em ocupar, preparando-se para forçar uma substituição que, outrora, rejeitaram aos democratas. O que já não deve espantar ninguém: este tipo de gente, seríssima, nada hipócrita, ora essa, apostada em contrariar o sistema e a resgatar o seu país – o mundo, se preciso for – só repudia os maus hábitos da democracia quando não se pode servir deles.




Entretanto, o nosso venturoso anti-sistema, o messias de trazer por casa, emocionou-se (ou assustou-se, ou irritou-se) no último comício. Parece que os 99% com que foi reeleito, há duas semanas, como líder do seu partido, não foram suficientes para evitar o percalço de três tentativas para fazer eleger a sua lista à direcção do chega. Assim, em pequenino, como o próprio. Também parece que (se calhar…) se demite se Ana Gomes lhe tirar o segundo lugar na corrida às presidenciais, coisa que eu espero que aconteça; por várias razões, e uma delas será ouvir como vai explicar que, obviamente, não se demite. Como se disso houvesse alguma dúvida.

E, ultimamente, têm-se ouvido muitas vozes alertando para a necessidade absoluta de usar bem os dinheiros de Bruxelas. Como sempre acontece nestas coisas, umas vozes são mais sérias do que outras. “Não desperdiçar um único cêntimo” e mais uma série de anúncios bombásticos, intencional e adequadamente histriónicos para abafar a excitação dos clientes habituais, não são de levar muito a sério se vêm daqueles que, podendo fazer radicalmente diferente, sempre vão fazendo mais ou menos do mesmo. Dizem-nos que os portugueses já não toleram mais desmandos escandalosos, que estamos fartos, que atingimos um limite para a pouca vergonha, e mais um tanto de coisas que há-de permitir que seja agora. Agora é que é. Agora é que vamos ver Portugal renascer de todas as cinzas que acumulámos ao longo de anos e anos a fingir que tínhamos um plano para deixar de perder a oportunidade sempre que ela surgia. A ver vamos. Uma coisa é certa: como ontem dizia Ana Gomes no seu ainda espaço de comentário, na SicNotícias, se não nos mobilizarmos, efectivamente, como sociedade, para exigir o tal rigor e transparência que nos devem aqueles que elegemos para nos representarem nos diversos espaços de poder e soberania, vai ficar tudo pior. Muito pior

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Ainda sobre aquela coisa da honra...

 ... leio, de relance, que Luís Filipe Vieira retirou António Costa e Fernando Medina da sua lista de honra, aquela que abençoa a sua recandidatura à presidência do Benfica. Admitindo que nada disto foi combinado, e apenas comunicado aos visados, ainda assistiremos à canonização daquele primeiro. O que não é ministro. Magnífico. No que toca a honras, é digno de várias notas. Indigno é tudo o resto. 

Também ouvi, à ministra da Justiça, qualquer coisa sobre o direito à contradição íntima de cada um, o que me fez lembrar, vá lá saber-se porquê, aquela outra coisa do direito a lutar pela sua verdade

E ainda temos o inquérito que, afinal, não o era. Parece aquela coisa (mais uma...) da pescada, mas ao contrário.

Às vezes, é difícil conter o espanto. 

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Primeiro dia de aulas, três lições de cidadania...em 15 minutos

 


Lição número 1: Pessoas "normais" não estacionam, de lata, imensa, e bagagens, nos lugares reservados a pessoas com mobilidade reduzida. Além de revelar uma falta de cidadania colossal, a pessoa "normal" arrisca-se a ver o seu magnífico veículo bloqueado mesmo ali à porta da escola. Normalmente, ninguém reclama, mas, hoje, não foi o caso. Estudassem...

Lição número 2: Pessoas "normais" não estacionam o seu magnífico veículo mesmo em cima do passeio, passeio esse onde as suas crias e as crias dos outros hão-de vir ter, forçosamente, à saída da escola, já que não têm outro sítio por onde circular; a não ser a rua, onde é suposto circularem veículos, nomeadamente, automóveis, mais ou menos magníficos. Pois, é melhor dispersar. Imediatamente. Até porque os senhores que bloqueiam veículos ainda lá estão e não vá o diabo tecê-las e levar-nos ao inferno por termos perdido as aulas de cidadania. Na escola. Se não precisássemos da escola para isso, teríamos aprendido cidadania em casa, o que, aparentemente, não foi o caso.

