quinta-feira, 31 de dezembro de 2020
Não tenho resoluções de ano novo. Um ano é uma imensidão de tempo, independentemente da forma como o medimos, pelo que, nunca sou capaz de dizer “que ano magnífico!” nem, ao contrário, que “ano horrível!” foi este que acabou agora mesmo. Esforço-me por dispor felicidades (e desgostos) uma-a-uma, peça-a-peça, como numa construção de legos. Só saberei se valeu a pena quando chegar ao fim e, para isso, preciso de mais do que um ano, ainda assim; preciso de uma vida, e ainda não acabei.
Tenham, então, uma boa vida, mais do que um bom ano.
Aquele pedacinho de texto, escrevi-o há cerca de um ano. Começava 2020, passavam uns dias desde que o Papa Francisco se irritara com uma "devota" demasiado devota e lhe dera uma palmada na mão, e eu tinha acabado de ver "Dois Papas", de Fernando Meirelles.
A esta distância, parece uma premonição. Aquela espécie de mensagem de Ano Novo. É muitas vezes assim. As coisas assumem uma outra dimensão, quando o contexto muda dramaticamente.
Trago-a para aqui. A mensagem. Porque me parece que se aplica melhor ainda este ano, prestes a começar.
quarta-feira, 30 de dezembro de 2020
Bela Croácia
Notas mais ou menos pandémicas
Depois de dez penosos
e longuíssimos meses da pornografia telediária dos números de infectados e
mortos por, de, com covid-19, travestida de notícias angelicamente
servidas e seguidas de sermão dominical pelos pivôs de referência nos canais da
mesma, chegou agora a vez dos números dos tomadores da vacina com direito a
directos pungentes, com e sem camisa, e mais uma procissão de egrégios especialistas
a debitar conjuros sobre o passado, o presente e o futuro. Sem esquecer um outro
número, de um outro circo. Parece que a PSP e a GNR se desentenderam (que novidade!) sobre quem
recaía a glória de transportar as vacinas d’aqui-ali, não percebi bem de onde para onde, nem me
apeteceu confirmar. Perdi-me na extravagância da cena. Portuguesa, com certeza.
Seria só ridículo, não fossem estes tempos estes tempos. Menos mal, que, até ao momento, nos livrámos do exagero de aplicar cinco doses da vacina de uma só vez, a uma mesma pessoa. Ou a oito. O que seria.
Ainda assim, bendita Ciência, que nos permitiu chegar até aqui. Acho imensa graça aos descrentes porque sim, não vá a mole confundi-los com a ovelhinha do presépio. Há ovelhinha no presépio, por falar nisso? Na dúvida, antes acreditar na senhora que lê a mão, do que na mão que forjou a vacina, que até a língua pode ser traiçoeira. E o elogio da dúvida – fundamental para o avanço da Ciência, note-se – tem servido suculentas análises de pensamento alternativo baseado no terror de se pertencer a esse bando desprezível de gente que decide ouvir falar de saúde quem percebe de saúde e, pasme-se!, fazer-lhes caso, em vez de dar ouvidos a livre-pensadores de outra área qualquer – não interessa qual desde que se duvide, muito, sempre e sob qualquer pretexto, como fazem os avisados. Palermas. Os outros.
Entretanto, faltam dois dias, mais coisa menos coisa, para acabar este ano medonho. Para muitos, a vida deu uma volta de 180º, para outros, nem tanto. E, para um grupo restrito de gente, a vida até melhorou. É quase sempre assim, a vida é um magnífico acaso, nem sempre fácil de contrariar. Para nós, os que nascemos do lado certo do mundo, não é fácil pormo-nos na pele daqueles que nunca deixaram de viver nas profundezas do inferno. Podemos ensaiar a nossa aflição pelo infortúnio alheio em prosas semi-sentidas de solidariedade e pesar, mas saberá sempre um pouco a fraude; um interlúdio inconsequente que se alterna de forma mais ou menos elegante com a partilha de experiências mais mundanas, muito primeiromundista mundanas, entre deleites gastronómicos, gulosos, viagens ao redor deste nosso mundo e desse outro, e uma pitadinha de arreliado desdém por quem não se preocupa com as coisas e causas certas. Digo eu, que tenho nas viagens e na boa gastronomia dois dos meus maiores luxos. E, como se não bastasse, padeço, igualmente, de tempos a tempos, em pequeníssimos intervalos, dessa mania soberba de achar que tenho lições de moral para distribuir pelos outros. Por isso mesmo, fujo dos santos.
