À
pergunta se Portugal é um país racista, a minha primeira resposta é, instantaneamente,
não. Portugal não é um País racista. Explico-me. Não tenho a percepção de que,
enquanto país, tratemos de forma diferente – para pior, entenda-se – um negro,
um brasileiro, um africano (é essencialmente deles que se fala; se forem pobres, claro) por essa
condição exclusivamente. O que não é o mesmo que afirmar – ou sentir – que não
haja pessoas racistas em Portugal. Como há machistas nojentos, e um sem número
de escumalhas várias, para todos os (des)gostos e (maus) feitios. Porque o que não
há, realmente, é uma sociedade perfeita, isenta de pecados, em lado nenhum do
mundo. Há sociedades que se pretendem justas, que é coisa bastante diferente.
É
possível que esteja totalmente errada. Por ignorância imensa, por falta de
sensibilidade, por ser ingénua, ou, simplesmente, imbecil. Os que asseguram que
Portugal é um país racista, sem dúvida, argumentam com a existência de um número
residual (às vezes, nulo) de negros, por exemplo, entre os jornalistas, os deputados,
os principais rostos de televisão, na hierarquia das forças de segurança, e em
tantas outras áreas de relevo para o bom funcionamento das sociedades
democráticas, as tais que se querem condignas. Se não por racismo, porquê,
então, essa inegável evidência? Não há número suficiente de negros –
portugueses ou não – para que a sua presença se faça sentir fora dos empregos
que designamos por pouco qualificados?
O
racismo, porém, não está apenas em tratar mal o outro pela sua
diferença: está, também, em ignorá-lo; ou tratá-lo com a benevolência que se reserva
aos incapazes, seja qual for a incapacidade com que o vemos. Desse
ponto de vista – de importância enorme, diga-se – talvez a conclusão inevitável
seja a de que somos, de facto, um país racista.
Vem isto
a propósito de duas notícias recentes. O racismo está na ordem de todos os
dias, nem sempre com o decoro que merece.
Uma
delas já fez correr imensa tinta: a morte de Giovani Rodrigues, o estudante cabo-verdiano,
barbaramente agredido por um grupo de selvagens como só os cobardes mais imundos
o podem ser.
Os rebanhos que povoam e pululam pelas redes sociais foram céleres e implacáveis a classificar o ataque como um crime de ódio porque sim, sem saberem nada sobre
o assunto, abrindo caminho para todo o tipo de teorias conspirativas, montando
um espectáculo asqueroso à volta da morte do jovem.
A outra,
li-a há pouco. Uma mulher acusa um agente da PSP de a ter agredido brutalmente na
sequência de uma altercação com um motorista de autocarro da agência Vimeca; na origem, o facto de a filha de oito anos não estar na posse do necessário passe para prosseguir
viagem. Na fotografia, Cláudia Simões aparece com a cara horrivelmente deformada,
os olhos e os lábios inchados, sangue, feridas, o nariz esmurrado, uma imagem
perturbadora. Cláudia é uma mulher negra e diz-se vítima de racismo por parte,
quer do agente policial, quer do motorista do autocarro. A PSP sustenta que Cláudia
agrediu o agente Carlos Canha (mordendo-o), constituíram-na arguida, e afirma-se que
Carlos Canha utilizou a força estritamente necessária para proceder à
algemagem da mulher.
A
descrição que Cláudia faz dos acontecimentos e da agressão a que foi sujeita é,
no mínimo, assustadora. Mais uma vez, não sabemos exactamente o que terá acontecido.
Mas é difícil entender que a força estritamente necessária para um
polícia treinado manietar uma mulher normal tenha sido capaz de desfigurá-la, mesmo
que esta o tenha mordido – Cláudia confirma-o: mordeu o agente porque ele estaria
a sufocá-la.
Também
não sei se foi ou não foi racismo o que motivou a agressão de que Cláudia foi
vítima. Mas, seguramente, não foi o estrito cumprimento da lei e do dever. Se
fosse esse o caso, nenhum de nós estaria seguro com esta força de segurança.
Nem sequer aqueles que não se inibem de dizer que Cláudia Simões estava a
pedi-las, ou não entrasse no autocarro sem bilhete. Onde é que já se viu, não cumprir regras. A mania que as vítimas têm de se porem a jeito.
