Como
assinante, tenho direito a oferecer até seis artigos por mês. Ofereço este. É
uma interpretação abusiva do direito, eu sei, mas não passa por aqui tanta
gente que ameace com atirar este meu gesto vil para a categoria de crime. É como emprestar o jornal à mesa do café. Crime, crime é correr
o risco de não ler isto. E isto é um esbanjar indecente e invejável de talento; no fundo e na forma. Em ortografia da boa, que é como quem diz, daquela
em que “espectáculo” e “directo” se escrevem com as belíssimas mudas da discórdia e os
meses do ano em venerada e venerável letra maiúscula. Tudo como deve ser, portanto. Até o novo
retrato, e o outro já era extraordinário.
"Os melhores espectadores do mundo
“Expulsem
A Porca.” Foi este elegante apelo que o The Sun fez aos seus leitores a
3 de Julho de 2002. A “porca” em questão era uma assistente dentária de 20 anos
chamada Jade Goody, concorrente da 3.ª edição do Big Brother. Era comicamente
ignorante sobre geografia, tinha uma voz irritante, gritava muito, bebia em
excesso, e despia-se com frequência. Depressa se percebeu que seria a figura
central do programa. A mera alusão ao seu nome tornou-se piada de referência em
tablóides e talk shows. Ninguém a suportava, e ninguém desviava os
olhos. Numa das galas, alguém na multidão empunhou um cartaz a sugerir “Matem a
porca”.
De
repente, ocorreu a todos que talvez fosse melhor ter calma. Assustada com a
dimensão que a coisa ganhou, a produção ajustou os resumos diários, passando a
mostrá-la a uma luz mais favorável. O público arrependeu-se e adoptou-a como
mascote. Jade deu entrevistas, vendeu perfumes, publicou autobiografias. Foi
convidada para outro Big Brother, versão Famosos, onde se envolveu numa
violenta discussão com uma actriz indiana, que insultou com epítetos racistas.
A segunda tempestade mediática fez a primeira parecer uma brisa estival. Os
insultos abriram telejornais. Autoridades abriram inquéritos. Patrocinadores
rasgaram contratos. Manifestantes queimaram efígies. Tony Blair repreendeu-a no
Parlamento. Jade internou-se numa clínica psiquiátrica. Quando saiu, foi
penitenciar-se num terceiro Big Brother (na Índia). Foi lá, em directo para
milhões, que soube o resultado de um exame médico: cancro no útero — do qual
morreu meses depois, aos 27 anos.
Talvez
seja uma estarrecedora novidade para os cidadãos preocupados que assistiram a
um reality show pela primeira vez em Fevereiro de 2022, mas é isto que
os reality shows são, é isto que fazem, é para isto que servem:
organizar fragmentos caóticos de realidade até que obedeçam aos ritmos de um
melodrama, repletos de intensidades reconhecíveis (choque, repulsa, raiva,
sentimentalismo). Para ajudar, despromovem pessoas de carne e osso a uma
condição semifictícia, tão pré-determinada como num auto vicentino: a Porca, a
Coitadinha, o Bobo, o Mártir, o Vilão.
Não
era um processo desconhecido para Bruno de Carvalho (B. de C.), muito antes de
ter passado pela Venda do Pinheiro. A sua ascensão a figura pública, em
Fevereiro de 2011, foi coordenada por duas forças paralelas de estereotipagem.
De um lado, a agência Cunha Vaz, que assessorou a campanha de um dos
adversários na corrida à presidência do Sporting. Do outro, a atrofiada
retórica parafutebolística, que só tem meia dúzia de fórmulas para qualquer
personagem nova, e as vai reciclando com amnésico entusiasmo (O Messias, O
Aventureiro, O Papagaio Que Quer Protagonismo, etc.). B. de C. foi designado “O
Novo Vale e Azevedo”, um arrivista charlatão que só queria desfalcar o clube.
Para todos os efeitos, a sua imagem foi fixada naquelas semanas. Que depois, no
primeiro mandato, tenha conseguido melhores resultados financeiros que década e
meia de antecessores é menos um elogio à sua competência do que uma impugnação
da aristocracia decrépita que governara o Sporting e o condenara ao serôdio
purgatório do “saber estar” e do “clube diferente”. O que B. de C. prometia era
um clube igual aos outros.