Lição número 3: Quando um outro veículo está parado, por um instante breve, com um e um só pisca-pisca ligado, poucos metros à frente de um lugar de estacionamento permitido, do mesmo lado do tal pisca-pisca, depreende-se que quem conduz tal veículo pretenda estacionar. Desta forma, o veículo que circula atrás não deve nem sequer tentar estacionar de frente, mesmo que o seu veículo seja de menores dimensões e assim o permita.

Por hoje é tudo. Podem tirar as máscaras. Se a cidadania o permitir.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Tudo uma questão de (falta de) honra

 


Já comecei e apaguei não sei quantas vezes este texto. À data de hoje, não fica muito por dizer, mas sinto-me bastante enojada com tudo isto.

Ainda que Luís Filipe Vieira parecesse o mais impoluto dos portugueses em geral e dos presidentes e candidatos a presidente de um clube de futebol “dos grandes” em particular, mandava o mínimo de bom senso – deixando a decência de parte, que isso, já se sabe, está para lá de démodé – que, pelo menos, o primeiro-ministro de Portugal não chafurdasse na lama, menos ainda, com prazer. Mas, como todos sabemos – até porque já nos dito de várias formas diferentes – uma coisa é uma coisa, outra coisa são os clubes de futebol. E o futebol é aquele desporto onde tudo é permitido, não é?, o insulto higiénico, os meandros dos negócios para lá de bilionários, obscenos, e a complacência com os pecadilhos dos homens da bola, os mesmos pecadilhos que não se perdoa a mais ninguém.

Já tínhamos assistido ao caso Rui Moreira e FCP, que fez correr tinta assim-assim. Mas, sim, no caso de António Costa, a “falta de recato” é maior. É colossal. É daqueles actos dignos de países sabujos, onde abunda a promiscuidade e a corrupção entre todos os poderes instalados. E é, também, por isso que a culpa não é de António Costa; é de todos nós. Um país inteiro que se habituou a encolher os ombros, sem pedir responsabilidades, complacente com todas as formas de prostituição entre políticos-advogados-banca-futebol (é possível que me tenha escapado algum hífen): "são todos iguais", sem permitir a ninguém ser diferente. É o sistema. Menos mal, que temos o André Ventura para nos dizer que o futebol não se mistura com política. O resto, é tudo uma campanha para denegrir a imagem de uns quantos, os de sempre, porque, já se sabe, somos um país de invejosos e a Ana Gomes é uma populista histérica: se fossemos a acreditar em tudo o que diz, “teríamos de supor que todos os políticos, todos os advogados, todos os presidentes de clubes, todos os gestores e todos os empresários são trapaceiros”. E, no geral, não são, não é?, são só azares, coincidências do diabo, offshores fofinhas e coisas que tal.

Criam-se leis, decretos, despachos e um sem número de etceteras para prevenir – ou fingir que se pretende – todas as formas de abuso, e vemos tudo isso ruir ao mínimo aborrecimento. A lei não permite que um juiz desembargador jubilado acumule o que recebe no gozo desse estatuto com outra qualquer actividade remunerada, pública ou privada? Se o juiz entender que há casos em que pode, pode. É preciso pedir uma autorização para tais casos ao Conselho Superior da Magistratura? Pois, parece que sim. E se não se pedir, qual é o castigo? Qual castigo, então não se sabe que se há coisa que as nossas elites todas sabem fazer muito bem é separar coisas, nomeadamente, o pessoal e o privado, compatível do incompatível, o certo do errado e, por maioria de razão, o futebol e a política?

Há tanta coisa mais para acrescentar aqui, exemplos gritantes de como são poucos os que que têm noção de dever e serviço público, que encheria páginas e páginas de links e notícias indecentes. Transversais a todos os governos desde há décadas. É esta a nossa miséria. Ladra-se alternadamente, consoante mudam as cadeiras. Os que se sentem arrogantemente impunes, sentem-no porque, de facto, o são. Sobraria a honra. Mas, qual honra?

 

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

A Bela e o Monstro

 



Ou as melhores fotografias de 2020, em Astronomia.

Para ti também, 2020

 



Ou, as fotografias mais cómicas de animais, de 2020.

