domingo, 27 de dezembro de 2020

Em jeito de não-balanço

Este costuma ser o tempo de “passar o ano em revista”. Ir atrás no tempo e enumerar os momentos marcantes do ano que está prestes a terminar. Raramente (acho que “nunca” é o termo correcto) o faço, mas, este ano, quase pensei abrir uma excepção. Ia começar pelas fotografias que mais me marcaram, a reboque da pandemia. As primeiras ruas desertas, a praça de São Pedro, imensa e vazia e o Papa Francisco na sua extraordinária celebração Urbi et Orbi, quando alguns achavam que tinha chegado o momento em a Humanidade se faria Una, acudindo ao próximo, amando-o, finalmente, como a si mesmo, esquecendo as diferenças e unindo esforços, sacrifícios, em volta de um bem comum. Estávamos em Março e no mesmo barco, não era? Como os mal-afortunados passageiros do admirável Titanic. Mas, já nessa altura, o Papa Francisco lembrava que ninguém se salva sozinho e evocava as “pessoas comuns”, fora do espectáculo mediático, dos médicos e enfermeiros, às pessoas que nos recolhem o lixo. Provavelmente, antevendo o que a pandemia deixaria a nu quando nos despisse do sentimentalismo de pechisbeque; esse que levava tanta gente ao pranto fácil, emocionadíssima com o sinal que o Universo – ou Deus, depois do filho – nos tinha enviado, para nos salvar de nós mesmos. Há muito que deixei de acreditar nesse Deus, mas ainda acredito em algumas dessas pessoas comuns. E, se ainda alguém for capaz de me recolocar no caminho da fé, há-de ser o Papa Francisco. Com todos os seus defeitos.

Entretanto, desisti. Do tal compêndio. O das fotografias que marcaram o ano. Descobri que ainda não consigo suportar muitas delas. Doem-me aqueles abraços feitos de plástico asséptico. O rosto dos velhos atrás dos acrílicos, vendo os filhos e os netos à distância adequada, que se quer limpa e segura. O cansaço vincado nos rostos dos que lutam para salvar vidas. O desespero dos que perderam tanto. As lágrimas dos lutos despedaçados pelo distanciamento que se diz físico, mas é muito para além disso. Quando tudo isto passar – porque há-de passar –, haveremos de contar estas e outras histórias e não sei se o balanço nos salvará dos pecados que fomos cometendo, ou dos que deixámos que fossem cometidos, nesta tentativa de conciliar liberdades individuais com o direito à saúde; entre este e a sustentabilidade de uma economia permanentemente a soro, no nosso caso, ora de mão estendida à esmola do Estado e às bazucas da UE, ora de mão no bolso dos nossos impostos, para acudir a todos os desvarios de um país confortavelmente pobre e entregue a uma "elite" apodrecida, com a bênção de todos.

Por falar em liberdades individuais, vem-me à memória um acontecimento perfeitamente banal. Há uns meses – que, a esta distância feita de pandemia e confinamentos, mais  me parecem anos, de cansaço acumulado –, na esplanada de um restaurante relativamente conhecido na zona onde vivo, um casal de idosos almoçava numa mesa afastada da minha por uma outra mesa. Nessa outra mesa, almoçava um amoroso e jovem casal, aparentemente, desses jovens muito tímidos, com receio de incomodar a própria sombra. Ao contrário do casal de idosos, sem pejo algum em incomodar quem quer que fosse. E, neste jogo esvaziado de forças, o velho da primeira mesa fumava, despreocupadamente, o seu prepotente cigarro, de rosto voltado para a segunda mesa. O fumo espesso e revolto, travesso, assim liberto também das amarras da boa educação e do bom-senso, ia fazendo o seu caminho sobre a relativamente curta (nesse tempo) distância entre as duas mesas, acabando o malcheiroso alvoroço mesmo em cima da esmerada tábua de queijos e enchidos que o casal jovem escolhera para dar início à refeição. Era tão obscena a cena que estive a menos de nada de meter eu própria o nariz onde não era chamada; e, quando me lembro dela, ainda me arrependo de não o ter feito. Parece um exagero. Estapafúrdio e presunçoso. O que não falta, afinal, são exemplos de gente que se está nas tintas para os outros – quais outros, então não sou só eu?, como diz uma amiga minha, em modo de maldizer – e o que é proibido é fumar no interior, não no exterior. Mas é daquelas coisas que só visto, como também é comum dizer-se. O caso é que aquela imagem do idoso expelindo toda a sua liberdade cavernícola sobre o direito daquele outro casal a usufruir da sua refeição intencionalmente prazerosa (pelo menos, a princípio), tem-me surgido como um modesto – e desajeitado, admito – retrato de um conflito maior entre direitos e liberdades que a pandemia veio exaltar, muitas vezes, da pior forma possível, confundindo um dever de solidariedade com uma suposta subserviência de manada (dizem) e a obediência à Ciência com a adulação que (não!) se deve às seitas.


E, por falar em Ciência, apesar de todas as contrariedades deste annus horribilis, 2020 termina com uma pequena dose de esperança. Injectável, em duas tomas, contrariando todas as expectativas pré-anunciadas e a clarividência da Raquel Varela. Ao contrário do nu (salvo seja) de Marcelo Rebelo de Sousa, animou-me (salvo seja outra vez) este nu de António Sarmento. A vacina é um pequeno passo, mas é um passo importante. Um passo que se espera que possa também chegar aos países mais pobres


Escolho uma fotografia, afinal. Para imagem de marca deste 2020. Não será a melhor, mas escolho-a, ainda assim.

LUSA/ José Coelho


Ah, e lá acabei por ver "Gambito de Dama". A tal série sobre xadrez que não é sobre xadrez e que, se não fosse pela Anya Taylor-Joy, seria outra coisa qualquer. Gostei bastante. Da Anya também. Além disso, tem o tamanho certo: 6 ou 7 episódios. Não tenho paciência para mais. Mesmo assim, parte da minha disposição para tal jornada adveio da falta do sossego de que fui dispondo para ler. Da ausência do silêncio de que preciso e que me tem faltado.