terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Liberté Egalité Fraternité

Há dois, três, quatro anos, já não sei, não é importante, passava de carro numa estrada, vinda já não sei bem de onde, e vi uma mota parada e um homem deitado no chão. Parecia caído e, naquele momento, demasiado quieto. Era noite não demasiado noite, creio que passava pouco das dez, mas estava bastante escuro. O homem e a sua mota estavam quase na curva que eu acabara de descrever, por isso, parei mais à frente, liguei os quatro piscas e, ao sair do carro, ia já de telemóvel na mão, a ligar para o número de emergência. Atenderam-me quase imediatamente. Um homem, também. Já não me lembro do rumo exacto da conversa, mas sei que, enquanto me apressava para chegar ao sítio onde estava o homem caído, já tinha falado dele ao outro e dado já indicações de onde estava. Tudo demasiado rápido, mas o meu interlocutor percebeu. Estava escuro, já disse, e foi só quando cheguei mesmo junto do local que percebi que o homem que eu julgava caído não estava caído: estava deitado no chão, um pouco de lado, a ver qualquer coisa debaixo da mota. Ainda ao telefone, esclareci que, afinal, tinha sido um mal-entendido, e senti-me completamente idiota, enquanto pedia desculpa aos dois. Preparava-me para desligar quando o homem ao telefone me perguntou se eu estava sozinha. Respondi que sim. Disse-me para voltar para o carro e não desligar o telefone enquanto não estivesse lá dentro, e foi quando percebi que podia ter sido ainda mais idiota.


Lembrei-me disto a propósito da notícia sobre a morte de um homem numa movimentada rua de Paris, depois de ter permanecido caído no chão dizem que durante nove horas. Morreu de frio e, acusou um amigo, de indiferença. É-me indiferente se era ou não era um fotógrafo famoso. E se alguém que leia isto julga que eu me sinto moralmente superior a essa gente, um a um, uma a uma, que passou por um homem caído no chão e foi incapaz de fazer o que eu fiz, ah, sim, eu sinto-me moralmente superior a essa gente, um a um, uma a uma, que passou por um homem caído no chão e foi incapaz de fazer o que eu fiz. E uma das minhas grandes angústias é pensar que, se tivesse pensado muito, fosse também eu capaz de passar por alguém caído no chão e ser incapaz de voltar a fazer o que fiz. Pensar que o homem do outro lado da linha podia ter, simplesmente, desligado o telefone, caso tivesse sido eu a precisar de ajuda.

Não sei quando é que nos tornámos tão indiferentes ao sofrimento do Outro. Ou se foi sempre assim e a pandemia veio apenas despir-nos e mostrar-nos o pior que há em cada um de nós.


Ontem, na Sic Notícias, vi uma reportagem sobre os homens e mulheres que vendem um rim - 1500 dólares por orgão no caso das mulheres: o rim de uma mulher vale menos do que o rim de um homem - para poderem sobreviver. A seguir, vendem os filhos. No Afeganistão. 


Há algo de demasiado doentio nisto tudo.