domingo, 27 de setembro de 2020

Diplomacias Maléficas

 

O senhor embaixador George Glass esqueceu-se das regras básicas da boa educação – coisa banal em quem comunga da cartilha do actual e inenarrável presidente dos EUA – e achou por bem disciplinar o anfitrião na sua própria casa. 

Adverte o senhor embaixador que a China não é a mesma de há 500 anos, antes “uma nova China com planos a longo prazo para acumular influência maligna através da economia, política e outros meios”. É sempre bom estarmos avisados. Os mais mal-intencionados poderiam ser levados a pensar que os EUA de agora não eram os EUA de há quatro anos e que estes novos EUA, presididos pelo amigo Trump, pretendessem acumular influências malignas através, essencialmente, de outros meios. Por exemplo, insultar rasteiramente adversários políticos, os vivos e os mortos; ensaiar esgotadas piadas machistas sempre que a crítica mete saias; apelar ao crime desde que o crime favoreça a sua retórica nojenta; vilipendiar métodos legítimos de votação de que, no passado, já fez uso sem qualquer chilique;  ou recusar-se a aceitar a derrota democrática, se essa derrota chegar, e eu espero que chegue, só para que conste.

Os EUA estão sentados sobre uma mina activada (há quem comece a dizer e à beira de uma guerra civil, e não sei se será tão estapafúrdio assim) e o embaixador George Glass sente-se suficientemente à vontade para vir ameaçar (novamente) Portugal. Se pudesse, provavelmente despedia-nos, como faz o seu presidente sempre que se sente contrariado.

A China é uma potência maligna, sim. Se não por mais (e há tanto mais!), pela infâmia dos campos de reeducação da população uigure, predominantemente muçulmana. Nesses campos – que Xi Jinping classifica como um sucesso que há-de continuar – praticam-se formas horrendas de tortura, como mulheres obrigadas a usar dispositivos intra-uterinos, quando não mesmo esterilizadas; crianças brutalmente afastadas dos pais; obrigação de comer carne de porco, cuja recusa pode resultar, inclusive, em violação como prática correctora; suspeitas de julgamentos fraudulentos, enfim, a aplicação disciplinadíssima de todos os mecanismos, legais ou ilegais, humilhantes e desumanos, como forma de ensinar o pensamento e comportamento únicos que fazem da China a China.

Obviamente – mesmo com Donald Trump na presidência há quatro longos e negros anos para a democracia americana – os EUA estão bastante longe da China de Xi Jinping. A grande questão é como estarão os EUA daqui a mais 4 anos de Trump como presidente. Infelizmente, não é um cenário completamente afastado, o que torna tudo ainda mais surreal: como que é que o partido Democrata não foi capaz, neste período, de encontrar e consolidar uma candidatura infalível, à prova de Trump e dos republicanos que lhe prestam vassalagem?

É verdade. Vários republicanos vieram a público garantir que, sim, haverá uma transição pacífica de poder, caso Joe Biden vença as eleições de Novembro próximo. Alguns são os mesmos que, em 2016, juravam que, em ano de eleições, um presidente não devia nomear um juiz para o Supremo Tribunal, e, agora, que todas as leis de Murphy parecem ter-se alinhado para garantir a Trump a derradeira cartada para afastar de vez o pandemónio político da pandemia e resgatar o trono que ameaçava escapar-lhe, agora, dizia, apressam-se a querer substituir a juíza Ruth Bader Ginsburg. Como habitualmente, as regras só são válidas quando são para ser cumpridas por outros (sim, já sei, foi mesmo só uma regra de momento, naquele momento). Percebe-se bem porquê. Estima-se um número record de eleitores a recorrer ao voto por correio e Trump tem feito o possível e o para lá de indecente para atacar esse legítimo direito dos americanos. Se Joe Biden ganhar as eleições de Novembro com uma expressiva margem por essa via, Donald Trump agitará, mais histericamente ainda, o fantasma da fraude que tratou de inventar até aí, exigirá uma decisão feita à sua medida do Supremo Tribunal e, aí chegados, contará com a obediência da maioria republicana que, nessa data, muito provavelmente, contará já com a presença de Amy Coney Barrett, o tal 6-3 com que Trump pretende manter o estatuto de um deus maior.

De modo que, no que toca a métodos maléficos, nem sequer estamos como há quatro anos, senhor embaixador.