Uma
insólita quantidade de pessoas decidiu, no entanto, ver nele uma anomalia no
ambiente ao qual chegou, e não alguém que parecia criado em laboratório para o
habitar. Eis um homem grosseiro, destravado, melindroso, megalómano, fundamentalmente
esquisito, com apetite pelo confronto, e com a vigorosa presunção de quem se
acha muito mais esperto do que é. Como é que se pode olhar para uma pessoa
assim e não concluir que o lugar indicado para ela é precisamente o
futebol português? (A única alternativa razoável seria uma qualquer autarquia
remota de média dimensão, onde pudesse passar 20 anos a discursar em coretos, a
triturar apparatchiki de PS ou PSD, e a ser reeleito por sucessivas
maiorias.)
Mas
foi aqui que o caso adquiriu uma das suas dimensões mais intrigantes. O país de
José Sócrates, Alberto João Jardim, Eduardo Cabrita, Miguel Relvas, Ascenso
Simões, Avelino Ferreira Torres, Mesquita Machado, Valentim Loureiro, Pinto da
Costa, Luís Filipe Vieira e Pereira Cristóvão olhou para Bruno de Carvalho e
exclamou a uma só voz: “Não poluas a nossa Arcádia! Nós somos melhores do que
isto!”
É
evidente que não, não somos. Mas, com o tempo, as balizas mudaram de sítio, e
pessoas que pouco sabiam ou queriam saber sobre o futebol português dedicaram-se
ao turismo metafórico. Neste e noutros jornais, os explicadores profissionais
das “causas do extremismo” e dos “perigos do populismo” usaram-no como bengala
para a sua arrepiante falta de imaginação, com dissertações sobre o “Trump de
Alvalade” e o “Sporting Clube de Pyongyang”.
No
mesmo período, um primeiro-ministro aposentou-se com 20 milhões de euros que
ninguém sabe de onde vieram; outro foi à arrecadação parafutebolística repescar
um candidato autárquico para orar sobre “os ciganos” e reinventar a extrema-direita;
e dois presidentes de clubes grandes foram investigados por desviarem milhões
dos próprios clubes. Nenhum dos casos gerou o mesmo consenso de rejeição
atávica; esses e outros foram serenamente inseridos nas escaramuças sectárias
habituais: defende-se a nossa equipa, ataca-se a outra equipa, faz-se silêncio,
quando já não dá. B. de C., por seu lado, tornou-se cada vez menos real, um
boneco onde se podiam pendurar opiniões a custo zero. Quando finalmente
expurgado daquela hedionda metonímia, o futebol português ficou saudável, e os
turistas puderam regressar a casa, até eclodir nova emergência.
O
precocemente falecido #MeToo nacional (paz à sua alma) resumiu-se a um par de
denúncias sem nome e à acusação concreta de uma jornalista a um editor
— esta recebida por uma eloquente orquestra de grilos. Ao testemunho de uma
mulher que garantiu ter sido vítima foi atribuído o mesmo valor que agora se
atribui ao testemunho de uma mulher que garante não o ser: zero. São questões
“complexas” que devem ser avaliadas por entidades “competentes”. Maquilhada por
formalismos, o que esta lógica faz é privatizar: privatizar atenção,
privatizar diagnósticos, e privatizar sentenças, delegando-as às convulsões
emocionais de uma audiência (e a quem decide o que ela vê) — e obrigando
organismos sérios e necessários a funcionar a reboque de ondas, embirrações e hashtags.
Claro
que neste caso há imagens e isso faz toda a diferença. Não porque as imagens
“provem” o que quer que seja, mas porque a sua mera existência acautela os
direitos de quem verdadeiramente importa em toda esta situação: nós,
espectadores, e a santidade das nossas opiniões. O aspecto mais transcendente
desta facilidade com que identificamos à distância comportamentos manipuladores
(e vítimas de manipulação que o negam ser) é a convicção implícita de que nós
próprios nunca somos manipuláveis: nem por imagens televisivas, nem por
escolhas editoriais, nem por acidentes biográficos, nem por deformações
profissionais. Acima de tudo, nunca estamos sujeitos à automanipulação: aquela
que opera em função das nossas vontades secretas, das nossas pulsões
inconscientes, dos nossos ódios de estimação, dos nossos excessos de confiança,
das opiniões que queremos ter, e das que herdámos sem sequer dar conta. Tudo
isso pode acontecer aos outros, mas não a nós. Como poderia? Somos os
melhores espectadores do mundo. Os nossos instintos são infalíveis, as nossas
conclusões são inerrantes — e a nossa única e imparcial motivação é a justiça.
É só por isso, aliás, que passamos tanto tempo a olhar para ecrãs."