É mais "fácil" – leia-se, "horrível", "absurdo", "macabro" – perceber (sem que perceber seja possível) que o jovem cabo-verdiano morreu de forma criminosa às mãos de
um bando de delinquentes cobardes a quem pouco interessaria a cor da vítima, do
que compreender que aquele agente estava no cumprimento escrupuloso das suas
funções. Portugal não precisa deste tipo de autoridade.
Finalmente,
a bomba explodiu. Depois de várias acusações de Ana Gomes (e não só, mas poucos...), com a subtileza que (felizmente) não se lhe conhece, Isabel dos Santos passou da boca daquela para as bocas do
mundo – que é como quem diz – para as primeiras páginas de tudo quanto é
jornais de referência, por suspeita de fazer fortuna, imensa, subtraindo
montantes obscenos ao erário público angolano (principalmente). E como sempre faz quem tem
muitos telhados de vidro, de cristal puro em condóminos de luxo e torres no
Dubai, sem esforço maior de trabalho ou talento que não seja o de nascer bem,
no seio de famílias do poder absoluto, a defesa da empresária passa por
acusar os seus acusadores de “perseguição política”, “racismo” e “colonialismo”. Como não?
A mulher
que é filha de um homem cujo governo em causa própria mandou prender angolanos
pelo grave delito de ler livros atentatórios do bom regime de Angola, à época,
que usou e abusou da hipocrisia e bajulação, no mínimo, da fina flor da elite
portuguesa e não só, que construiu uma reputação de empresária brilhante,
espalhando o seu poder e influência por várias empresas em Portugal, vem agora
dizer-se vítima da mesma condição que cavalgou astutamente para se promover e
montar fortuna sobre o espólio de um país subjugado à ditadura que a elevou em
braços ao estatuto de “princesa” multimilionária, “a mulher mais rica de África”.
Os documentos que estão sob investigação são,
por isso, falsos, segundo Isabel dos Santos. Todas as movimentações de
dinheiro, incluindo os tais 115 milhões de dólares em consultoria que a
Sonangol transferiu para a conta bancária de uma convenientíssima companhia
offshore – daquelas com um funcionário ou menos, a que não se reconhece outra
actividade que não seja a de servir de canal entre transferências avultadas de
dinheiros de reputação claríssima, como se sabe, no intuito, apenas e só e devidamente
enquadrado na lei feita à medida dos que dela gozam, de minimizar a dor que é
pagar um ror de impostos maçadores (enfim, uma daquelas empresas exemplarmente
retratadas no filme da Netflix, The Laundromat, A Lavandaria, cuja exibição os advogados
de Jurgen Mossack e Ramon Fonseca pretendiam impedir) – e com a qual Isabel dos
Santos não tem qualquer relação, obviamente, dizem respeito, dizia, a contratos
negociais imaculados. Só por má fé racista e colonialista se pode pensar o
contrário. Apesar de os documentos mostrarem que a “Matter Business Solutions tinha como principal gestor de negócios e como directora duaspessoas próximas da empresária que a representam em importantes empresas de que é accionista em Portugal”. Está quase tudo aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, e não só; é só ler, interpretar,
interrogar, duvidar, unir pontos…pensar. Sobretudo, desconfiar por que motivo
quem nunca tem nada a esconder, se preocupa mais em exaltar os fantasmas das
perseguições pessoais e/ou políticas, em vez de mostrar, na justiça, provas de
que, efectivamente, a sua fortuna nasceu com seu carácter, a sua inteligência,
educação, capacidade de trabalho e perseverança, como Isabel dos Santos
referiu nos inúmeros tuites que tem dedicado à sua “defesa”.
Um
africano vale tanto como um europeu, e vice-versa, ao contrário do que a
reputadíssima empresária vai carpindo nas redes sociais. Os que a bajularam e
foram cúmplices com o seu império à custa da espoliação dos mais pobres, por
exemplo, são almas-gêmeas, idênticos em tudo, decalcados a papel químico.
Honra
seja feita a Ana Gomes que nunca se deixou intimidar nas suas denúncias, ao
contrário de outros que fingem ter acordado agora para o monstro que a bela
alimentou com avidez miserável, à custa também desses que, não só sabiam de tudo, como se foram saciando no mesmo banquete. E, sim, Isabel dos Santos é inocente até a tal prova em contrário. Aquela que tarda sempre em chegar, a não ser aos mais incautos, a quem os densos labirintos da lei não se aplicam, antes, abrem-se como botões de rosa. Havíamos de encontrar uma figura jurídica com carácter intermédio para que, tendo em conta os tempos da justiça, pelo menos em Portugal, não fôssemos todos obrigados a fingirmo-nos de parvos a bem da inocência.