As Guerras do Mundo

 

Por acaso, voltei a encontrar e voltei a ver a única, creio, entrevista que Joaquin Phoenix deu ao programa 60 minutos, pouco depois da estreia de “Joker”.

É um momento fantástico, o da entrevista. Joaquin Phoenix não é um entrevistado fácil. Não gosta de falar de si próprio; não sabe e, se soubesse, talvez lhe sobrasse ainda menos paciência para tentar explicar de onde lhe vem aquela centelha de loucura que faz dele um actor para lá de genial: monstruoso. Li, algures, que não gosta de ensaios, ou de ler guiões em grupo, do estrelato estéril da fama. É um homem soberbamente só. Imagino que seja dessa solidão que nasça a simbiose natural entre ele e as personagens a que se entrega; “há algo de libertador na humilhação pública”, confessou a Anderson Cooper, a propósito do fiasco – parte filme, parte documentário – de “I´m Still Here”. No caso de “Joker”, a fusão perfeita entre o homem e os seus demónios. Deve ser o que explica que o filme seja só dele. Que o filme seja ele. E a compulsão que o levou a improvisar aquela dança na casa de banho, depois de Arthur Fleck ter ousado matar pela primeira vez. Não fazia parte do guião. A dança. Lenta, silenciosa, catártica. Impôs-se, naquele momento, por vontade própria, a que Phoenix deu expressão, corpo e alma. Sobretudo a alma.




Há filmes que só vejo uma vez; às vezes, por motivos opostos: ou porque são desoladoramente maus – “Assim Nasce Uma Estrela” foi uma decepção tremenda – ou são tão intensos que, para repetir a experiência, é preciso domar cada um dos sentidos; acautelar, para o que aí vem, cada pedaço de mim, sob pena de não sair inteira da experiência que já uma vez me esmagou. “Joker” é um destes. Com a diferença de que, ao contrário de outros a que, até agora, não fui capaz de voltar por esses mesmos motivos (“A Lista de Schlinder”, por exemplo), “Joker” tem-me refém. Será uma questão de tempo.

 

Tudo isto vinha a propósito de guerras, e não sei por que terei começado por ali; talvez pela violência extrema do filme. Das guerras que nunca cessaram, embora nem todos as víssemos. 

Uns vivem infernos permanentes, outros, mais afortunados, vivem-nos de tempos a tempos. Num atentado terrorista que, às primeiras horas da manhã, num ponto nevrálgico do mundo a que chamamos mundo, esventra dois edifícios icónicos, semeando o caos e o espanto, a morte e o assombramento, a incredulidade (19 anos, a sério que já se passaram 19 anos?!). A mesma incredulidade que nos atingiu agora, implacavelmente, com duas diferenças que nos confundem: não há ninguém a quem culpar (a não ser que embarquemos nas teorias da treta, teoremas e corolários inclusive) e também não há ninguém que possa sentir-se verdadeiramente a salvo. Mas, apesar do alarme, do choque e dos destroços, esta guerra não é bem uma guerra. Entretanto, para lá das guerras – mesmo guerras – que nos habituámos a ver apenas nas páginas de alguns jornais e nas imagens de alguns telejornais, o mundo agita-se em uníssono, em fúrias diferentes mas legítimas, todas elas; muitas inadiáveis, urgentes, sob pena de perdermos mais do que a normalidade; mesmo aquela que muitos rejeitam, com escândalo, que se diga nova.

A Bielorrússia continua a ferro e fogo, com um presidente que reclama 80% dos votos contra ruas inteiras de manifestantes apostados em dizer basta! e em resgatar o que lhes sobra de liberdade. “Por amor”, Svetlana Tikhanovskaya tomou o lugar do marido e desafiou o poder  absoluto de Alexander Lukashenko. Há homens de máscara e identidades desconhecidas à caça de dirigentes da oposição, a bem da segurança nacional. A UE ameaça com sanções que, dizem, não terão qualquer efeito dissuasor sobre o tirano.

Vladimir Putin, cujos adversários tendem a deixar-se envenenar, deseja que tudo se resolva rapidamente, mas vai avisando que qualquer tentativa de interferência externa será inadmissível, seja lá o que isso for, em russo.

Hong Kong. Alguém se lembra de Hong Kong? Um país, dois sistemas? Quando comecei a ver as primeiras imagens das manifestações maciças pró-democracia, há mais de um ano, lembro-me de acreditar, por momentos, que poderia vir a ser verdade.

