segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

“Porque influenciar uma pessoa é dar-lhe a nossa própria alma. O indivíduo deixa de pensar com os seus próprios pensamentos ou de arder com as suas próprias paixões. As suas virtudes não lhe são naturais. Os seus pecados, se é que existe tal coisa, são tomados de empréstimo. Torna-se o eco de uma música alheia, o actor de um papel que não foi escrito para ele. O objectivo da vida é o desenvolvimento próprio, a total percepção da própria natureza, é para isso que cada um de nós vem ao mundo. Hoje em dia, as pessoas têm medo de si próprias. Esqueceram o maior de todos os deveres, o dever para consigo mesmas.”  

O Retrato de Dorian Gray

Oscar Wilde

domingo, 27 de fevereiro de 2022



Se tiver que escolher, escolho a original. Mas hoje quero esta.


Ucrânia

A primeira e, até agora, única vez que permaneci horas e horas plantada em frente aos canais de notícias tentando assimilar o inacreditável foi no dia 11 de Setembro de 2001. Estava em casa e liguei a televisão no momento em que um canal qualquer, já não recordo qual, mostrava imagens das torres gémeas: uma nuvem de fumo negro e uma das torres ainda intacta. Acho que havia alguém, jornalistas, com certeza, a comentar as imagens, mas, durante muito tempo, não ouvi nada. Continuei a olhar para aquele cenário estapafúrdio até surgir no écran aquele que eu ainda não sabia ser o segundo avião, aproximando-se da segunda torre. Lembro-me perfeitamente de pensar que havia qualquer coisa estranha naquela investida, naquele voo certeiro que cortou de um lado ao outro o topo da torre boa, uma estranheza que eu não soube definir imediatamente. Mas quando o meu cérebro começou, finalmente, a desentorpecer, a ouvir, tive a certeza absoluta de que aquilo não era um acidente; foi essa a sensação que me assaltou naqueles minutos, segundos, não sei, que antecederam o embate, e que só depois fui capaz de identificar: aquilo não parecia a (a)normalidade de um avião em apuros.

Depois desse acontecimento assombroso, que teria mudado o mundo para sempre, chegou-nos uma pandemia. Juraram-nos e talvez tenhamos julgado que era esse, afinal, o grande desafio do novo mundo, moderno e civilizado. E foi, para demasiada gente que viu a sua vida desabar – as vítimas nunca caem todas ao mesmo tempo. Era uma guerra. Estávamos em guerra.

Há quem nunca se canse de nos alertar para o uso indevido das palavras. Claro que não havia guerra nenhuma. É agora que estamos em guerra. Uma guerra que foi fazendo o seu caminho, antes de mais, na cabeça ensandecida de Vladimir Putin, uma loucura atrás de outra. 

Kiev resiste. Frente a uma das Forças Armadas mais poderosas de mundo, sob o comando de um déspota que convinha não provocar, fosse lá o que isso fosse, mas cuja perigosa arrogância se tornou insuportável. Ceder-lhe é abrir um caminho ainda mais obscuro para o futuro não apenas dos ucranianos. E, no entanto, não há nada de claro no resto. O êxodo trágico de milhares de pessoas, mulheres e crianças porque há coisas que nunca mudam, os homens que ficam para trás, por vontade própria ou contra ela, miúdos, o drama, a impotência dos que nada podem, o canto sinistro das sirenes como aves de mau agoiro, garagens e estações de metro convertidos em bunkers imprevistos e improvisados. Há bunkers, em Portugal?

É a resistência espantosa de Volodymyr Zelensky (com que Putin jamais contou, seguramente) que anima os ucranianos e obriga a Europa a reagir. Ouço que Elon Musk disponibiliza à Ucrânia “o melhor e mais resistente” serviço de Internet, ouço que Kiev está cercada, que a União Europeia fecha o espaço aéreo a aviões russos e que será proibida a emissão das principais televisões internacionais russas, que a Alemanha vai fornecer armas à Ucrância quebrando uma política de não envio de armas para zonas de guerra que vigorava desde o fim da Segunda Guerra Mundial, que Vladimir Putin ordenou que se activasse “em modo especial de combate” o seu arsenal nuclear. O urso encurralado joga outra cartada de risco; tal como no poker, nunca se sabe até onde vai o bluff, se é realmente bluffHá manifestações em toda a Europa. Há manifestações na Rússia contra a guerra de Putin, porque esta guerra é de Putin. E é novamente impossível desviar o olhar, pensar noutra coisa qualquer.

sábado, 26 de fevereiro de 2022



sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022



O Rosto da Guerra

"Há uma pergunta que me parece dever ser formulada e para a qual não creio que haja resposta: que motivo teria Deus para fazer o universo? Só para que num planeta pequeníssimo de uma galáxia pudesse ter nascido um animal determinado que iria ter um processo evolutivo que chegou a isto?"  