Li que
Gwyneth Paltrow teria posto à venda velas com cheiro a vagina. À sua, mais
concretamente. Espicaçada pela curiosidade, fui procurar fontes mais ou menos
fiáveis.
Descobri
que, afinal, só o nome da coisa é bizarro. Da vela, quero dizer. E da ideia,
talvez. Parece que, enquanto Gwyneth procurava uma fragância mais ou menos
sofisticada, em parceria com o perfumista Douglas Little, ter-se-á deixado
entusiasmar (ou não) por um aroma em particular e, num momento de (des)inspiração, deixou escapar um "Uuh... isto cheira à minha vagina!". Qualquer coisa assim. Sendo que a interjeição, pelo menos, se presta a várias interpretações.
O certo é que o nome ficou no ouvido, ou lá onde foi, e como há aqueles
a quem basta querer e poder – parece, mas não é bem a mesma coisa, digam o que
disserem – as velas começaram a ser vendidas sob a égide “This Smells Like
My Vagina”…só que não.
Lembrei-me
disto a propósito das vigas de Cabrita Reis (a minha mente é capaz de associações
estranhíssimas). O artista plástico e pintor português, como diz a
Wikipédia, escreveu um artigo no jornal PÚBLICO a defender a sua obra mestra, A
Linha do Mar. Diz o autor, aquele conjunto de vigas brancas frente ao mar
de Leça da Palmeira – talvez menos serenamente do que desejaria o
próprio – é uma obra de arte, porque sim; porque ele assim o afirma. Mais
exactamente, tem de o fazer, deve fazê-lo e pode fazê-lo. Sem
mais. Mas, há mais, afinal. O artigo (além de um insulto aos que pagam impostos, como eu, mas nisso o senhor não está sozinho e, convenhamos, há piores, embora não sirva de consolo...) é um enjoativo exercício de vaidade em causa e cousa própria, e um atestado de ignorância, no que a ignorância tem de mais
ignóbil, aos que ousam desgostar daquilo . Como se atrevem?
Confesso
que só vi a escultura em fotografias de jornais e revistas. Ainda não tive a
oportunidade de experienciar, ao vivo, em frente ao mar para lá das majestosas
vigas – ao que parece, exemplo maior de formidável abstracionismo, ao alcance do entendimento
de poucos –, o fervor de me deixar arrebatar pelo génio de Cabrita Reis.
Pertenço àquele grupo de pessoas que aprecia mais a arte dos que foram
tocados por deus, no isolamento melancólico dos seus ateliers, o que
Cabrita Reis lamenta, mas sempre vai dizendo que já não é bem assim. O que
me leva a desconfiar que poderei chorar ante a visão de A Linha do Mar,
mas, possivelmente, por motivos diferentes dos que me levaram às lágrimas sob o
tecto da Capela Sistina. Enfim, não saberei assim tanto. Quem sabe (e viu?) diz que aquilo é de uma beleza sublime, uma obra-prima da arte contemporânea, obviamente
parida (mas não de forma suada, a não ser que o autor tenha transportado as
vigas em ombros) por uma mente tão brilhante quanto incompreendida, e é
absolutamente lamentável que haja tanto populacho parolo incapaz de prestar o
devido culto ao mestre, tanta gente absolutamente inapta para perceber a
dinâmica observador-envolvente essencial para sucumbir ao deleite daquela manifestação artística.
De modo
que, voltamos aos que podem, porque podem. Vender velas, ou fazer-se pagar (bem)
por uma arte, para lá da arte propriamente dita.
E fico-me por aqui. Para disparate, bem bastam as vigas e as velas. Não necessariamente por esta ordem.
É
possível que tenha sido sempre assim e só agora me tenha dado conta. Um pouco
como quando nos garantem que, por exemplo, os crimes de violência doméstica não
terão propriamente aumentado: o que haverá é mais casos denunciados. A forma
como estamos ligados permite que as notícias (e, claro, também os
rumores, os logros, o que se vulgarizou chamar de fake news, factos
alternativos, e uma série de outras variantes das emoções desenfreadas com
que passamos a alimentar a nossa fome soberba de razão e justiça) circulem à
velocidade das redes e à mercê do politicamente útil, de acordo com as
melhores agendas. É, por isso, possível, sim. Mas não creio. Que não estejamos
a assistir a um aumento efectivo e generalizado da violência, quero dizer.