Na Grécia, na ilha de Lesbos, num campo de migrantes onde se ensaia a sobrevivência como ela jamais poderia ser tolerada, um incêndio agravou a indescritível miséria em que já jaziam milhares de pessoas até aí. Não sei como vai ser possível continuar a acolher(?!) milhares e milhares de farrapos de vidas destroçadas, sem alterar nada, sem procurar uma solução que não passe por converter num inferno a vida dos habitantes de Lesbos (sim, provavelmente, nunca chegará a ser um inferno idêntico, mas, e se fosse aqui, nas nossas ilhas ou nas nossas costas?), ou em recusar, liminarmente, prestar auxílio àqueles corpos amarrotados, esgotados, e ainda assim, cheios de esperança. Alguém, coisa ou pessoa, no singular ou no plural, tem que unir esforços para encontrar um caminho que não passe por ali. Que não passe por lado nenhum em que homens, mulheres e crianças sejam despejados como trapos imundos, sem utilidade ou remendo, digladiando-se por um pedaço rançoso de alento.

Há mais, muito mais, mas esgota-nos, olhar apenas para as misérias do mundo. Vou ficar por aqui. Não sem antes dar um pulinho a Istambul. Outro. Li, já há algum tempo, que Erdogan decidiu capturar, em nome do Islão, outra jóia bizantina de Istambul: a Igreja de São Salvador de Chora. Alegro-me por tê-la visitado há dois anos. O exterior estava tapado, em obras de restauro, mas o interior, apesar de algumas limitações, permitia aos visitantes o assombro devido. É tão bonita, tão bonita! 



Devia ser possível, a toda a humanidade, pelo menos uma vez na vida, entrar num sonho que escolhesse. Uma igreja, uma cidade, um rio, um parque, uma qualquer relíquia que entendesse única, onde pudesse rir e chorar, sobressaltar-se de espantos. Viver sem amarras, um instante que fosse.


quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A quem incomoda Ana Gomes?

 


O PS não sabe o que fazer com o descaramento de Ana Gomes. Aliás, não é só o PS. A ex-deputada já provou, várias vezes, que sabe bem no que se mete e aguenta os golpes. Os outros é que talvez não. Acho giro, compararem-na ao André Ventura. "Siamesa" daquele e "gémea" de Trump, como dizia o dr. Júdice, há umas causas atrás, provavelmente, já a pensar nas consequências dos estragos que se avizinhavam. Afinal, a mulher é “perigosa para a democracia”, uma populista de elevado calibre. E é bastante parecido, escolher como alvo do combate ao assalto dos nossos impostos as minorias de ambos os lados, os amigos da Ana Gomes e os amigos de André Ventura. São tão parecidos, os amigos, que parecem gêmeos, já que falamos de árvores ideológicas, ou lá o que é.

Também há quem lhe aponte o estilo tuiteiro. Das insinuações maldosas, das acusações implacáveis mas rudes sobre a promiscuidade entre poder político, advogados de renome, empresários; uma espécie de nojo de estimação, visceral, às negociatas pouco claras, mesmo que muito legais. E, claro, a empenhada custódia que dedicou a Rui Pinto. O caso Rui Pinto é o meu calcanhar de Aquiles, com Ana Gomes. O que Rui Pinto denunciou não pode ser, simplesmente, ignorado, mesmo tendo sido obtido de forma criminosa. Mas, o facto de ter sido obtido dessa forma também não pode deixar de ser tido em conta. Rui Pinto não é um denunciante. Ou não é apenas um denunciante. É um pirata informático, inteligente e habilíssimo, que, provavelmente, numa fase inicial, tentou lucrar em benefício próprio e que, a dada altura – por um dever de rectidão epifânico ou por conselho de um advogado que pode ser muita coisa, mas não é estúpido –, se apercebeu que o melhor seria dar um passo atrás, enquanto ainda havia alguma volta a dar à coisa. Digo eu, sem fazer ideia nenhuma de como a coisa se terá passado.