                                                                               José Saramago


Escreveu Miguel Sousa Tavares que talvez não tivesse havido invasão se tivesse sido dada a Putin a garantia de que, nem a Ucrânia nem a Geórgia, viriam a aderir à NATO, exigindo ao presidente russo, como contrapartida, esse mesmo compromisso de não invasão. Que, talvez, se tivesse havido um esforço sério de negociação do lado ocidental – crê Tavares que não houve –, não estivéssemos onde estamos hoje. E estamos hoje, é um facto assombroso, no meio de um conflito terrível, de proporções inimagináveis.

Há outros que defendem que o gatilho foi a retirada trapalhona e vergonhosa das tropas norte-americanas do Afeganistão, que Donald Trump prometeu e Joe Biden cumpriu mal. Se não fosse por isso, talvez, outra vez talvez, Putin não tivesse avançado sobre a Ucrânia.

Não sei se haverá algum método eficaz para travar a ambição megalómana, louca, de um autocrata que sabe o que quer e sabe que pode. Putin encontraria sempre o seu pretexto. Forjá-lo-ia sem remorsos, se fosse preciso. Infelizmente, não seria o único e, como é sabido, o expediente também serve, se necessário, aos maiores democratas. Certo é que ninguém sabe o que vai na cabeça Vladimir Putin e ninguém sabe onde e se se deterá o seu braço de ferro. Também não sei se importa agora saber se há outra culpa, quem é que tem mais ou menos razão. Se houvesse razão, não haveria a guerra. 

O apreço que tenho pelo João Oliveira parlamentar (em vias de deixar de o ser) é o que me leva a ignorá-lo – e ao PCP – em algumas questões maiores; nomeadamente, nas que dizem respeito à política internacional em geral e neste caso terrível em particular. De outro modo, não é possível. É de Vladimir Putin o rosto da guerra. Sem talvez.

Apanho-a a chorar num canto da escada. Um choro seco, silencioso, que se percebe apenas pelo tremer espaçado do corpo quando se deixa escapar um soluço sufocado. Conheço-o bem.

Tem uma irmã na Ucrânia e outra na Rússia. Percebo que disse à irmã que vive na Ucrânia com o marido e o filho que fugisse, que viessem para cá, mas que já não conseguiram sair, com estradas bloqueadas e aeroportos fechados. Fala mal português. Vive em Portugal com a filha e não precisa de falar português para limpar capazmente uma escada. Pergunto se posso ajudar, se quer que ligue à filha, se a levo a casa, qualquer coisa que me faça sentir menos inútil. Pede-me que reze, e não tenho coragem de lhe dizer que há muito que deixei de rezar.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Jogadas Perigosas

Tenho tentado ouvir e ler tudo o que posso e sou capaz de entender sobre o conflito que ameaça a paz na Europa.

Li os que juravam que Putin jamais se atreveria, e os que avisavam da sua loucura ambiciosa; os que gozaram com a ameaça de guerra com data marcada, como na paródia de Solnado, (como não?, eu também, imediatamente, mea culpa, quando tudo ainda me parecia demasiado absurdo e, sobretudo, longínquo), e os que desprezam com sobranceria indisfarçável e impaciente a opinião pública de José Milhazes – como se os quase quarenta anos que o jornalista viveu na Rússia fossem coisa menor, no meio de tanto esperto de trazer por casa.  

A verdade é que ninguém é capaz de perceber o que aí vem. As “tropas de manutenção de paz” e os pedidos de "ajuda militar" à Rússia por parte dos ditos líderes separatistas, face à tão providencial “agressão da Ucrânia”, são parte da mesma estratégia: como é possível acreditar que a intenção de Putin seja outra que não a de avançar sobre o território da Ucrânia, quando o próprio deixou claríssimo o que pensa sobre a independência daquele país? Paciência. A paciência é uma das grandes virtudes dos autocratas. Vejamos quem se desvia primeiro, e se sobra algo mais do que sucata. É bastante assustador.