Há, nos
últimos tempos, um escalar de crueldade, de tirania – por palavras, actos e
omissões –, por parte (também) de altos representantes de vários Estados,
que tem contribuído para um extremar consentido e aplaudido (exigido?) de
ataques às mais básicas regras democráticas. A barbárie tornou-se mais que
vulgar: é, actualmente, exaltada como a mais bela liberdade de todas as expressões,
da imbecilidade mais impudica ao mais selvagem e profundo dos ódios. O insulto passou
de banal a apetecível e apetecido. Em particular, o actual presidente dos EUA isentou-o
de barreiras morais, elevou-o a estatuto de hino evangélico fremente e tornou-o
na mais eficaz arma de combate político. O povo, em delírio, aprova e
aplaude com gula.
Há uma diplomacia
da violência em enérgica ebulição, desconcertante, descontrolada, perigosa, que
ninguém parece ser capaz de travar. Os argumentos que, outrora, não serviam
para desmentir factos, sucumbiram ao poder das verdades algorítmicas. Já não se
trata de ser rei quem tem olho em terra de cegos; antes, de uma obscena ode
à cegueira como o único caminho para a salvação de uns quantos (demasiados),
mutilando, para isso, os próprios olhos se preciso for. E o mais assustador é
perceber que todas as estratégias ensaiadas para combater o monstro, tornam-no
mais forte a cada dia. A nova democracia alimenta-se de um po(l)vo que, afinal,
não gosta da antiga tanto quanto se pensava. A não ser, claro, quando as
regras da senhora servem sofregamente os seus próprios interesses. Duterte é um
facínora, Trump é um estadista brilhante e destemido. Omnisciente. O Pentágono não possui qualquer prova das intenções de Soleimani em atingir alvos americanos, mas "O Presidente" (o único, o melhor, o enviado) sabe mais. Muito mais. Sempre. E quem olha para a morte de Soleimani como, conveniente e maioritariamente, um assassínio encomendado por Trump e para Trump, claro que está com o regime do Irão. Imbecis. Um processo de impeachment
aplicado a um presidente acusado de perjúrio e de obstrução da justiça num caso
de relações extraconjugais é uma prova exemplar do bom funcionamento da
democracia; já se o presidente for Trump, acusado de chantagear um outro país a
troco de benefícios pessoais e políticos, enquanto proíbe testemunhos vitais,
insulta quem se lhe atravessa ao caminho e despede os que ousam contrariá-lo, nesse caso, trata-se de uma injuriante caça às bruxas, um embuste, uma vingançazinha ranhosa da "crazy Nancy".
O despotismo alcançou o estatuto do melhor dos regimes, alimentando-se das mesmas
regras que faziam da democracia o pior deles à excepção de todos os
outros. Richard Nixon está próximo de se converter num elevado exemplo de nobreza de carácter. E o banquete ainda vai no
adro. No antro. Que irrompeu das entranhas do submundo digital para as cadeiras
do poder. Os anti-sistema sabem bem como usá-lo, porque o esvaziaram de empecilhos morais e éticos.
Porém, o
mesmo discurso que apontamos aos apoiantes de trumps e seus derivados vira-se
contra nós. Deixámos que a liberdade servisse os propósitos perversos de
gente para quem a mentira serve, ora como divertimento, ora como lucro: seja na
forma de likes que engordam contas bancárias de influencers
virais, ou na de um inusitado cargo político inatingível de outra forma. Os “padrões
das comunidades” várias de Mark Zuckerberg servem para censurar o nu de Courbet
ou o cozido galelo, mas não para impedir que as mentiras mais sórdidas
proliferem como larvas no lixo. E com o deepfake ao virar do todo-poderoso algoritmo, estamos prestes a entrar num outro nível.
Não sei
se vamos a tempo de evitar maiores desgraças, mas receio bem que o caminho para
isso não passe apenas por continuar a apontar as afrontas destes novos democratas.
Trump e o seu séquito – como Bolsonaro e outros que tais – chegaram, viram e já
venceram uma vez, neste tempo que achávamos de paz (deste lado do mundo, pelo
menos). Derrotá-los vai exigir muito mais do que criticar-lhes o método, por mais nojento.
O Papa Francisco
(talvez tenha sido mais o Jorge Bergoglio) teve um acesso ríspido de
humanidade. Irritou-se com uma “fiel” e deu-lhe duas palmadas na mão, como se
faz(ia) aos miúdos mal-criados. Logo se ergueu um coro de críticas mais
indignadas que o próprio Papa, que os tempos assim o exigem. Os tempos, aliás,
vivem-se de forma bastante curiosa: aos bons exige-se que sejam santos; os
maus, os escroques, levam-se em braços, embalando a sabujice e exaltando os méritos
da coragem anti-sistema e outros engodos do género.