Por falar em moral, também me escandalizei com as imagens dos animais abatidos na Herdade da Torre Bela. Não sei se posso. Afinal, gosto de comer carne, não gosto de caça mas sei disparar e, para cúmulo, tenho um cão. De estimação. Por tudo isso e o mais que tenho lido, não estou habilitada a sentir-me enojada com o que ali se passou. Valha-me, ao menos, aquela outra imagem das duas crianças com a cara untada de sangue, uma forma de baptismo, dizem, a que o orgulho soez dos progenitores não terá resistido.
Como
há manchas e manchas e não há quem não goste de ficar bem na fotografia, mesmo
na mais ignóbil, mesmo naquela que, por vergonha afinal, se apaga, monta-se, agora uma romaria de penitentes enjeitando culpas, gritando inocência, desconhecimento, violação disto
e daquilo, como se o grupo armado tivesse tomado o terreno de assalto, à
socapa, por sua conta e risco.
Ainda uma nota – muitas notas,
na verdade – para a TAP, noutro modo de maldizer. Há (há?) uma restruturação em
curso e um plano dramático de corte de salários para evitar, segundo o ministro
Pedro Nuno Santos, um número maior de despedimentos. Não há muito tempo, em
entrevista a José Gomes Ferreira e João Vieira Pereira, Pedro Nuno Santos justificava-se,
em parte, com o “exagero” (não o disse exactamente assim) dos salários auferidos
pelos pilotos da nossa, mesmo nossa, companhia aérea. Mas, hoje, ou ontem, ficámos a
saber que nunca é demais duplicar alguns salários. De alguns administradores. A crise, quando chega, nunca
é para todos. Por pressão ou por vergonha (parece que foi mesmo por pressão), Miguel Frasquilho terá abdicado da sua estrondosa subida salarial. Restam os outros.
E ainda há o Brexit. Finalmente, o Brexit. Mas não vi pormenores. Não sei se Boris Johnson conseguiu a desejada proeza de livrar o Reino ainda Unido das maçadas da outra União, sem largar os benefícios de dela fazer parte. Alguém se lembra do outro senhor, o tal Nigel Farage?
E Trump continua no seu estertor de morte. Estraçalhando democraticamente tudo o que puder, enquanto puder. Apelando ainda (ainda?!) à rebelião, entre partidas de golfe.
E morreu Pierre Cardin. Não que a sua morte me tenha sensibilizado mais do que outras mortes que nem cheguei a referir. Mas gosto de boas histórias. De boas memórias. De boas conversas. Não sendo bem uma conversa estas linhas que aqui vou deixando, dá-se o caso de me ler mais gente do que imaginava, quando decidi transladar-me para este canto. Aos que por aqui se perdem, obrigada pelo vosso tempo. “Bom Ano Novo” não sei se será a expressão mais adequada, neste fim de ano em particular. Ou, pelo contrário, talvez seja este, precisamente, o tempo em que esse voto faça mais sentido. O mundo, esse, continuará alheio à nossa vontade.
