Há
dois, três, quatro anos, já não sei, não é importante, passava de carro numa
estrada, vinda já não sei bem de onde, e vi uma mota parada e um homem
deitado no chão. Parecia caído e, naquele momento, demasiado quieto. Era noite
não demasiado noite, creio que passava pouco das dez, mas estava bastante
escuro. O homem e a sua mota estavam quase na curva que eu acabara de
descrever, por isso, parei mais à frente, liguei os quatro piscas e, ao sair do carro, ia já de telemóvel na mão, a ligar para o número de emergência.
Atenderam-me quase imediatamente. Um homem, também. Já não me lembro do rumo
exacto da conversa, mas sei que, enquanto me apressava para chegar ao sítio onde estava o homem caído, já tinha falado dele ao
outro e dado já indicações de onde estava. Tudo demasiado rápido, mas o meu
interlocutor percebeu. Estava escuro, já disse, e foi só quando cheguei mesmo
junto do local que percebi que o homem que eu julgava caído não estava caído:
estava deitado no chão, um pouco de lado, a ver qualquer coisa debaixo da mota.
Ainda ao telefone, esclareci que, afinal, tinha sido um mal-entendido, e
senti-me completamente idiota, enquanto pedia desculpa aos dois. Preparava-me
para desligar quando o homem ao telefone me perguntou se eu estava sozinha.
Respondi que sim. Disse-me para voltar para o carro e não desligar o telefone
enquanto não estivesse lá dentro, e foi quando percebi que podia ter sido ainda
mais idiota.
Lembrei-me disto a propósito da notícia sobre a morte de um homem numa movimentada rua de Paris, depois de ter permanecido caído no chão dizem que durante nove horas. Morreu de frio e, acusou um amigo, de indiferença. É-me indiferente se era ou não era um fotógrafo famoso. E se alguém que leia isto julga que eu me sinto moralmente superior a essa gente, um a um, uma a uma, que passou por um homem caído no chão e foi incapaz de fazer o que eu fiz, ah, sim, eu sinto-me moralmente superior a essa gente, um a um, uma a uma, que passou por um homem caído no chão e foi incapaz de fazer o que eu fiz. E uma das minhas grandes angústias é pensar que, se tivesse pensado muito, fosse também eu capaz de passar por alguém caído no chão e ser incapaz de voltar a fazer o que fiz. Pensar que o homem do outro lado da linha podia ter, simplesmente, desligado o telefone, caso tivesse sido eu a precisar de ajuda.
Não sei quando é que nos tornámos
tão indiferentes ao sofrimento do Outro. Ou se foi sempre assim e a pandemia
veio apenas despir-nos e mostrar-nos o pior que há em cada um de nós.
Ontem, na Sic Notícias, vi uma reportagem sobre os homens e mulheres que vendem um rim - 1500 dólares por orgão no caso das mulheres: o rim de uma mulher vale menos do que o rim de um homem - para poderem sobreviver. A seguir, vendem os filhos. No Afeganistão.
Há algo de demasiado doentio nisto tudo.