Com a democracia portuguesa suspensa vai para quatro meses, and counting – pensar que Manuela Ferreira Leite foi quase esconjurada pela sugestão e, não tarda nada, lá se terão ido os tais seis meses, ou lá o que era – fui espreitar o andamento da crise do PP em Espanha. Pablo Casado foi eliminado numa jogada mal pensada que resultou num xeque-mate em casa própria. A quién se le ocurre, realmente? Em política, o que parece é, não é?, e, culpada ou inocente, Isabel Díaz Ayuso foi: implacável naquela conferência de imprensa. A pose para as câmaras, o compasso de espera, a indumentária, o cabelo, o discurso falsamente simples e brutalmente claro, desafiante, fatal, tudo sem um decibel ou uma melena fora de tom. Nada foi deixado ao acaso e Pablo Casado foi mordido de morte pela serpente que o próprio soltou. As novas mulheres da direita espanhola são juveniles, estilizadas, atractivas, brillantes y, sobre todo, malas, deixou escrito Almudena Grandes. O céu parece ser o limite para Ayuso; há, até, quem lhe vaticine futuro no Vox, quem sabe? Um dos motivos por que creio que o nosso Chega, vade retro, deve ser cercado sanitariamente mas não tanto reside na minha esperança de que os próximos quatro anos sirvam para expor a venturosa farsa em todo o seu podre esplendor. O Chega não chega nem perto do Vox e André Ventura é uma fraude, é uma fraude, é uma fraude. Não é nada, nada, parecido com Santiago Abascal, espero que para nossa sorte, mas já não sei nada. E, com Ayuso, podia, pelo menos, aprender como se faz. Sem berrar. Embora eu torça para que nunca lá chegue.


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022



“Onde estiveres não penses em mim. Deixa-me de todas as maneiras, as mais subtis. Tem muito cuidado com os cigarros, sobretudo não adormeças a fumar. Sinto uma paz grande que me vem pouco a pouco agarrar. Estou cansada. Vou dormir e quando acordar tu já não existirás em sítio algum dentro de mim. Juro."

 

A Noiva Judia

Pedro Paixão

 

Não é um clássico-clássico (até porque nem tem idade), como podemos dizer dos Livros-Livros ou de um quadro de Rembrandt, e no quadro de Rembrandt juram-se amores correspondidos, não o vazio dos desencontros, mas é clássico suficiente para merecer regresso e o espanto da primeira vez. 

Li, reli e sublinhei, juro que sublinhei, tudo o que deixei por sublinhar.



terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A ampla janela da biblioteca está voltada para o mar. “La mar, que é o que o povo lhe chama em espanhol, quando o ama”. Para o dorso do mar, não para o mar que se esvazia na praia, entre espasmos brancos de espuma. É o mar que parece um imenso lago de seiva metálica, ao fim da tarde, quando a tarde repousa sem sobressalto e o sol, morredoiro, varre as ondas do visível. Se não desviarmos os olhos daquela língua de água, vemos entardecer todos os tons de cinzento: a prata, o estanho, o mercúrio sedoso, denso, o chumbo baço sustentando a noite. Há noites em que a ampla janela da biblioteca se abre para a lua cheia, vestida de gala, e até o luar parece perfumado. É um bom lugar para fugir do mundo.

“E se alguém dissesse: o rei Luís cedeu a Romanha a Alexandre e o reino de Nápoles à Espanha para evitar uma guerra, – responderia, com as razões supra-referidas, que nunca se deve permitir que uma desordem siga o seu curso para evitar uma guerra, já que a ela não se foge e apenas se consegue diferi-la com própria desvantagem.”

O Príncipe

Nicolau Maquiavel

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

domingo, 20 de fevereiro de 2022



"Rogério Casanova". Who else?

Como assinante, tenho direito a oferecer até seis artigos por mês. Ofereço este. É uma interpretação abusiva do direito, eu sei, mas não passa por aqui tanta gente que ameace com atirar este meu gesto vil para a categoria de crime. É como emprestar o jornal à mesa do café. Crime, crime é correr o risco de não ler isto. E isto é um esbanjar indecente e invejável de talento; no fundo e na forma. Em ortografia da boa, que é como quem diz, daquela em que “espectáculo” e “directo” se escrevem com as belíssimas mudas da discórdia e os meses do ano em venerada e venerável letra maiúscula. Tudo como deve ser, portanto. Até o novo retrato, e o outro já era extraordinário.

 

"Os melhores espectadores do mundo

“Expulsem A Porca.” Foi este elegante apelo que o The Sun fez aos seus leitores a 3 de Julho de 2002. A “porca” em questão era uma assistente dentária de 20 anos chamada Jade Goody, concorrente da 3.ª edição do Big Brother. Era comicamente ignorante sobre geografia, tinha uma voz irritante, gritava muito, bebia em excesso, e despia-se com frequência. Depressa se percebeu que seria a figura central do programa. A mera alusão ao seu nome tornou-se piada de referência em tablóides e talk shows. Ninguém a suportava, e ninguém desviava os olhos. Numa das galas, alguém na multidão empunhou um cartaz a sugerir “Matem a porca”.

