quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Notas mais ou menos pandémicas

Depois de dez penosos e longuíssimos meses da pornografia telediária dos números de infectados e mortos por, de, com covid-19, travestida de notícias angelicamente servidas e seguidas de sermão dominical pelos pivôs de referência nos canais da mesma, chegou agora a vez dos números dos tomadores da vacina com direito a directos pungentes, com e sem camisa, e mais uma procissão de egrégios especialistas a debitar conjuros sobre o passado, o presente e o futuro. Sem esquecer um outro número, de um outro circo. Parece que a PSP e a GNR se desentenderam (que novidade!) sobre quem recaía a glória de transportar as vacinas d’aqui-ali, não percebi bem de onde para onde, nem me apeteceu confirmar. Perdi-me na extravagância da cena. Portuguesa, com certeza. Seria só ridículo, não fossem estes tempos estes tempos. Menos mal, que, até ao momento, nos livrámos do exagero de aplicar cinco doses da vacina de uma só vez, a uma mesma pessoa. Ou a oito. O que seria.

Ainda assim, bendita Ciência, que nos permitiu chegar até aqui. Acho imensa graça aos descrentes porque sim, não vá a mole confundi-los com a ovelhinha do presépio. Há ovelhinha no presépio, por falar nisso? Na dúvida, antes acreditar na senhora que lê a mão, do que na mão que forjou a vacina, que até a língua pode ser traiçoeira. E o elogio da dúvida – fundamental para o avanço da Ciência, note-se – tem servido suculentas análises de pensamento alternativo baseado no terror de se pertencer a esse bando desprezível de gente que decide ouvir falar de saúde quem percebe de saúde e, pasme-se!, fazer-lhes caso, em vez de dar ouvidos a livre-pensadores de outra área qualquer – não interessa qual desde que se duvide, muito, sempre e sob qualquer pretexto, como fazem os avisados. Palermas. Os outros.

 

Entretanto, faltam dois dias, mais coisa menos coisa, para acabar este ano medonho. Para muitos, a vida deu uma volta de 180º, para outros, nem tanto. E, para um grupo restrito de gente, a vida até melhorou. É quase sempre assim, a vida é um magnífico acaso, nem sempre fácil de contrariar. Para nós, os que nascemos do lado certo do mundo, não é fácil pormo-nos na pele daqueles que nunca deixaram de viver nas profundezas do inferno. Podemos ensaiar a nossa aflição pelo infortúnio alheio em prosas semi-sentidas de solidariedade e pesar, mas saberá sempre um pouco a fraude; um interlúdio inconsequente que se alterna de forma mais ou menos elegante com a partilha de experiências mais mundanas, muito primeiromundista mundanas, entre deleites gastronómicos, gulosos, viagens ao redor deste nosso mundo e desse outro, e uma pitadinha de arreliado desdém por quem não se preocupa com as coisas e causas certas. Digo eu, que tenho nas viagens e na boa gastronomia dois dos meus maiores luxos. E, como se não bastasse, padeço, igualmente, de tempos a tempos, em pequeníssimos intervalos, dessa mania soberba de achar que tenho lições de moral para distribuir pelos outros. Por isso mesmo, fujo dos santos.

 

Por falar em moral, também me escandalizei com as imagens dos animais abatidos na Herdade da Torre Bela. Não sei se posso. Afinal, gosto de comer carne, não gosto de caça mas sei disparar e, para cúmulo, tenho um cão. De estimação. Por tudo isso e o mais que tenho lido, não estou habilitada a sentir-me enojada com o que ali se passou. Valha-me, ao menos, aquela outra imagem das duas crianças com a cara untada de sangue, uma forma de baptismo, dizem, a que o orgulho soez dos progenitores não terá resistido. 

Como há manchas e manchas e não há quem não goste de ficar bem na fotografia, mesmo na mais ignóbil, mesmo naquela que, por vergonha afinal, se apaga, monta-se, agora uma romaria de penitentes enjeitando culpas, gritando inocência, desconhecimento, violação disto e daquilo, como se o grupo armado tivesse tomado o terreno de assalto, à socapa, por sua conta e risco.

 

Ainda uma nota – muitas notas, na verdade – para a TAP, noutro modo de maldizer. Há (há?) uma restruturação em curso e um plano dramático de corte de salários para evitar, segundo o ministro Pedro Nuno Santos, um número maior de despedimentos. Não há muito tempo, em entrevista a José Gomes Ferreira e João Vieira Pereira, Pedro Nuno Santos justificava-se, em parte, com o “exagero” (não o disse exactamente assim) dos salários auferidos pelos pilotos da nossa, mesmo nossa, companhia aérea. Mas, hoje, ou ontem, ficámos a saber que nunca é demais duplicar alguns salários. De alguns administradores. A crise, quando chega, nunca é para todos. Por pressão ou por vergonha (parece que foi mesmo por pressão), Miguel Frasquilho terá abdicado da sua estrondosa subida salarial. Restam os outros.

 

E ainda há o Brexit. Finalmente, o Brexit. Mas não vi pormenores. Não sei se Boris Johnson conseguiu a desejada proeza de livrar o Reino ainda Unido das maçadas da outra União, sem largar os benefícios de dela fazer parte. Alguém se lembra do outro senhor, o tal Nigel Farage? 

E Trump continua no seu estertor de morte. Estraçalhando democraticamente tudo o que puder, enquanto puder. Apelando ainda (ainda?!) à rebelião, entre partidas de golfe.

E morreu Pierre Cardin. Não que a sua morte me tenha sensibilizado mais do que outras mortes que nem cheguei a referir. Mas gosto de boas histórias. De boas memórias. De boas conversas. Não sendo bem uma conversa estas linhas que aqui vou deixando, dá-se o caso de me ler mais gente do que imaginava, quando decidi transladar-me para este canto. Aos que por aqui se perdem, obrigada pelo vosso tempo. “Bom Ano Novo” não sei se será a expressão mais adequada, neste fim de ano em particular. Ou, pelo contrário, talvez seja este, precisamente, o tempo em que esse voto faça mais sentido. O mundo, esse, continuará alheio à nossa vontade.