domingo, 27 de dezembro de 2020
Em jeito de não-balanço
Este costuma ser o
tempo de “passar o ano em revista”. Ir atrás no tempo e enumerar os momentos
marcantes do ano que está prestes a terminar. Raramente (acho que “nunca” é o
termo correcto) o faço, mas, este ano, quase pensei abrir uma excepção. Ia
começar pelas fotografias que mais me marcaram, a reboque da pandemia. As primeiras
ruas desertas, a praça de São Pedro, imensa e vazia e o Papa Francisco na sua
extraordinária celebração Urbi et Orbi, quando alguns achavam que tinha
chegado o momento em a Humanidade se faria Una, acudindo ao próximo, amando-o,
finalmente, como a si mesmo, esquecendo as diferenças e unindo esforços,
sacrifícios, em volta de um bem comum. Estávamos em Março e no mesmo barco, não
era? Como os mal-afortunados passageiros do admirável Titanic. Mas, já nessa
altura, o Papa Francisco lembrava que ninguém se salva sozinho e evocava as
“pessoas comuns”, fora do espectáculo mediático, dos médicos e enfermeiros, às
pessoas que nos recolhem o lixo. Provavelmente, antevendo o que a pandemia
deixaria a nu quando nos despisse do sentimentalismo de pechisbeque; esse que
levava tanta gente ao pranto fácil, emocionadíssima com o sinal que o Universo – ou
Deus, depois do filho – nos tinha enviado, para nos salvar de nós mesmos. Há
muito que deixei de acreditar nesse Deus, mas ainda acredito em algumas dessas
pessoas comuns. E, se ainda alguém for capaz de me recolocar no caminho da fé,
há-de ser o Papa Francisco. Com todos os seus defeitos.
Entretanto, desisti.
Do tal compêndio. O das fotografias que marcaram o ano. Descobri que ainda não
consigo suportar muitas delas. Doem-me aqueles abraços feitos de plástico
asséptico. O rosto dos velhos atrás dos acrílicos, vendo os filhos e os netos à distância adequada, que se quer limpa e segura. O cansaço vincado nos rostos dos que lutam para
salvar vidas. O desespero dos que perderam tanto. As lágrimas dos lutos
despedaçados pelo distanciamento que se diz físico, mas é muito para além disso. Quando tudo isto passar – porque há-de passar –, haveremos de contar estas
e outras histórias e não sei se o balanço nos salvará dos pecados que fomos
cometendo, ou dos que deixámos que fossem cometidos, nesta tentativa de
conciliar liberdades individuais com o direito à saúde; entre este e a
sustentabilidade de uma economia permanentemente a soro, no nosso caso, ora de mão estendida à
esmola do Estado e às bazucas da UE, ora de mão no bolso dos nossos impostos, para acudir a todos os desvarios de um país confortavelmente pobre e entregue a uma "elite" apodrecida, com a bênção de todos.
Por falar em liberdades individuais, vem-me à memória um acontecimento perfeitamente banal. Há uns meses – que, a esta distância feita de pandemia e confinamentos, mais me parecem anos, de cansaço acumulado –, na esplanada de um restaurante relativamente conhecido na zona onde vivo, um casal de idosos almoçava numa mesa afastada da minha por uma outra mesa. Nessa outra mesa, almoçava um amoroso e jovem casal, aparentemente, desses jovens muito tímidos, com receio de incomodar a própria sombra. Ao contrário do casal de idosos, sem pejo algum em incomodar quem quer que fosse. E, neste jogo esvaziado de forças, o velho da primeira mesa fumava, despreocupadamente, o seu prepotente cigarro, de rosto voltado para a segunda mesa. O fumo espesso e revolto, travesso, assim liberto também das amarras da boa educação e do bom-senso, ia fazendo o seu caminho sobre a relativamente curta (nesse tempo) distância entre as duas mesas, acabando o malcheiroso alvoroço mesmo em cima da esmerada tábua de queijos e enchidos que o casal jovem escolhera para dar início à refeição. Era tão obscena a cena que estive a menos de nada de meter eu própria o nariz onde não era chamada; e, quando me lembro dela, ainda me arrependo de não o ter feito. Parece um exagero. Estapafúrdio e presunçoso. O que não falta, afinal, são exemplos de gente que se está nas tintas para os outros – quais outros, então não sou só eu?, como diz uma amiga minha, em modo de maldizer – e o que é proibido é fumar no interior, não no exterior. Mas é daquelas coisas que só visto, como também é comum dizer-se. O caso é que aquela imagem do idoso expelindo toda a sua liberdade cavernícola sobre o direito daquele outro casal a usufruir da sua refeição intencionalmente prazerosa (pelo menos, a princípio), tem-me surgido como um modesto – e desajeitado, admito – retrato de um conflito maior entre direitos e liberdades que a pandemia veio exaltar, muitas vezes, da pior forma possível, confundindo um dever de solidariedade com uma suposta subserviência de manada (dizem) e a obediência à Ciência com a adulação que (não!) se deve às seitas.
