O rapaz do carro preto suicidou-se. Um mês antes do Natal.
A coberto de uma ida às compras, coisa de
última hora, una lámpara de Navidad, atirou-se para a linha de
comboio. Deixara, no porta-luvas, a aliança de um casamento aparentemente
banal, o fio de ouro que trazia sempre ao pescoço e um bilhete de despedida com
um pedido de perdão. Foi naquele dia, mas poderia ter sido em qualquer outro
antes desse, ou num qualquer dia depois – faltava apenas dizer sim.
Recordo como não o via há algum tempo. Cruzávamo-nos praticamente todas essas
manhãs ditas úteis, no estacionamento comum do prédio, na saída dos miúdos para
a escola. Recordo o ar taciturno com que carregava o mundo que se
lhe fez insuportável. Nunca prestei muita atenção. É espantoso, o vazio em que
podemos viver. E os filhos, duas crianças pequenas, a quem, em cerca de cinco
anos, não dei mais do que os bons dias, naquela pressa rotineira, sem nunca
suspeitar da quase ausência de resposta, são miúdos, nem do ar demasiado sério, e
pálido, e envelhecido para tão tenra idade. Nada como o dia seguinte para fazer
bons prognósticos, como dizia aquele entendido em coisas do futebol. Há gente a
quem nem o futebol basta.
Quarenta
e quase nada de anos, que puta de vida. E o carro preto, estacionado ainda na
garagem do prédio, uma amolgadela por reparar desde que me lembro sobre a roda traseira esquerda, como um prenúncio desse outro abandono que ninguém viu
chegar.
A mulher do rapaz do carro preto parece anestesiada pela perda, que ainda não é bem dor. Conta que o marido se suicidou com a mesma secura com que diz salió a comprar la lámpara de Navidad. Pode-se viver com uma pessoa, dormir na mesma cama, rir, chorar, amar, criar filhos e cuidá-los e, ainda assim, não perceber o abismo que se abre diante de nós? A vizinha do segundo andar diz que ainda não acredita. Pois se há dias, assegura, em que parece vê-lo chegar, a recolher o correio à mesma hora, depois de ir buscar os miúdos à escola. Não é, não voltará a vê-lo, lembra-lhe a viúva como se ralhasse. Conheço o choque. Não é negação, sequer, não houve tempo. A vida de quem fica não se atrasa, não espera. O Luto, como a Morte, tem os seus caprichos.
Mas despedi-me, não foi?, que não sei quê, que não voltava, e o mundo virtual, blá, blá, blá. Parece que não fui capaz, desta vez, de apagar isto. Não sei bem se isso me basta, ou se preciso deste pequeno reduto de insanidade para melhor lidar com o outro lá fora. Além disso, são pouquíssimos os que conhecem o caminho que aqui vem dar, e, desses, menos ainda os que me importam; de modo que, o "abandono" disto, a acontecer, parece-me muito menos dramático do que há uns meses – talvez porque estes meses, de repente, me pareçam em tudo demasiado. E não é verdade absoluta que o que chega (bater na madeira para cima de um milhão de vezes) à Internet permaneça na Internet, alguns de nós ainda têm a sorte de poder zarpar sem deixar rasto.