De resto, Ana Gomes tem uma carreira sólida e parece temer pouca coisa; não está disposta a trazer ao colo os donos disto tudo mais os seus descendentes; menos ainda, se desconfiar da ambiguidade do dote ou do método de distribuição de bens e o que, eventualmente, deva ao PS não é suficiente para deixar de pensar – alto e bom som – pela sua própria cabeça, como faz questão de afirmar sempre que o considera necessário. A diferença é que, no seu caso, acredita-se.

Entretanto, André Ventura já emprestou ao anúncio da sua candidatura o insulto da praxe, a ameaça da treta e a bazófia do costume. Com a elegância e a integridade que se lhe conhecem. Ana Gomes deve estar-lhe agradecida. Quando os nossos inimigos esperneiam à nossa passagem, isso é sempre bom sinal.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Desassossego

Não te vejo, e reconheço-te

Não te ouço, e adivinho-te

Não te tenho, e não te solto

Sem saber onde te guardar.


De todas as palavras, a que calas.

De todos os silêncios, o meu.

De todos os desejos, o que dói.

De todas as tardes, aquela.

De todos os pecados, o que alimento.

De todas as sombras, a tua.


Fotografia

domingo, 6 de setembro de 2020

Cidadania e coiso, que já muito se disse sobre o assunto

O meu filho revira os olhos quando lhe pergunto, pela enésima vez, afinal, de que falaram vocês e como, nas aulas de Cidadania

Sou uma daquelas mães horríveis que não sabem, sequer, a data dos testes dos miúdos. Do miúdo; só tenho um. O trabalho dos primeiríssimos anos de escola deu os frutos que plantámos com teimosia a preceito: responsabilidade e autonomia; de momento, ambas nas doses certas. Tanto que, pouco familiarizada que estava e estou – que estamos, o pai e eu – com os conteúdos dessa disciplina maldita, nem sequer sabia bem se tinham feito mais do que usar essas aulas para repor matérias de outras disciplinas. Sim, não raramente – isso, ainda vou sabendo –, as aulas dessa disciplina onde se ensaia o proselitismo e a doutrinação das nossas crianças indefesas, a mando de um Estado com tiques inquisitórios e mais um ror de desgraçadas anunciadas e abaixo-assinadas, são ocupadas por conteúdos de outras disciplinas. À partida, um sacrilégio menor.

Eu sei. Exagero na troça. Acho saudável, útil, avisado, fundamental, que haja quem se bata contra qualquer tentativa de doutrinação e/ou amordaçamento da sociedade. Mas tenho muito dificuldade em ver o monstro que os “objectores de consciência” e seus co-signatários descobriram nas áreas-temáticas da dita disciplina. Não sei se alguém se lembra das crianças. Não podem ser doutrinadas pela escola, mas podem ser doutrinadas pelos pais, será isso, supondo que isso seja melhor. E, à escola, cabe apenas o ensinamento asséptico, do que seja nada menos do que exacto, e sem margem para a dúvida, o debate, a formação do indivíduo fora dos tubos de ensaio, digo eu, logo eu, que sou uma dessas, das ciências às claras, de erros previstos, estimados e corrigidos, quando não eliminados. É isto? Depois dizem que os miúdos não sabem pensar. Também o digo, às vezes; mais quando não querem do que quando não sabem, propriamente.

Como é evidente, a causa da polémica não é a disciplina; antes, o que se possa esconder atrás de duas das tais áreas-temáticas: “educação para a igualdade de género” e “educação para a saúde e para a sexualidade”, e partindo do princípio de que a esmagadora maioria dos professores que a leccionam (normalmente, os directores de turma) estão escrupulosamente empenhados em promover uma lavagem cerebral ditada pela nova ordem social e ideológica, seja lá o que isso for, desde que pareça suficientemente mau. Parece absurdo, mas nunca fiando.

Ainda assim – e isto eu entendo – há uma diferença enorme entre falar de direitos e deveres iguais independentemente do género e ensinar esse “género” apenas como uma "construção social", por princípio, totalmente avessa (no mínimo, alheia) ao sexo biológico, só para passar ao de leve pelo primeiro desassossego. Que o género e o sexo andem de costas tão voltadas à nascença, para a esmagadora maioria da população. E acho absurda a insistência-porque-sim em que somos nós, exclusivamente, como sociedade, que determinamos o que é feminino e masculino, ou nenhum dos dois; como acho absurda a ideia de que o combate mais eficaz contra a discriminação e o abuso se atinge pela promoção à bruta e por decreto de uma teoria assente na convicção, obtusa, de que ninguém nasce com o género que lhe calhou em sorte, que é como quem diz, em sexo, e é tudo uma questão de opções pessoais. Obviamente, não me refiro aos direitos e ao respeito devidos a essas opções, e suponho que "o direito a" e "o respeito por" se ensine nessas aulas de cidadania. E respeitar não significa concordar. Nem sequer entender.