E, por falar em Ciência, apesar de todas as contrariedades deste annus horribilis, 2020 termina com uma pequena dose de esperança. Injectável, em duas tomas, contrariando todas as expectativas pré-anunciadas e a clarividência da Raquel Varela. Ao contrário do nu (salvo seja) de Marcelo Rebelo de Sousa, animou-me (salvo seja outra vez) este nu de António Sarmento. A vacina é um pequeno passo, mas é um passo importante. Um passo que se espera que possa também chegar aos países mais pobres.
Escolho uma fotografia, afinal. Para imagem de marca deste 2020. Não será a melhor, mas escolho-a, ainda assim.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2020
domingo, 20 de dezembro de 2020
sábado, 19 de dezembro de 2020
sexta-feira, 18 de dezembro de 2020
Como dizia eu, um destes dias...
..sobre a relação Twitter vs políticos.
Talvez a culpa não seja, de facto, do Twitter. Inacreditável...
quinta-feira, 17 de dezembro de 2020
Os olhos dele esbarram nos meus, por momentos. Pelos olhos, essa forma não nova de comunicação que a nova forma de comunicação veio exaltar, adivinho-lhe o sorriso que a máscara esconde e creio que lho devolvo. O sorriso. Cordiais, ambos. O corredor é estreito, não caberíamos os dois mesmo que o distanciamento físico não fosse o novo normal (não se pode dizer, já sei; e há um distanciamento físico que sempre cultivei, ainda a pandemia não era pandemia, e outro distanciamento físico a que não há pandemia que me obrigue), e ele desvia-se para me deixar passar. A mulher que o acompanha abespinha-se, atira-lhe um resmungo ressequido, és tão simpático para toda a gente, só para mim nunca és tão simpático, ou qualquer coisa assim, e fico a pensar se a culpa de todas as misérias que nos atormentam a alma é deste ano mafarrico, ou se 2020 é só a desculpa ideal para alguns dos nossos desacertos mais sombrios.
“Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer.”
Fernando Pessoa, “Livro do Desassossego”.
De quando em quando, preciso de me
lembrar disto. Só assim sobrevivo à avidez da perfeição alienada com que se
entopem os novos dias de moralismos exacerbados, tão torpes e inúteis quanto maltrapilhos,
senão mesmo postiços. Só assim me livro (livro?) do mesmo pecado.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2020
Mais que miseráveis
Começava na historieta idiota do vencimento das
crónicas de Eduardo Lourenço. Se fosse necessária uma metáfora sobre a
ligeireza mole com que se produzem especialistas em série, sobre tudo e nada e
mais alguma coisa, para directos sobre directos sobre directos
reproduzidos ad nauseam sobre um mesmo acontecimento, seria
essa; um verdadeiro espanto. Depois, foi aquele magnífico momento querido, encolhe-te
mais um bocadinho até desapareceres e levares contigo o que sobra de um outrora
respeitado partido político, esse que nem sequer sei a que pertences porque te
vejo trocado. Por um segundo, fiquei na dúvida se o “trocado” teria que ver
com a ameaça de desfalecimento provocado pela fraqueza do corpo e da alma, ou
se era mesmo trocado, trocado, isto é, trocado o Chicão a prazo por um líder
partidário a sério. A sério, foi demasiado penoso. Nunca é boa política
metermo-nos com cretinos se não soubermos estar à altura do desaforo. Mas não
sei se pode chamar cretino ao chef. Ou é chefe? Adiante.