De repente, ocorreu a todos que talvez fosse melhor ter calma. Assustada com a dimensão que a coisa ganhou, a produção ajustou os resumos diários, passando a mostrá-la a uma luz mais favorável. O público arrependeu-se e adoptou-a como mascote. Jade deu entrevistas, vendeu perfumes, publicou autobiografias. Foi convidada para outro Big Brother, versão Famosos, onde se envolveu numa violenta discussão com uma actriz indiana, que insultou com epítetos racistas. A segunda tempestade mediática fez a primeira parecer uma brisa estival. Os insultos abriram telejornais. Autoridades abriram inquéritos. Patrocinadores rasgaram contratos. Manifestantes queimaram efígies. Tony Blair repreendeu-a no Parlamento. Jade internou-se numa clínica psiquiátrica. Quando saiu, foi penitenciar-se num terceiro Big Brother (na Índia). Foi lá, em directo para milhões, que soube o resultado de um exame médico: cancro no útero — do qual morreu meses depois, aos 27 anos.

Talvez seja uma estarrecedora novidade para os cidadãos preocupados que assistiram a um reality show pela primeira vez em Fevereiro de 2022, mas é isto que os reality shows são, é isto que fazem, é para isto que servem: organizar fragmentos caóticos de realidade até que obedeçam aos ritmos de um melodrama, repletos de intensidades reconhecíveis (choque, repulsa, raiva, sentimentalismo). Para ajudar, despromovem pessoas de carne e osso a uma condição semifictícia, tão pré-determinada como num auto vicentino: a Porca, a Coitadinha, o Bobo, o Mártir, o Vilão.

Não era um processo desconhecido para Bruno de Carvalho (B. de C.), muito antes de ter passado pela Venda do Pinheiro. A sua ascensão a figura pública, em Fevereiro de 2011, foi coordenada por duas forças paralelas de estereotipagem. De um lado, a agência Cunha Vaz, que assessorou a campanha de um dos adversários na corrida à presidência do Sporting. Do outro, a atrofiada retórica parafutebolística, que só tem meia dúzia de fórmulas para qualquer personagem nova, e as vai reciclando com amnésico entusiasmo (O Messias, O Aventureiro, O Papagaio Que Quer Protagonismo, etc.). B. de C. foi designado “O Novo Vale e Azevedo”, um arrivista charlatão que só queria desfalcar o clube. Para todos os efeitos, a sua imagem foi fixada naquelas semanas. Que depois, no primeiro mandato, tenha conseguido melhores resultados financeiros que década e meia de antecessores é menos um elogio à sua competência do que uma impugnação da aristocracia decrépita que governara o Sporting e o condenara ao serôdio purgatório do “saber estar” e do “clube diferente”. O que B. de C. prometia era um clube igual aos outros.

Uma insólita quantidade de pessoas decidiu, no entanto, ver nele uma anomalia no ambiente ao qual chegou, e não alguém que parecia criado em laboratório para o habitar. Eis um homem grosseiro, destravado, melindroso, megalómano, fundamentalmente esquisito, com apetite pelo confronto, e com a vigorosa presunção de quem se acha muito mais esperto do que é. Como é que se pode olhar para uma pessoa assim e não concluir que o lugar indicado para ela é precisamente o futebol português? (A única alternativa razoável seria uma qualquer autarquia remota de média dimensão, onde pudesse passar 20 anos a discursar em coretos, a triturar apparatchiki de PS ou PSD, e a ser reeleito por sucessivas maiorias.)

Mas foi aqui que o caso adquiriu uma das suas dimensões mais intrigantes. O país de José Sócrates, Alberto João Jardim, Eduardo Cabrita, Miguel Relvas, Ascenso Simões, Avelino Ferreira Torres, Mesquita Machado, Valentim Loureiro, Pinto da Costa, Luís Filipe Vieira e Pereira Cristóvão olhou para Bruno de Carvalho e exclamou a uma só voz: “Não poluas a nossa Arcádia! Nós somos melhores do que isto!”

