Giorgio de Chirico, Heitor e Andrómaca
São
cicatrizes de bala, aquelas pequenas marcas aneladas no antebraço e na base da nuca. Teve sorte. É um rebelde.
Passar a noite numa cela, por desobediência, em Espanha ou em Portugal? É tranquilo.
Não imagino, nunca passei uma noite na cadeia. Não me parece nada tranquilo.
Pergunto porquê Portugal. Depois da Venezuela, Argentina, Chile, EUA, Espanha, cidadão do Mundo e de lugar nenhum, sobretudo
depois de Espanha, porquê Portugal? Portugal é mais livre.
Não
me deslumbro. Muitas vezes, essa propalada liberdade rasa o limite da
incivilidade, da imbecilidade, que os nossos brandos costumes toleram, não raras vezes, com uma
subserviência ao estrangeiro (rico, claro) capaz de me agoniar.
Sim, Portugal é um país livre. De uma liberdade muitas vezes puída, postiça, mas liberdade ainda. Se corrompida mais pelos órfãos de Salazar, ou pelo tanto que falta fazer pela paz, pelo pão, habitação, saúde e educação, não sei; mas, hoje é dia de celebração.
Não
sei bem quando é que Marcelo Rebelo de Sousa começou a irritar-me. Por altura
do beijinho na barriga da grávida, já tudo nele me saturava. E, desde aí, em pior. Agora, acho, simplesmente, que o
homem está senil. Não há outra explicação.
Ainda sobre a desobediente Maria Teresa Horta, e apenas porque referi o livro de Patrícia Reis: a leitura revelou-se, afinal, muito menos interessante do que eu antevira. Que pena. Nem sou muito de biografias, mas algumas vidas intrigam-me, interessam-me. "Quando me proíbem, incandesço". É um pensamento magnífico.
É
difícil escrever uma biografia de alguém ainda presente; mais que presente,
amiga – é o primeiro alerta da autora. O segundo, igualmente verdadeiro, Maria
Teresa Horta é a sua escrita, e, na sua escrita, a sua inimitável poesia: são uma só; conhecendo
bem a sua obra, talvez não faça falta qualquer biografia. Seguramente. A vida de Maria Teresa Horta dará um livro, mas não é este.
Tenho uma admiração quase histérica por mulheres desta fibra. Desobedecer arriscando a vida. Vida com maiúsculas, mais do que respirar e habitar um corpo, embora essa também. É curioso como tem surgido tanta gente a amesquinhar o que o 25 de Abril nos trouxe, a digladiar-se entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro, como se não fossem os dois acontecimentos construtores da Liberdade que não havia antes.
O fosso Esquerda-Direita cresce voraz, e há agora quem determine que a repressão imposta pela ditadura de Salazar era coisa quase mansa. Podia-se fazer tudo, inclusive, viajar, ao contrário do que alguns patetas para aí dizem, felizmente, temos o Observador. Talvez porque não éramos o Irão dos ayatollah, cujos esbirros perseguem e espancam até à morte as mulheres que ousam mostrar-se; a PIDE era não era tão má como a pintam e parece que havia respeito. Tenho ouvido coisas espantosas.
Sinto-me
estranha e à margem de tudo isto. Não sou dessa esquerda nem dessa direita, de trincheiras. Não preciso de uma cartilha para decidir o que me parece certo ou errado, e há certos
e errados dos dois lados da barricada. Gosto do 25 de Abril, é um dos dias em que me
reconcilio com este país falido, cujas dores tomo sempre como minhas, que me enraivece na sua mofina e a que não deixo de chamar casa.
A (des)propósito, o que é isso de Sebastião Bugalho, de repente, ser cabeça de lista da AD às eleições europeias? Ouvi Montenegro, e parecia que estava a apresentar uma mascote... não percebo. "Mas para quê, Sebastião"?.
Tarde de chuva, a península inteira a chorar
Entro numa igreja fria como
Um círio cintilante
Sentada, imóvel, fumando em frente ao altar
Silhueta, um esboço
A esfinge de um anjo fumegante
Há em mim um profano desejo a crescer
Sinto a língua morta e o latim vai mudar
Os santos do altar devem tentar compreender
O que ela faz aqui fumando?
Estará a meditar?
