sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Santa Paciência

O Papa Francisco (talvez tenha sido mais o Jorge Bergoglio) teve um acesso ríspido de humanidade. Irritou-se com uma “fiel” e deu-lhe duas palmadas na mão, como se faz(ia) aos miúdos mal-criados. Logo se ergueu um coro de críticas mais indignadas que o próprio Papa, que os tempos assim o exigem. Os tempos, aliás, vivem-se de forma bastante curiosa: aos bons exige-se que sejam santos; os maus, os escroques, levam-se em braços, embalando a sabujice e exaltando os méritos da coragem anti-sistema e outros engodos do género.



Mas, falava de Papas. Há dois, e eu vi o filme. Por acaso, logo no finado dia 23, sem saber nada daquilo. Abri a Netflix, vi o título e o Anthony Hopkins e bastou-me. O que é um pouco injusto, até, já que Jonathan Pryce tem, também, uma interpretação extraordinária. Mas, Hopkins é Hopkins. Rendo-me sempre ao seu talento que, pelos vistos, não se esgota no grande ou pequeno écran. Não fazia ideia que pudesse, por exemplo, compor uma valsa, até a minha irmã me mostrar o André Rieu a tocá-la com a sua orquestra. Enfim. Já o disse por aqui. Há pessoas que escolhem talentos e talentos que escolhem pessoas.



Gosto de ver filmes – e de ler livros – por acidente, sem saber nada deles, sem ter ouvido um simples rumor que seja, de surpresa, para poder beber dos seus defeitos e virtudes sem pré-conceitos nem pára-raios, sem rede de segurança e vendada a instruções alheias. Só eu e eles, para pensar o que me muito bem ou mal me apetecer.

Ao contrário do que ouvi, depois, a alguma gente, passei a apreciar mais, e não menos, a figura de Joseph Ratzinger. É bem provável que a culpa seja, novamente, de Anthony Hopkins, mas vi um Bento XVI brilhante como nunca me tinha (a)parecido antes, na época em que ocupava o Vaticano. Não que lhe tenha prestado assim tanta atenção, nessa altura, a bem da verdade.

Maravilhei-me com a riqueza dos diálogos que sei que não ocorreram, na sua grande maioria, embora os textos que os inspiraram possam ser reais; recordei as críticas mais assanhadas feitas aos dois homens, Ratzinger o nazi e Bergoglio cúmplice do regime ditatorial de Jorge Videla; reconheci a intelectualidade brilhante, bela, de um e o delicioso humor do outro e encantei-me com a magnífica cena do tango que sei também que os dois nunca dançaram. Não prestei atenção ao lado religioso da coisa, nem ao drama Papa-Mau versus Papa-Bom que alguns ensaiaram à laia de ralhos e exaltados de crenças, dentro e fora da Igreja. É maravilhoso não possuir dotes de análise profunda sobre o que é, ou é suposto ser, a arte em qualquer uma das suas formas. Assim, posso dizer que detesto ver uma banana colada à parede com fita adesiva, ou uma data de vigas brancas plantadas em frente ao mar, independentemente do preço das peças, do génio do autor, e da pseudoprofundidade do seu alcance artístico, da mesma maneira que posso deslumbrar-me com um filme sobre dois homens extraordinários que, por acaso, são Papas. Maio ou menos.

Como posso ler “A Outra Margem do Mar” de um fôlego, arrebatada, e não nutrir grande simpatia pela pessoa de António Lobo Antunes. Ou não ficar rendida ao “Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos”, de Olga Tokarczuk, apesar do prémio Nobel, que nunca (ainda?) entregaram a Lobo Antunes. E claro que também li o “Imortal”. O melhor das férias é dispormos de tempo para desbaratar, embora o tema da Inteligência Artificial seja para levar bem a sério. Muito a sério, mesmo na escrita que muitos acusam de pouco erudita de José Rodrigues dos Santos.

Por falar em férias, parece que temos um ano novo. Pelos menos, nós, que medimos o tempo pelo calendário do Papa Gregório XIII, para não fugir tão descaradamente ao tema de partida.

Não tenho resoluções de ano novo. Um ano é uma imensidão de tempo, independentemente da forma como o medimos, pelo que, nunca sou capaz de dizer “que ano magnífico!” nem, ao contrário, que “ano horrível!” foi este que acabou agora mesmo. Esforço-me por dispor felicidades (e desgostos) uma-a-uma, peça-a-peça, como numa construção de legos. Só saberei se valeu a pena quando chegar ao fim e, para isso, preciso de mais do que um ano, ainda assim; preciso de uma vida, e ainda não acabei.

Tenham, então, uma boa vida, mais do que um bom ano.