É evidente que não, não somos. Mas, com o tempo, as balizas mudaram de sítio, e pessoas que pouco sabiam ou queriam saber sobre o futebol português dedicaram-se ao turismo metafórico. Neste e noutros jornais, os explicadores profissionais das “causas do extremismo” e dos “perigos do populismo” usaram-no como bengala para a sua arrepiante falta de imaginação, com dissertações sobre o “Trump de Alvalade” e o “Sporting Clube de Pyongyang”.

No mesmo período, um primeiro-ministro aposentou-se com 20 milhões de euros que ninguém sabe de onde vieram; outro foi à arrecadação parafutebolística repescar um candidato autárquico para orar sobre “os ciganos” e reinventar a extrema-direita; e dois presidentes de clubes grandes foram investigados por desviarem milhões dos próprios clubes. Nenhum dos casos gerou o mesmo consenso de rejeição atávica; esses e outros foram serenamente inseridos nas escaramuças sectárias habituais: defende-se a nossa equipa, ataca-se a outra equipa, faz-se silêncio, quando já não dá. B. de C., por seu lado, tornou-se cada vez menos real, um boneco onde se podiam pendurar opiniões a custo zero. Quando finalmente expurgado daquela hedionda metonímia, o futebol português ficou saudável, e os turistas puderam regressar a casa, até eclodir nova emergência.

O precocemente falecido #MeToo nacional (paz à sua alma) resumiu-se a um par de denúncias sem nome e à acusação concreta de uma jornalista a um editor — esta recebida por uma eloquente orquestra de grilos. Ao testemunho de uma mulher que garantiu ter sido vítima foi atribuído o mesmo valor que agora se atribui ao testemunho de uma mulher que garante não o ser: zero. São questões “complexas” que devem ser avaliadas por entidades “competentes”. Maquilhada por formalismos, o que esta lógica faz é privatizar: privatizar atenção, privatizar diagnósticos, e privatizar sentenças, delegando-as às convulsões emocionais de uma audiência (e a quem decide o que ela vê) — e obrigando organismos sérios e necessários a funcionar a reboque de ondas, embirrações e hashtags.

Claro que neste caso há imagens e isso faz toda a diferença. Não porque as imagens “provem” o que quer que seja, mas porque a sua mera existência acautela os direitos de quem verdadeiramente importa em toda esta situação: nós, espectadores, e a santidade das nossas opiniões. O aspecto mais transcendente desta facilidade com que identificamos à distância comportamentos manipuladores (e vítimas de manipulação que o negam ser) é a convicção implícita de que nós próprios nunca somos manipuláveis: nem por imagens televisivas, nem por escolhas editoriais, nem por acidentes biográficos, nem por deformações profissionais. Acima de tudo, nunca estamos sujeitos à automanipulação: aquela que opera em função das nossas vontades secretas, das nossas pulsões inconscientes, dos nossos ódios de estimação, dos nossos excessos de confiança, das opiniões que queremos ter, e das que herdámos sem sequer dar conta. Tudo isso pode acontecer aos outros, mas não a nós. Como poderia? Somos os melhores espectadores do mundo. Os nossos instintos são infalíveis, as nossas conclusões são inerrantes — e a nossa única e imparcial motivação é a justiça. É só por isso, aliás, que passamos tanto tempo a olhar para ecrãs."

sábado, 19 de fevereiro de 2022



sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022



quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

De "Vergonha Nacional" em "Vergonha Nacional"




A propósito de outro escândalo – o da saga do voto dos emigrantes – já tudo ou quase tudo foi dito. Uma mistura de amadorismo, terceiro-mundismo, provincianismo, incredibilismo, e mais que me ocorre e invento, mas não posso dizer. Haveremos de reflectir, analisar, aprender, corrigir e evitar; enfim, retirar uma série de ilações muito inúteis no futuro, que parece ser o que sabemos fazer melhor.

De momento, há: uma ilegalidade, um acordo de cavalheiros que acabou em desacordo não sei se também porque já não há cavalheiros, um Governo adiado pela decisão do Tribunal Constitucional e para espanto do Presidente da República, e um partido sem representação parlamentar que fez o trabalho que caberia a outros. 

Diz o senhor Presidente que é a democracia a funcionar, e é capaz de ter razão. A democracia portuguesa parece funcionar sempre a meio-gás; e pagamo-la mais cara também.

Azul, Azul

 



Pertenço àquele género de gente que raramente (um raramente a ameaçar um nunca, que só não digo ou não escrevo porque nunca e sempre são estados de ser e de estar que se devem, e talvez agora usasse um sempre, evitar) é capaz de recordar o que sonha. Enquanto durmo, pelo menos.