Ai, ui, atirem-me água benta
Ajoelho-me, benzo-me, arrependo-me
Esconjuro-a atirem-me água fria
Por ela assalto a caixa de esmolas
Atirem-me água benta
Com ela eu desço ao inferno de Dante
Atirem-me água fria
Ai, ui, atirem-me água benta
Por ela assalto a caixa de esmolas
Atirem-me água fria
Por parecer latina calculo que o nome dela
É Maria
É casta, eu sei, se é virgem ou não depende
Da vossa fantasia
Por parecer latina suponho que o nome dela
É Maria
É casta, eu sei, se é virgem ou não depende
Da vossa fantasia
A
resignação com que aceitamos não sei se a incompetência, a leviandade, o abuso,
a agenda, ou tudo isso em um, do Ministério Público é coisa que não pára de me
espantar.
Quando
José Sócrates foi detido no aeroporto de Lisboa pensei, como outros ingénuos,
que seria impossível uma acção daquelas sem uma acusação sólida, assente em
provas fumegantes: não poderia ser de outra maneira,
arriscar um passo daqueles, mesmo sabendo quão difícil é provar alguns crimes,
como os de corrupção. Passaram quase dez anos e o mais provável é Sócrates não
chegar, sequer, a ser julgado. À parte todos os expedientes jurídicos com a
intenção única de adiar, adiar, adiar, junta-se a bizarra inépcia da acusação, facilmente
desmembrada por advogados competentes, capazes de arrancar a pele à Lei. Há
crimes em risco de prescrever, claro, e com jeitinho, o Estado – ao que parece, somos nós – ainda virá a ser alvo de um pedido de indemnização capaz de
liquidar todos os empréstimos generosos do amigo Santos Silva.
Claro
que as acusações não podem ser tomadas por factos e a justiça faz-se nos
tribunais; mesmo no caso de José Sócrates, em que só os mais ingénuos entre os
mais ingénuos acreditam no era uma vez um amigo tão rico tão rico, que gostava
tanto mas tanto de mim, que, apenas por amizade e generosidade, não só financiava
todas as minhas despesas correntes e incorrentes, como me permitia uso e abuso
de apartamentos em Paris com usufruto até dos humores sobre a decoração. Veremos.
Agora,
a Operação Influencer, que fez cair um Governo, parece condenada a idêntico
fracasso. As escutas a que João Galamba esteve sujeito durante quatro (q-u-a-t-r-o)
anos, por exemplo, serviram para três juízes do Tribunal da Relação de Lisboa concluírem
que o ex-ministro das Infraestruturas pudesse estar, apenas, preocupado com o “Interesse
Nacional” (ainda lhe ficaremos a dever uma estátua). Há erros, especulação e
ruído; o que não há é indícios de favorecimento indevido do tal megaprojecto
Sines 4.0, como não há elementos que possam pesar contra António Costa, malgrado o último
parágrafo, colado com cuspo no famoso comunicado da PGR. E a tudo isto, o Presidente
da República reage com comentários quase jocosos, porque o país é a sua sala-de-estar
e a pátria tolera-lhe todas as indisposições.
Quanto
à Procuradora-Geral da República, move-se hirta e muda pelos corredores da
tragédia, com o enfado dos soberbos, como
se não tivesse a obrigação urgente de nos prestar contas.
Biografia
de Maria Teresa Horta
por Patrícia Reis
Eu também aprendi a gostar da palavra "desequilíbrio"...
“Calmly we walk through this April’s
day,
Metropolitan poetry here and there,
In the park sit pauper and rentier,
The screaming children, the
motor-car
Fugitive about us, running away,
Between the worker and the
millionaire
Number provides all distances,
It is Nineteen Thirty-Seven now,
Many great dears are taken away,
What will become of you and me
(This is the school in which we learn
...)
Besides the photo and the memory?
(... that time is the fire in which we burn.)
(This is the school in which we learn
...)
What is the self amid this blaze?
What am I now that I was then
Which I shall suffer and act again,
The theodicy I wrote in my high school
days
Restored all life from infancy,
The children shouting are bright as they
run
(This is the school in which they learn
...)
Ravished entirely in their passing play!
(... that time is the fire in which they burn.)
Avid its rush, that reeling blaze!
Where is my father and Eleanor?
Not where are they now, dead seven
years,
But what they were then?
No more? No more?
From Nineteen-Fourteen to the present
day,
Bert Spira and Rhoda consume, consume
Not where they are now (where are they
now?)
But what they were then, both beautiful;
Each minute bursts in the burning
room,
The great globe reels in the solar
fire,
Spinning the trivial and unique away.
(How all things flash! How all things
flare!)
What am I now that I was then?