A seguir (ou antes, já não recordo
cronologia exacta) foi a Ana Gomes e a rábula das vacinas, farmacêuticas,
reservas, empresas, amigos e afins. Já não é a primeira vez que o penso, digo e
escrevo, como se também isso valesse de muito: gente com responsabilidade
política – pelo menos essa – devia ser proibida de ter contas em redes sociais.
Principalmente no Twitter. Aquilo deve ter lá qualquer coisa que
deixa os utilizadores em modo embaciado, ou assim. Há quem diga que o problema
não é o meio, virtual ou não virtual; um imbecil é um imbecil é um imbecil, coisa que Ana Gomes não é, e a virtualidade da outra coisa não tem nada que
ver com a (des)virtualidade do carácter. Pois, talvez seja…Também não acho que
seja a ocasião a fazer o ladrão, mas é possível que o ladrão nunca chegasse a
sair do esgoto se a ocasião não se lhe apresentasse descaradamente a cada
tremeluzir de consciência.
Depois, foi outro Rodrigues dos Santos a
levantar poeira. Não vi a entrevista. Contaram-me, e fui espreitar o pedaço da
polémica. O problema deste Rodrigues dos Santos, o José, já não é não haver
livros que ele não goste de ler e, portanto, tenha decidido escrever uns de que goste mais. É
ter-se intoxicado de si mesmo, de vaidade em causa e cousa própria. Acontece
aos melhores e ele acha-se dois melhores: um no jornalismo e
outro na escrita. Dois amores que amalgamou de forma brilhante numa imbatível
fórmula de sucesso, mesmo que já não haja grande segredo quanto aos
ingredientes da dita. É como a Coca-Cola: 90% de água ou mais e a ameaça de
êxtase sobre as papilas gustativas de outros 90% da população mundial, ou lá o
que é, que não fui confirmar. E não pertenço a essa estatística, seja ela qual
for, porque abomino o sabor daquilo, em qualquer circunstância e/ou ocasião,
embora não possa dizer exactamente o mesmo dos livros de José Rodrigues dos
Santos: li alguns e gostei. Sacrilégio. Redimo-me desprezando-o, de algum tempo
a esta parte, como jornalista. Também há quem me diga que o contrário seria
mais inteligente. Mas a maioria desses bebe coca-cola. Além disso, quantos
escritores – péssimos que sejam – são capazes de escrever àquele ritmo? Claro
que há uma certa batota: misturar factos com ficção fingindo, com ou sem
intenção, um conhecimento (sobre alguns temas) que, na verdade, é bastante mais
modesto, o que pode baralhar os mais inocentes. Isto tudo para dizer que, sim,
é, no mínimo, idiota conseguir olhar humanitariamente para
aquele “e porque não com gás?”, mas, talvez o objectivo do baile tenha sido,
mais uma vez, cumprido.
E, no meio de tanto ruído, ouviu-se,
finalmente, o grito de horror, entre o nojo, a indecência, e a vergonha. Os
contornos do dantesco episódio que culminou com o bárbaro assassínio de Ihor Homeniuk às
mãos de uns rufias sebentos e cobardes, em representação do Estado
Português – de todos nós, portanto – deixa uma mancha difícil de
carregar. Quanto mais se atenta nos detalhes macabros, mais insuportável é
olhar para Marcelo, Costa e Cabrita, ouvi-los nas suas explicações patéticas,
retorcidas, totalmente desprovidas de decência. Uns fantoches. Uns fantoches,
todos, da esquerda à direita. Nunca tive tanto desprezo pela nossa classe
política. O silêncio ensurdecedor, cúmplice, pelo menos, com a indiferença que
mereceu a descoberta da tragédia, deu, agora, lugar a um miserável discurso que
tresanda à mediocridade engalanada desta classe de “servidores públicos” que
pouco servem, afinal, apesar da empoeirada pompa e circunstância que gostam de
esbanjar. E, Eduardo Cabrita, mesmo tresandando a podre, é bem capaz de se aguentar no cesto
do Governo, ao colo do amigo Costa. Há quem não se incomode em servir de
estandarte mesmo das causas mais abjectas. Deve ser o caso. O outro, é a terrível
desconfiança de que o terror a que Ihor foi sujeito não seja um acto isolado,
mas uma prática tão comum quanto ilegal, hedionda, cujo desfecho, mais porrada menos
porrada, acabaria como acabou. É quase inevitável, quando um ou mais rufias sem
escrúpulos gozam do poder de intimidar pela força bruta aliado à sensação de
impunidade que vai crescendo e escalando até ser demasiado tarde para voltar atrás.