Estou razoavelmente segura de que alguma ciência explicará esta minha incapacidade crónica, mas receio procurá-la. A explicação. Não me apetece correr o risco de descobrir-me menos interessante ainda do que possam pintar-me outros olhares e o meu próprio, e um pequeno pedaço de ilusão (não sei se) nunca fez mal a ninguém.

Não interessa nada.

Certo, certo é que, mesmo sem recordar os sonhos – ou sem sonhá-los de todo –, algum resto de inconsciência deve permanecer vivo; vívido. Deve ser o que explica, por exemplo, por que há músicas que não me largam o dia inteiro, mesmo que já nem recorde a última vez.


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

É mais do que o privilégio do encontro. É um caminho que se escreve na pele e não sara; e que não quero largar, mesmo sabendo que não é meu.

Dos Escândalos

Chego atrasada ao último, como me acontece tantas vezes. Além disso, a primeira vez que o ouvi foi pela voz da extremamente desagradável Joana Marques, e o humor há-de ser sempre humor: mesmo que, por vezes, retrate fielmente a realidade, é preciso ir mais fundo na questão quando a questão merece. Não fui; não sei se merece.

Não percebi se a anormalidade da coisa não será a coisa em si: um programa pensado para obter o máximo de audiências explorando o conflito mais esgotado e rasteiro entre semelhantes, onde todas as fragilidades são exaltadas, devassadas, em nome dizem que do entretenimento; e grande parte do entretenimento desespera, sofregamente, pelo emergir da injúria: quanto mais indecente melhor.

Mas, no que toca a escândalos, houve coisas piores nos últimos dias. Com a agravante de terem sido transmitidas como notícias, e não como um subproduto do divertimento. A saber, a cobertura jornalística dispensada ao socorro do menino marroquino – que acabou na tragédia que se sabe –, ou ao estranho caso do atentado que não chegou a sê-lo.

Para que não se pense que sou uma criatura insensível sem cura nem alento:

A violência sobre mulheres e crianças é o crime dos crimes, de onde eu vejo os crimes. É aquele crime que me faria vacilar na rejeição à pena de morte. Se fosse uma pergunta de sim ou não. O crime para o qual desejo que, a existir um Inferno para lá da morte, venha devidamente equipado do tal lugar especial, não necessariamente para mulheres que tratam mal outras mulheres, mas para todo o género de não-gente capaz de se fazer valer do seu lugar de poder para destruir e humilhar.

Do atentado e evitado. Acho admirável – acho mesmo admirável – o trabalho da Polícia Judiciária; ter sido capaz de localizar um suspeito com base na informação que, entretanto, se tornou pública e, com isso, ter impedido um eventual "ataque". O que se diria se a PJ não tivesse "neutralizado" a ameaça de ameaça, na posse daquela informação. É tudo depois disso que se me faz incompreensível, da entrevista ao avó do desgraçado rapaz, à quantidade de especialistas que vários canais de informação – da apregoadamente séria, responsável, enfim, um sem fim de banalidades sem verdade, na verdade  podem parir, em horário nobre, menos nobre e assim-assim.

E há o escândalo da água que sobra em Paços de Ferreira, onde os comerciantes desperdiçam água  – "deitam-na fora", deitam-na mesmo fora – para não serem obrigados a pagar uma tarifa máxima de saneamento. É mais que um escândalo, é um crime, outro crime, que, aparentemente, importa pouco a todas as partes.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022



Não podendo tocá-la, perdia-se a adivinhá-la, os olhos nus descendo seguros sobre a pele suave e pálida dela. E ela, fingindo-se ausente, deixava-se tocar.

“Um clássico é um livro que nunca acaba de dizer o que tem para dizer.”

Italo Calvino

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

“Quem no mundo ama o próximo não faz nem mais nem menos mal do que aquele que no mundo se ama a si mesmo. Só restaria a questão de saber se o primeiro caso é possível.”

Franz Kafka

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022


 

Morder o Anzol

A nova polémica à volta do Chega era previsível e é cansativa. E perigosa, porque corremos o risco de ver Governo e a Oposição que sobra a morder o anzol de todas as vezes e durante os próximos quatro anos, embora por motivos diferentes.

O Chega está, como sempre esteve, apostado em criar fumo com ou sem fogo, de modo a cumprir a sua agenda cada vez mais arrojada: o que a Democracia uniu, a Democracia há-de ser capaz de separar, espero, mas, até lá, trata-se de uma vontade legitimada. Infelizmente.

Ao PS, o fumo interessa porque ensombra e distrai, porque desvia e entretém, e, no entretém, a Comunicação Social esgadanha-se por dar cartas também, na guerra aberta das audiências e shares e outras coisas que tais mas que já não sei dizer.