May memory restore again and again
The smallest color of the smallest
day:
Time is the school in which we
learn,
Time is the fire in which we burn.”
Delmore Schwartz
Gostei
particularmente da terceira temporada e da primeira temporada. Por esta ordem.
O
país mudou, o mundo mudou, tanto e tão vertiginosamente, que é sensato
escolher a ruína a que nos entregamos. Podemos seguir as “polémicas” caseiras –
ninguém, do primeiro ao quarto poder, parece minimamente preocupado com o
estado de coisas que não sejam as suas, comezinhas –, discussões circulares,
miseravelmente estéreis, como o cão que tenta apanhar a própria cauda, do
logotipo esdrúxulo (logotipo é esdrúxulo?), ao “embuste” do IRS e de um
jornalismo sensacionalista, ávido de escândalos de alcova: é claro que Luís
Montenegro e Miranda Sarmento foram intencionalmente vagos e omissos, como é claro que quem
assinou aquela notícia do Expresso, mais o seu director João Vieira Pereira,
foram, no mínimo, de uma ingenuidade amadora e confrangedora – aquela “nota do director” é
risível.
Entretanto, Passo Coelho, barítono, unívoco, imolou o ministro do irrevogável. Com que intenção ninguém sabe. Uma pequena vingança. O recato acabou com estrondo e promete. Dá uma boa teoria da conspiração: Passos Coelho – quem sabe, umas dessas forças vivas que prometeu o colo a André Ventura – apostado em minar o terreno por onde se move a AD de Luís Montenegro, e o país em eleições lá para Novembro.
Há
um mundo a ruir. Não sobreviverá a Novembro. Donald Trump, ganhe ou não as
próximas eleições nos EUA, é o epicentro do terramoto, e não há pontos nem portos seguros. Ainda me espanta; tanto quanto a impossibilidade de os Democratas
encontrarem outro candidato a presidente. Parece que Joe Biden é o melhor, diz quem
percebe do assunto. Quem não percebe, não acredita. Mas não importa: ainda que
Biden volte a vencer, a América perecerá, e, com ela, o nosso mundo.
Acordaram a Besta, alimentaram-na. Donald Trump não vai aceitar outra derrota.
O infame 6 de Janeiro parecerá um passeio no parque. E se Donald Trump ganhar?
Como será um segundo mandato de Trump?
Israel
promete responder ao ataque do Irão. Retaliação sobre retaliação. Outra boa
teoria da conspiração. Israel vinha a enfrentar duras críticas sobre a forma
como vem dizimando o povo palestiniano em resposta ao hediondo ataque do
Hamas. O ataque do Irão, como resposta ao ataque de Israel à embaixada iraniana
em Damasco – é nisto que andamos, jogos de guerra em directo –, reconciliou os aliados
de Israel com o horror que grassa na faixa de Gaza. Tenho sentimentos
contraditórios sobre tudo isto.
E
já pouco se fala sobre a miséria da Ucrânia. Donald Trump entregá-la-á de bandeja
a Vladimir Putin, se ganhar as eleições nos EUA.
Consola-me pensar que, se tudo correr menos mal, pelo menos, viverei tempo suficiente para ver morrer alguns destes homens maus.
Uma volúpia de lucidez. Há dias em que o invejo. Saber sempre apontar o pior defeito a melhor virtude o maior medo o melhor livro. Um lema de vida, santo Deus, um lema de vida, e eu que a levo de mãos tão vazias. Serve-me, talvez, o de António-Pedro Vasconcelos, com a devida vénia: também eu desejo tudo e desejo muito, espero pouquíssimo e tento não pedir nada, mais por orgulho que por modéstia. Mas, não raras vezes, danço com o Diabo, consciente da sua malícia, de todas as tentações com que me embala, inclusive a leviandade perversa, tão doce, de crer em ti.
Fui vê-los. Era uma promessa por cumprir, e só isso teria bastado. Depois, como diz outro amigo, porque parece haver sempre qualquer coisa por descobrir. Quarenta e tal anos e, afinal, é sempre e apenas um ontem. Como reler um clássico, voltar, sim, aos lugares onde já fomos felizes, um Bolero de Ravel, amar-te todos os dias, um cardume de pássaros de guelras brilhantes nas asas, voluteando em espiral como confetti de festa.