Coisa diferente é o perigo que a cidadania possa representar para os pais que consideram que, sim, as meninas até podem vestir azul desde que casem bem e não se importem de ganhar menos do que o marido a quem cabe, por dever e direito, o ónus de ser a parte bem sucedida profissionalmente do matrimónio; que os meninos podem vestir rosa mas menos e desde que sempre respeitando as dinâmicas sociais do não se pode ter tudo e, em podendo, que seja o menino; para esses, dizia, há igualdades que convém manter afastadas das doutrinas escolares destes tempos de perdição.

De resto, ainda não sei bem se o manifesto contra a obrigatoriedade da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento e a "objecção de consciência" dos pais de Famalicão são uma questão de princípio ou apenas uma birra. Um momento do género ainda-vamos-mas-é-todos-passar-a-ser-racistas-com-tanta-manifestação-anti-racista, ou lá o que era. 

Mas, isto sou só eu a falar com os meus botões, como habitualmente. Já o meu filho falou de "violência no namoro" e "interculturalidade". Lá nas aulas de cidadania. Não dei por nenhum trauma, para nenhuma das partes.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Terra queimada

 



É exactamente no que se tornou qualquer tentativa de discussão  social, política, não interessa nada, apenas uma estratégia de terra queimada. Meia dúzia de “pensadores” distribuídos pelas colunas de jornais e/ou por blogues de referência e afins entretêm-se a atirar lama uns outros. Um texto, uma linha, uma provocação, uma troca de bocas e uma matilha sebosa de comentadores que – com meia dúzia de honrosas excepções, concordando-se ou não com o que defendem (se é que ainda está permitido apreciar mesmo aqueles de quem se discorda, cretinos aparte) – se atiram, como dementes, ao osso largado pelo dono. Parece que não pode ser de outra maneira. E o logro goza do mesmo (ou maior) estatuto dos factos provados. Já ninguém quer saber de factos. Os que se atrevem a exibi-los, mesmo com sobriedade e paciência, são prontamente esmagados por batalhões em fúria.   

Os mesmos que criticam copiosamente os que estão "cheios" de certezas, incham ruidosamente em convicções próprias, enquanto troçam dos sensatos, porque, como se sabe, a sensatez, essa sim, é a maior prova de sobranceria. Ou de idiotice. Insuportável em ambas as formas. E assim se chega, salvo-seja, à comparação do que é incomparável; ou ao admirável mundo d'o-meu-traste-é-(bem)melhor-que-o-teu. Isto, em podendo comparar os trastes, porque, sim, sem pingo de ironia agora, até os mais imundos trastes podem ser incomparáveis. 

Suponho que faça tudo parte do mesmo circo. O objectivo não é encontrar pontes e pontos de entendimento, é exultar fantasmas e soltar os demónios que, por decência, jaziam no fundo fedorento dos baús até lhes terem concedido, outra vez, ordem de soltura. 

Porém, tenho aprendido a distinguir cada vez melhor entre os que apenas se divertem a atiçar o fogo e os que babam vendo a terra a arder.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

"A linguagem pode ser a chave para detectar notícias falsas?"



Página FALSA!!!, assim, em maiúsculas e com pontos de interrogação, para os mais distraídos.

Voltei a lembrar-me deste artigo depois da bronca protagonizada pela Clara de Sousa. 

Precisamente na tarde desse dia, eu tinha visto uma mensagem com a (suposta) capa do "The New York Times". Vê lá esta notícia. E eu vi. Bastou-me ler de relance a expressão "collective suicide" para pensar: impossível. Era impossível que um jornal como aquele usasse uma expressão como aquela ("suicídio colectivo"?!), na primeira página, para falar da festa do Avante!, em Portugal. 