Agora, é um ror de gente a apontar dedos – porque eu disse e vós não dissestes, porque eu escrevi e vós não escrevestes, porque eu me indignei a tempo e vós indignastes-vos a reboque de modas e redes e obediências saloias. E, claro, a comparação inevitável com o alvoroço que provocou a morte de Floyd nos EUA, como se – folclores à parte e da parte dos histéricos habituais, que fique claro – não fosse entendível (sei bem que a palavra é horrível, neste contexto) ainda que não desculpável, que uma morte a que se assiste quase em directo, pelo mundo inteiro, pudesse causar mais comoção. No imediato. Pelo poder impactante da imagem. Mesmo que a violência dessa morte não tenha comparação com a violência da tortura e morte de Ihor Homeniuk. Supondo que a morte seja comparável, dentro das circunstâncias arrepiantes em que ocorreram ambas. Com excepção das jornalistas que não largaram este crime medonho, não há muito mais quem possa encher-se de brios (como se fosse essa a questão) e atirar pedras.
quarta-feira, 9 de dezembro de 2020
Ihor Homeniuk. Tudo nesta história me causa asco. E vergonha.
"Esta semana, ficámos a saber que foram instalados, nos quartos do EECIT do
Aeroporto de Lisboa, botões de pânico. A sua
ativação fica registada, assim como o motivo. O alarme soa na portaria, onde
estão inspetores do SEF e seguranças. Ou é uma confissão de incapacidade de
impor o respeito pelos direitos humanos em instalações do Estado, ou uma
inutilidade. Se fosse para proteger alguém, o botão não evitaria o que
aconteceu a Ihor Homeniuk. Porque a cumplicidade de muitos inspetores demonstra
que não foram uns insubordinados a ir longe demais. Porque ele não foi
espancado no seu quarto, mas numa sala sem câmaras (que obviamente não teria
botão algum). Porque,
algemado, não é fácil pressionar num botão."
sexta-feira, 4 de dezembro de 2020
Do fundo do tempo
O homem do bazar
pergunta-me se falo árabe. É um daqueles velhos sem idade, apesar das rugas do
tempo marcadas no rosto moreno.
Não falo. Conheço
meia dúzia de expressões curtas, de cortesia, que aprendi a pronunciar
irrepreensivelmente e que, naquela fracção ínfima de tempo que dura um encontro casual, criam a brevíssima
ilusão de que posso manter a conversa nessa cacofonia de sílabas. Não posso. Um
dos arrependimentos que guardo desse tempo, é o de nunca me ter decidido por
aprender a língua. A estranheza dos sons – em forte contraste com a grafia galante
– afastaram-me da vontade de saber falá-la e, estupidamente, menosprezei o
privilégio de aprender com a gente, todos os dias, na rua, nas compras, no
banco, nas filas para pagar serviços, quando para pagar serviços não havia outra forma a não ser fazendo filas; separadas por género, no caso. Mas, o som arranhado, estalado, uma espécie de ralho permanente até
nas palavras que falam de amor, desencantou-me irremediavelmente. Fui bastante
idiota. Talvez venha a redimir-me um dia.
Numa das outras
línguas que por ali se falam, confesso ao homem o meu desalento, o difícil que
é aprender árabe. Ele sorri-me um sorriso cheio, generoso e limpo, e confirma:
o árabe pode ser bastante difícil de aprender, para um estrangeiro.
Da rua chegam outros
sons. O som timbrado a pequenas marteladas que os artesãos arrancam às peças de
metal disformes, de onde hão-de sair belas peças de latão e cobre: facas,
caçarolas, espadas decorativas, vasos, candeeiros de parede em variadas formas
geométricas, colossais, em tons baços ou brilhantes, magníficas todas elas.