"Gahan é uma garça a mexer-se: é ginga, gangster e bailarino, é mestre de cerimónias e sex symbol a fazer simulações provocantes, é um monstro de palco sem idade", escreveu-se. E é. E foi. E Martin Gore é outra coisa qualquer espantosa de que me lembrava pouco; lamento não me ter atrevido também a gravar o seu "Strangelove" acústico (não propriamente angélico, mas despido, e lento, e belo), mas sou do tempo do cinema sem pipocas e dos concertos sem telemóveis – quais filhos, é isto que me põe velha.
Nem sou muito destes concertos; uma mole de gente arrebanhada, aos pulos, a tresandar à vulgaridade do espectáculo de massas, comercial e afins, e, com excepção de que não pulo nem grito (pelo menos, entre desconhecidos), foi tudo fantástico. Memento Mori, e faço por não esquecer.
Ainda hei-de vê-los em Berlim, parecem-me sempre mais felizes nos concertos em Berlim.
"Meu
país desgraçado!...
E no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas ...
Meu país desgraçado!...
Por que fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?
Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
— busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.
E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.
Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!
Povo anêmico e triste,
meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!
— olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar
as que só por Amor te não desprezam!"
Sebastião da Gama
Não é a orgia de talento que ressoa pelos corredores do Prado, mas não desmerece nada do tempo que lhe entreguei.
Há uma pequena multidão (eu sei, é como o "beijinho grande") em frente às Tentações de Santo Antão, atenta às explicações (im)possíveis sobre os mistérios de Bosch, e vem-me à memória, o rapaz de barba curta e rosto de Cleópatra, unhas azuis impecavelmente pontiagudas e clutch pelo ombro, corrente dourada e fina, pasmado também diante d’ O Jardim das Delícias Terrenas, não sei se entre o Céu e o Inferno, se por amor a Deus ou ao Pecado.
do tríptico Tentações de Santo Antão, Hieronymus Bosch, MNAA
Gabriel García Márquez não queria, e lá teria as suas razões. Nem inconfundível, nem fascinante (ou nem por isso). E exuberante deve ser o que se diz quando não se quer dizer mal, porque o senhor não merece. A culpa foi dos filhos, ao que parece.
Não é mau, claro que não é mau, é Gabriel García Marquez, e um mestre há-de ser
sempre um mestre; até na autocrítica. Mas está longe de ser fantástico. Digo
eu, que faço tudo o que não se deve fazer na escrita: misturo o trigo e o joio,
complico o que por natureza é simples, adjectivo compulsivamente e, obviamente,
adverbo, muito, em modo, lugar, tempo, e tudo o resto que me apeteça mesmo sabendo que não devo.
Vou ali esbofetear-me. Ou reler Cem Anos de Solidão.
“O
surrealismo foi um convite à poesia, ao amor, à liberdade, à imaginação
pessoal. O surrealismo reuniu o romantismo, o simbolismo, o futurismo, as
tradições literárias e outras correntes, e deu-lhes um sentido. Esse sentido
não vai desaparecer, ficou explícito. Aquilo a que se chamou o surrealismo
existiu sempre.
Não
gostei da organização da exposição, mas isso importa pouco. O que importa é a
linguagem, a mensagem, a liberdade vagabunda.
O luxo que é viver em Madrid. Três magníficos museus no coração da cidade, dois
deles com duas horas diárias de entrada gratuita a todos os públicos. Pasmar
diante do Guernica de Picasso, uma experiência quase física, do arrepio
na espinha à quase náusea. Pela brutalidade; do talento, da tragédia, do colosso.
Já
não recordo a última vez antes desta que visitei o Museu do Prado, Dispensam-se
grandes adjectivos ou outros espantos pungentes, até porque serão sempre
insuficientes: aquilo é gente de conluio com o divino, não há outra explicação para que mentes e mãos humanas possam produzir arte assim. Para além
do Deus quer, o homem sonha, a obra nasce, há o Deus desceu à Terra para
encarnar no seio da Virgem Maria e se fazer, não um, mas vários homens que, por
sua obra e Graça, se tornam também sobrenaturais; à “sua imagem”, só alguns. E
algumas. Outro museu, o Thyssen-Bornemisza, rende, por estes dias (sendo que "estes dias" foram algures em Dezembro passado), homenagem a algumas dessas
pintoras eventualmente esquecidas. Artemísia Gentileschi é, talvez, das mais
conhecidas, Frida Kahlo mais actual, mas gosto especialmente de Henrietta
Browne.