Perguntei-lhe, isto é falso, não é?, que foi exactamente o que ele pensou quando lhe enviaram a imagem por whatsapp

Não seremos tão mais perspicazes que a redacção da SicNotícias: é que há coisas tão óbvias, melhor (ou pior) ainda, cuja veracidade é tão fácil de comprovar, que tornam qualquer gaffe associada anedoticamente embaraçosa. E, quando se trata de jornalismo que se apresenta como "de referência", é qualquer coisa de mais grave. O problema é, por vezes, estarmos tão convencidos da nossa razão que não vemos o que está mesmo debaixo do nosso nariz. Também me acontece. Se o sermão vier de fora, então, é uma excitação com traços do mais delicioso delírio. Ou talvez não, quanto ao "delicioso". Ainda me pergunto se não terão pretendido, simplesmente, pregar uma partida à Clara...

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Regressos

 



Sobressalto-me sempre que me encontro nas memórias de outros. Memórias que outros escrevem sem saberem nada de mim, nem sequer que eu existo; nem nestas páginas, nem para além delas. E, no entanto, aquele filho é o meu; sou eu, aquela mãe; já desci aquelas ruas, frequento aquelas lojas, reconheço vários daqueles actores que enchem o nosso quotidiano, aquele que partilho sem pertença nem dolo com esses desconhecidos com quem me vou cruzando num acaso virtual. Até as histórias, algumas, juro que já mas deixei contar. Sou capaz de desenterrar-me dos recantos mais áridos, das esquinas mais nuas, transportar-me inteira entre mundos remotos. Ontem mesmo vi, numa rua das nossas, bem portuguesas ainda (ainda?), uma rua de Marrocos, numa viagem de há três anos, entre Tânger e Fez, numa cidade interior onde parei para levantar dinheiro e meter gasolina. Há mais anos ainda reconheci uma rua do Porto numa rua de Praga; bastava trocar a Torre da Igreja dos Clérigos pelos pináculos da Catedral de São Vito, e a ilusão era mais que perfeita. 

Mas, por muito que se viaje, não se descobrem facilmente praias como as nossas. Talvez aquelas a que chamamos exóticas, como as Maldivas que conheço e as Maurícias que imagino, mas serão apenas acasos felizes. Mas, isto sou eu. Muito de férias e pouco de praias, dois conceitos, aliás, que nunca passaram do “primeiro estranha-se”; estranho-os sempre que os imagino juntos e junto-os, apenas, muito raramente, por acordo tácito, às vezes táctico, com o meu filho. O meu, mesmo meu, no caso. E neste caso, neste verão, foi o acordo possível.


Entretanto, vi que deixei um rol de textos por acabar. Um, sobre o que gosto de conduzir e como viajaria de carro, exclusivamente, se dependesse apenas da minha vontade. Outro, sobre a rapariga da papelaria e do esforço que fez e faz para se aguentar de portas abertas, já que não aguenta as lágrimas. Outro, ainda, sobre as aventuras de Marcelo, uma colecção do género "Anita vai às compras", ou à praia, ou a outro lado qualquer, que o Presidente é mais que Rei e a Anita, afinal, sempre foi Martine. Só não me digam que os estrunfes são smurfs, que sou capaz de me enervar. Mais.

Também tenho um texto principiado sobre as aventuras e desventuras de Rui Pinto, herói ou vilão?, e outro sobre os pais de Famalicão mais as suas objecções de consciência, mas, parece que finalmente, lá saiu, mais ou menos, a auditoria da Deloitte às contas do Novo Banco e, aparentemente, vai continuar tudo tão bem como até agora, pelo que, de momento, estou com pouca paciência. Estamos em pleno regresso às aulas e creio que a última vez que vi o ministro da Educação foi naquele magnífico evento que anunciava outro magnífico evento com que o país ia premiar os profissionais de saúde, ou lá o que era. Pelo meio, continuamos a contar contágios e mortos e a ensaiar indignações estafadas contra os males do país; previsíveis por uns, do conhecimento de muitos, encobertos por quase todos. É mais do que só nos lembrarmos de santa bárbara quando troveja; é fingir que nem sequer nos lembrávamos do que é um trovão. Mas, estou como a ministra da Cultura, não li jornais portugueses (nem outros, não por acaso) durante uma data de dias e foi óptimo, bebi uns drinques de fim de tarde e de meio da tarde também, e não gosto nada, mesmo nada, de touradas.