Só há homens a bater
a chapa, sentados no chão ou em pequenos bancos de madeira trôpegos, nas bordas
dos passeios, nos degraus das lojas atulhadas de tralha; como a língua, um
outro aparente caos no meio do qual apenas eles se entendem. Uns vestem trajes
típicos e usam até o tradicional tarbush. Outros vestem ocidentalmente,
jeans e malhas correntes ou t-shirts e bonés de pala larga. Alguns traçam
circunferências de largo diâmetro, com o auxílio de compassos de ferro, toscos
mas precisos, razoavelmente, que erguem à altura do ombro, desde o colo onde deixam pousar as
lâminas de metal. Perco-me por uma peça daquelas. Hei-de regateá-la, como
convém, mais logo, ao fim do dia, sabendo que pagarei sempre mais do qualquer
um dos locais, mas que isso também faz parte do jogo. Desde que não nos pareça indecoroso, para nenhuma das partes, é esse o preço justo do negócio.
No bazar, há um pequeno
terraço sobranceiro à rua, onde nos podemos sentar e tomar o famoso chá de
hortelã (e menta, às vezes) cujo cheiro insuportavelmente doce me deixa sempre
uma sensação de enjoo. Nunca fui apreciadora de chá. Amargo e preto, muito raramente. Prefiro
o café, mesmo que haja poucos lugares nos mundos que eu conheço onde se possa
tomar o café como eu gosto; como o nosso.
Sento-me num dos bancos corridos, de almofadado gasto, debruçada sobre a rua. As batidas metálicas vibram,
frenéticas, num compasso sem maestro, embalando os passos dos que passam, o ar extasiado
do bairro num voluptuoso festim de fim de tarde. É quase uma trégua depois das tinturarias,
do labor desconcertante dos curtidores, do seu odor lancinante, da azáfama dos seus
homens e crianças (rapazes, todos) que mergulham até à anca, empurrando com as
pernas as peles de vaca, cabra, carneiro, para dentro dos tanques quase cheios,
ora brancos-cal de mistelas liquefeitas à base de excremento de pombo, ora vibrantes
de cores, vorazes como a ancestral sina dos seus artesãos.
A rapariga traz-me o
café. Pergunta-me se quero provar aquele doce típico, de farinha de trigo e amêndoa,
aromatizado com açafrão e anis estrelado, e mais umas quantas coisas a que não presto a atenção devida. Acabaram de chegar, os doces, e ainda estão mornos. Agradeço,
mas recuso delicadamente. Fico a vê-la afastar-se, belíssima na sua túnica
larga e longa, no mesmo laranja pálido do açafrão da terra.
Em baixo, na rua, as sombras mudam de pouso e calam-se alguns acordes. Devo ir ao encontro dos outros. E quero um daqueles candeeiros de parede. Dourado, estampado num círculo quase perfeito, de malha rendada e fina, como num delicado crochet.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2020
O maravilhoso mundo do marketing...ou não
Parece que o mais recente top de vendas da Amazon na categoria "Ciência Política" é um livro sobre Matteo Salvini, escrito por um analista político que ninguém sabe bem quem é. E escrito é menos do que uma força de expressão: tirando as palavras da capa, são 110 páginas vazias, com excepção de um traçado de linhas paralelas, onde cada um poderá escrever o que lhe apetecer. Eventualmente. Dizem que, quem compra, sabe ao que vai e que o best-seller já ultrapassou em vendas "Uma Terra Prometida", o livro de memórias presidenciais de Barak Obama. Vá lá saber-se porquê, lembrei-me daquele café em Tel Aviv que servia nada, literalmente, tudo com a devida elegância, evidentemente, porque o que conta é a experiência, ou lá o que é.
Fico sempre pasmada com o que somos capazes de fazer com o cérebro mais avançado que a vida tal como a conhecemos foi capaz de criar. O que esta malta se deve divertir...