Mas é o Museu do Prado que me tem perdida; é um dos meus Museus. Tudo vive, tudo vibra. O Triunfo da Morte, de Bruegel, é uma visão assombrosa, e as pinturas negras de Goya, uma descoberta curiosa. Há, claro, As Meninas de Diego Velázquez. Rubens, van Dyck, Ribera, El Greco, Jordaens, Mengs, Ticiano, Caravaggio, Rembrandt, os demónios de Bosch, uma Gioconda que talvez seja mais original que a original exposta no Louvre. Apresentam-na como uma cópia – não vulgar, mas uma cópia –, embora as duas tenham sido produzidas paralela e simultaneamente: aquela, por discípulos de Leonardo Da Vinci e terminada antes, diz a placa identificativa. São idênticas. Menos do sfumato de Leonardo, diz quem sabe. Há as cores, claro, não são exactamente as mesmas. Não se pode fotografar. Com raríssimas e desinteressantes excepções, nada no Museu do Prado se pode fotografar. Um cão de guarda em cada sala zela ferozmente pela inviolabilidade da regra, e, embora haja sempre um prevaricador, entre o ousado e o fingidor, a senhora que olha pela Mona Lisa é vigilantíssima. Nem se percebe bem, porque algumas obras transitam do Prado para o Thyssen, e no Thyssen é possível fotografar. Sem flash. Não importa. Há que ir.
O rapaz do carro preto suicidou-se. Um mês antes do Natal.
A coberto de uma ida às compras, coisa de
última hora, una lámpara de Navidad, atirou-se para a linha de
comboio. Deixara, no porta-luvas, a aliança de um casamento aparentemente
banal, o fio de ouro que trazia sempre ao pescoço e um bilhete de despedida com
um pedido de perdão. Foi naquele dia, mas poderia ter sido em qualquer outro
antes desse, ou num qualquer dia depois – faltava apenas dizer sim.
Recordo como não o via há algum tempo. Cruzávamo-nos praticamente todas essas
manhãs ditas úteis, no estacionamento comum do prédio, na saída dos miúdos para
a escola. Recordo o ar taciturno com que carregava o mundo que se
lhe fez insuportável. Nunca prestei muita atenção. É espantoso, o vazio em que
podemos viver. E os filhos, duas crianças pequenas, a quem, em cerca de cinco
anos, não dei mais do que os bons dias, naquela pressa rotineira, sem nunca
suspeitar da quase ausência de resposta, são miúdos, nem do ar demasiado sério, e
pálido, e envelhecido para tão tenra idade. Nada como o dia seguinte para fazer
bons prognósticos, como dizia aquele entendido em coisas do futebol. Há gente a
quem nem o futebol basta.
Quarenta
e quase nada de anos, que puta de vida. E o carro preto, estacionado ainda na
garagem do prédio, uma amolgadela por reparar desde que me lembro sobre a roda traseira esquerda, como um prenúncio desse outro abandono que ninguém viu
chegar.
A mulher do rapaz do carro preto parece anestesiada pela perda, que ainda não é bem dor. Conta que o marido se suicidou com a mesma secura com que diz salió a comprar la lámpara de Navidad. Pode-se viver com uma pessoa, dormir na mesma cama, rir, chorar, amar, criar filhos e cuidá-los e, ainda assim, não perceber o abismo que se abre diante de nós? A vizinha do segundo andar diz que ainda não acredita. Pois se há dias, assegura, em que parece vê-lo chegar, a recolher o correio à mesma hora, depois de ir buscar os miúdos à escola. Não é, não voltará a vê-lo, lembra-lhe a viúva como se ralhasse. Conheço o choque. Não é negação, sequer, não houve tempo. A vida de quem fica não se atrasa, não espera. O Luto, como a Morte, tem os seus caprichos.
Mas despedi-me, não foi?, que não sei quê, que não voltava, e o mundo virtual, blá, blá, blá. Parece que não fui capaz, desta vez, de apagar isto. Não sei bem se isso me basta, ou se preciso deste pequeno reduto de insanidade para melhor lidar com o outro lá fora. Além disso, são pouquíssimos os que conhecem o caminho que aqui vem dar, e, desses, menos ainda os que me importam; de modo que, o "abandono" disto, a acontecer, parece-me muito menos dramático do que há uns meses – talvez porque estes meses, de repente, me pareçam em tudo demasiado. E não é verdade absoluta que o que chega (bater na madeira para cima de um milhão de vezes) à Internet permaneça na Internet, alguns de nós ainda têm a sorte de poder zarpar sem deixar rasto.