A "vice-presidência da Assembleia da República" era coisa bastante mais simples: o Chega propunha – e, seguramente, propôs com propósito, antecipando o repasto guloso –, o Parlamento votava e Diogo Pacheco Amorim não passava. Não seria inédito: uma eleição é uma eleição é uma eleição. O Chega talvez propusesse outro nome e outro nome e outro nome, o Parlamento não elegia não elegia não elegia, não sei se mais de três vezes ou menos de três vezes, até que, finalmente, a mesa da Assembleia da República se constituísse sem representação do Partido de André Ventura. Vitória vitória, acabava-se ali a história. Mas não. Claro que não. E, se nada mudar, adivinham-se quatro magníficos anos.

Outra coisa diferente é a decisão de António Costa de receber os “representantes da sociedade civil” excluindo o Chega dessa agenda. Isso sim, já me parece pouco inteligente, e jamais saberei expressar com a elegância devida o que eu desprezo tudo o que pretendem representar André Ventura e os seus discípulos, e de como gostaria tê-los visto a eles desaparecer.


“Eu sou a Maria das Dores, aquela que ninguém vê.


Nunca tinha lido nada de Paulina Chiziane. Em bom rigor, continuo quase na mesma, porque ainda vou a meio do primeiro livro que lhe comecei a ler. Portanto, ainda não li. E foi este livro como podia ter sido outro qualquer, foi o primeiro que vi na montra, porque tinha mais curiosidade pela escritora do que pelo escrito. Mas escolhi bem, mesmo não tenho escolhido de todo. O Alegre Canto da Perdiz é duro, é cru, é belo, é provocativo e desconcertante, é simples e complexo, é dor, é fome, é sobrevivência. É amor, sexo e resistência. É quase perverso.


"Sony World Photography awards 2022"

 


"Kazi Arifuzzaman: Untitled – Bangladesh, winner"



"Amal Prasad: Struggle of Life – Qatar, winner"

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

A funcionária dos correios fala com o corpo todo. Move-se em gestos redondos, amplos e graciosos, como uma bailarina ensaiando novas poses, novos passos. Quero protestar e zangar-me porque está a demorar-me demasiado – já tentou imprimir duas vezes os papéis que me há-de entregar, o eterno peço desculpa, o sistema está em baixo, coisa que, ali, parece ser comum nas manhãs de segunda-feira –, mas não me atrevo. Fico só a vê-la dançar, enquanto espero, os papéis como abanicos, movendo o ar em espirais.



Também sou de caminhos vazios. Da saudade imperfeita. Da luz inquieta, modulada em silêncios densos. Sitiados. Sou da lua cheia e da lua em quarto crescente. Do luar em metamorfose. Sou da chuva que chove em gotas graves e cheias, apressadas, e da chuva que chove alinhada e lenta em finos fios de renda. Tracejados. Sou do tempo esgotado que ameaça ruir como castelos de cartas, e do tempo suspenso em labirintos de pó e de letras, na mudez iludente das páginas que não morrem. Sou do tempo que me perde e do tempo que te encontra.

sábado, 5 de fevereiro de 2022


 

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Disse Chico Buarque – talvez com pouca paciência para alimentar um novo capítulo desse feminismo ofegoso e insaciável na busca de culpados sabe-se lá de quê exactamente – que deixará de cantar “Com Açucar, Com Afecto”. Que a própria Nara deixaria de cantar, se fosse viva, essa canção infame de mulher resignada e mal-amada. Não faço ideia, nem andava por cá no tempo em que Nara Leão pediu a Chico Buarque que lhe escrevesse uma canção sobre desamores tão indignos.

Em contrapartida, desconfio que, nestas coisas dos blogues, só nos tornamos realmente importantes (como se não procurássemos outra coisa) quando gente seríssima, elevadíssima, impoluta, dessa gente inteligente que sabe sempre estar dizer e pensar, perde parte do seu preciosíssimo tempo, não só a ler blogues humilíssimos e desinteressantes como este, como a enviar-nos mensagens onde se condena e repudia a superioridade moral que, afiançam, nunca, mas nunca, se outorgam, nem mesmo quando julgam (que sabem) da moral – e da vida – alheia. Descansem em paz. E ouçam música. Mesmo da proibida.



quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Auto da Barca do Inferno

A propósito da celebração do Dia Mundial da Leitura em Voz Alta (mentira: nem me lembrei, para não variar, que existe e foi há dois dias um dia mundial da leitura em voz alta), fui recuperar uma leitura em voz alta de parte do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. O meu filho leu-o, e “deu-o”, no ano lectivo passado – continua a fazer parte do programa de Português do 9º ano –, e chegava a casa maravilhado com aquilo. Este ano, é uma das minhas afilhadas de coração a deslumbrada. Em parte, pelos “palavrões”, inevitavelmente, e pela liberdade infantil de os pronunciarem em voz alta, na leitura sem censura (parto do desejo, não necessariamente do princípio, com assumida ingenuidade, que nenhum dos dois diz palavrões em voz alta noutro contexto qualquer). E poderia ser só, mas creio que é mais. É preciso algum talento para ler em voz alta o Auto da Barca do Inferno. Devia ser tentado, saboreado, pelo menos, uma vez.



quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

“Penso que a coisa que mais alívio nos traz, neste mundo, seja a incapacidade da mente humana em correlacionar todos os seus conhecimentos.

Vivemos numa plácida ilha de ignorância, no meio de mares negros de infinito, e não nos foram destinadas longínquas viagens. As ciências, cada uma tentando defender a sua posição, prejudicaram-nos pouco até agora; mas um dia, a união de conhecimentos dissociados irá revelar-nos perspectivas tão terríveis da realidade, e da nossa assustadora posição nela, que enlouqueceremos devido a essa revelação, ou fugiremos dessa luz fatal para a paz e segurança de uma nova idade das trevas.”

O Despertar do Cthulhu

Howard Phillips Lovecraft

Com fantásticas ilustrações de François Barranger

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022



Liberté Egalité Fraternité

Há dois, três, quatro anos, já não sei, não é importante, passava de carro numa estrada, vinda já não sei bem de onde, e vi uma mota parada e um homem deitado no chão. Parecia caído e, naquele momento, demasiado quieto. Era noite não demasiado noite, creio que passava pouco das dez, mas estava bastante escuro. O homem e a sua mota estavam quase na curva que eu acabara de descrever, por isso, parei mais à frente, liguei os quatro piscas e, ao sair do carro, ia já de telemóvel na mão, a ligar para o número de emergência. Atenderam-me quase imediatamente. Um homem, também. Já não me lembro do rumo exacto da conversa, mas sei que, enquanto me apressava para chegar ao sítio onde estava o homem caído, já tinha falado dele ao outro e dado já indicações de onde estava. Tudo demasiado rápido, mas o meu interlocutor percebeu. Estava escuro, já disse, e foi só quando cheguei mesmo junto do local que percebi que o homem que eu julgava caído não estava caído: estava deitado no chão, um pouco de lado, a ver qualquer coisa debaixo da mota. Ainda ao telefone, esclareci que, afinal, tinha sido um mal-entendido, e senti-me completamente idiota, enquanto pedia desculpa aos dois. Preparava-me para desligar quando o homem ao telefone me perguntou se eu estava sozinha. Respondi que sim. Disse-me para voltar para o carro e não desligar o telefone enquanto não estivesse lá dentro, e foi quando percebi que podia ter sido ainda mais idiota.


Lembrei-me disto a propósito da notícia sobre a morte de um homem numa movimentada rua de Paris, depois de ter permanecido caído no chão dizem que durante nove horas. Morreu de frio e, acusou um amigo, de indiferença. É-me indiferente se era ou não era um fotógrafo famoso. E se alguém que leia isto julga que eu me sinto moralmente superior a essa gente, um a um, uma a uma, que passou por um homem caído no chão e foi incapaz de fazer o que eu fiz, ah, sim, eu sinto-me moralmente superior a essa gente, um a um, uma a uma, que passou por um homem caído no chão e foi incapaz de fazer o que eu fiz. E uma das minhas grandes angústias é pensar que, se tivesse pensado muito, fosse também eu capaz de passar por alguém caído no chão e ser incapaz de voltar a fazer o que fiz. Pensar que o homem do outro lado da linha podia ter, simplesmente, desligado o telefone, caso tivesse sido eu a precisar de ajuda.

Não sei quando é que nos tornámos tão indiferentes ao sofrimento do Outro. Ou se foi sempre assim e a pandemia veio apenas despir-nos e mostrar-nos o pior que há em cada um de nós.


Ontem, na Sic Notícias, vi uma reportagem sobre os homens e mulheres que vendem um rim - 1500 dólares por orgão no caso das mulheres: o rim de uma mulher vale menos do que o rim de um homem - para poderem sobreviver. A seguir, vendem os filhos. No Afeganistão. 


Há algo de demasiado doentio nisto tudo.