Mas, falava de
Papas. Há dois, e eu vi o filme. Por acaso, logo no finado dia 23, sem saber
nada daquilo. Abri a Netflix, vi o título e o Anthony Hopkins e bastou-me. O
que é um pouco injusto, até, já que Jonathan Pryce tem, também, uma
interpretação extraordinária. Mas, Hopkins é Hopkins. Rendo-me sempre ao seu
talento que, pelos vistos, não se esgota no grande ou pequeno écran. Não fazia
ideia que pudesse, por exemplo, compor uma valsa, até a minha irmã me mostrar o
André Rieu a tocá-la com a sua orquestra. Enfim. Já o disse por aqui. Há
pessoas que escolhem talentos e talentos que escolhem pessoas.
Gosto de ver filmes – e de ler livros – por acidente, sem
saber nada deles, sem ter ouvido um simples rumor que seja, de surpresa, para
poder beber dos seus defeitos e virtudes sem pré-conceitos nem pára-raios, sem
rede de segurança e vendada a instruções alheias. Só eu e eles, para
pensar o que me muito bem ou mal me apetecer.
Ao contrário do que ouvi, depois, a alguma gente, passei
a apreciar mais, e não menos, a figura de Joseph Ratzinger. É bem provável que
a culpa seja, novamente, de Anthony Hopkins, mas vi um Bento XVI brilhante como
nunca me tinha (a)parecido antes, na época em que ocupava o Vaticano. Não que
lhe tenha prestado assim tanta atenção, nessa altura, a bem da verdade.
Maravilhei-me com a riqueza dos diálogos que sei que não
ocorreram, na sua grande maioria, embora os textos que os inspiraram possam ser
reais; recordei as críticas mais assanhadas feitas aos dois homens, Ratzinger o
nazi e Bergoglio cúmplice do regime ditatorial de Jorge Videla;
reconheci a intelectualidade brilhante, bela, de um e o delicioso humor do
outro e encantei-me com a magnífica cena do tango que sei também que os dois
nunca dançaram. Não prestei atenção ao lado religioso da coisa, nem ao drama
Papa-Mau versus Papa-Bom que alguns ensaiaram à laia de ralhos e exaltados de
crenças, dentro e fora da Igreja. É maravilhoso não possuir dotes de análise
profunda sobre o que é, ou é suposto ser, a arte em qualquer uma das suas
formas. Assim, posso dizer que detesto ver uma banana colada à parede com fita
adesiva, ou uma data de vigas brancas plantadas em frente ao mar,
independentemente do preço das peças, do génio do autor, e da
pseudoprofundidade do seu alcance artístico, da mesma maneira que posso
deslumbrar-me com um filme sobre dois homens extraordinários que, por acaso,
são Papas. Maio ou menos.
Como posso ler “A Outra Margem do Mar” de um fôlego,
arrebatada, e não nutrir grande simpatia pela pessoa de António Lobo Antunes.
Ou não ficar rendida ao “Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos”, de Olga
Tokarczuk, apesar do prémio Nobel, que nunca (ainda?) entregaram a Lobo
Antunes. E claro que também li o “Imortal”. O melhor das férias é dispormos de
tempo para desbaratar, embora o tema da Inteligência Artificial seja para levar
bem a sério. Muito a sério, mesmo na escrita que muitos acusam de pouco erudita
de José Rodrigues dos Santos.
Por falar em férias, parece que temos um ano novo. Pelos
menos, nós, que medimos o tempo pelo calendário do Papa Gregório XIII,
para não fugir tão descaradamente ao tema de partida.
Não tenho resoluções de ano novo. Um ano é uma imensidão
de tempo, independentemente da forma como o medimos, pelo que, nunca sou capaz
de dizer “que ano magnífico!” nem, ao contrário, que “ano horrível!” foi este
que acabou agora mesmo. Esforço-me por dispor felicidades (e desgostos)
uma-a-uma, peça-a-peça, como numa construção de legos. Só saberei se valeu a
pena quando chegar ao fim e, para isso, preciso de mais do que um ano, ainda
assim; preciso de uma vida, e ainda não acabei.
Tenham, então, uma boa vida, mais do que um bom ano.