O Papa Francisco
(talvez tenha sido mais o Jorge Bergoglio) teve um acesso ríspido de
humanidade. Irritou-se com uma “fiel” e deu-lhe duas palmadas na mão, como se
faz(ia) aos miúdos mal-criados. Logo se ergueu um coro de críticas mais
indignadas que o próprio Papa, que os tempos assim o exigem. Os tempos, aliás,
vivem-se de forma bastante curiosa: aos bons exige-se que sejam santos; os
maus, os escroques, levam-se em braços, embalando a sabujice e exaltando os méritos
da coragem anti-sistema e outros engodos do género.
Mas, falava de
Papas. Há dois, e eu vi o filme. Por acaso, logo no finado dia 23, sem saber
nada daquilo. Abri a Netflix, vi o título e o Anthony Hopkins e bastou-me. O
que é um pouco injusto, até, já que Jonathan Pryce tem, também, uma
interpretação extraordinária. Mas, Hopkins é Hopkins. Rendo-me sempre ao seu
talento que, pelos vistos, não se esgota no grande ou pequeno écran. Não fazia
ideia que pudesse, por exemplo, compor uma valsa, até a minha irmã me mostrar o
André Rieu a tocá-la com a sua orquestra. Enfim. Já o disse por aqui. Há
pessoas que escolhem talentos e talentos que escolhem pessoas.
Gosto de ver filmes – e de ler livros – por acidente, sem
saber nada deles, sem ter ouvido um simples rumor que seja, de surpresa, para
poder beber dos seus defeitos e virtudes sem pré-conceitos nem pára-raios, sem
rede de segurança e vendada a instruções alheias. Só eu e eles, para
pensar o que me muito bem ou mal me apetecer.
Ao contrário do que ouvi, depois, a alguma gente, passei
a apreciar mais, e não menos, a figura de Joseph Ratzinger. É bem provável que
a culpa seja, novamente, de Anthony Hopkins, mas vi um Bento XVI brilhante como
nunca me tinha (a)parecido antes, na época em que ocupava o Vaticano. Não que
lhe tenha prestado assim tanta atenção, nessa altura, a bem da verdade.
Maravilhei-me com a riqueza dos diálogos que sei que não
ocorreram, na sua grande maioria, embora os textos que os inspiraram possam ser
reais; recordei as críticas mais assanhadas feitas aos dois homens, Ratzinger o
nazi e Bergoglio cúmplice do regime ditatorial de Jorge Videla;
reconheci a intelectualidade brilhante, bela, de um e o delicioso humor do
outro e encantei-me com a magnífica cena do tango que sei também que os dois
nunca dançaram. Não prestei atenção ao lado religioso da coisa, nem ao drama
Papa-Mau versus Papa-Bom que alguns ensaiaram à laia de ralhos e exaltados de
crenças, dentro e fora da Igreja. É maravilhoso não possuir dotes de análise
profunda sobre o que é, ou é suposto ser, a arte em qualquer uma das suas
formas. Assim, posso dizer que detesto ver uma banana colada à parede com fita
adesiva, ou uma data de vigas brancas plantadas em frente ao mar,
independentemente do preço das peças, do génio do autor, e da
pseudoprofundidade do seu alcance artístico, da mesma maneira que posso
deslumbrar-me com um filme sobre dois homens extraordinários que, por acaso,
são Papas. Maio ou menos.
Como posso ler “A Outra Margem do Mar” de um fôlego, arrebatada, e não nutrir grande simpatia pela pessoa de António Lobo Antunes. Ou não ficar rendida ao “Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos”, de Olga Tokarczuk, apesar do prémio Nobel, que nunca (ainda?) entregaram a Lobo Antunes. E claro que também li o “Imortal”. O melhor das férias é dispormos de tempo para desbaratar, embora o tema da Inteligência Artificial seja para levar bem a sério. Muito a sério, mesmo na escrita que muitos acusam de pouco erudita de José Rodrigues dos Santos.
Por falar em férias, parece que temos um ano novo. Pelos
menos, nós, que medimos o tempo pelo calendário do Papa Gregório XIII,
para não fugir tão descaradamente ao tema de partida.
Não tenho resoluções de ano novo. Um ano é uma imensidão
de tempo, independentemente da forma como o medimos, pelo que, nunca sou capaz
de dizer “que ano magnífico!” nem, ao contrário, que “ano horrível!” foi este
que acabou agora mesmo. Esforço-me por dispor felicidades (e desgostos)
uma-a-uma, peça-a-peça, como numa construção de legos. Só saberei se valeu a
pena quando chegar ao fim e, para isso, preciso de mais do que um ano, ainda
assim; preciso de uma vida, e ainda não acabei.
Tenham, então, uma boa vida, mais do que um bom ano.