segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

A diplomacia da violência



"O Triunfo da Morte", Peter Bruegel

É possível que tenha sido sempre assim e só agora me tenha dado conta. Um pouco como quando nos garantem que, por exemplo, os crimes de violência doméstica não terão propriamente aumentado: o que haverá é mais casos denunciados. A forma como estamos ligados permite que as notícias (e, claro, também os rumores, os logros, o que se vulgarizou chamar de fake news, factos alternativos, e uma série de outras variantes das emoções desenfreadas com que passamos a alimentar a nossa fome soberba de razão e justiça) circulem à velocidade das redes e à mercê do politicamente útil, de acordo com as melhores agendas. É, por isso, possível, sim. Mas não creio. Que não estejamos a assistir a um aumento efectivo e generalizado da violência, quero dizer.

Há, nos últimos tempos, um escalar de crueldade, de tirania – por palavras, actos e omissões –, por parte (também) de altos representantes de vários Estados, que tem contribuído para um extremar consentido e aplaudido (exigido?) de ataques às mais básicas regras democráticas. A barbárie tornou-se mais que vulgar: é, actualmente, exaltada como a mais bela liberdade de todas as expressões, da imbecilidade mais impudica ao mais selvagem e profundo dos ódios. O insulto passou de banal a apetecível e apetecido. Em particular, o actual presidente dos EUA isentou-o de barreiras morais, elevou-o a estatuto de hino evangélico fremente e tornou-o na mais eficaz arma de combate político. O povo, em delírio, aprova e aplaude com gula.

Há uma diplomacia da violência em enérgica ebulição, desconcertante, descontrolada, perigosa, que ninguém parece ser capaz de travar. Os argumentos que, outrora, não serviam para desmentir factos, sucumbiram ao poder das verdades algorítmicas. Já não se trata de ser rei quem tem olho em terra de cegos; antes, de uma obscena ode à cegueira como o único caminho para a salvação de uns quantos (demasiados), mutilando, para isso, os próprios olhos se preciso for. E o mais assustador é perceber que todas as estratégias ensaiadas para combater o monstro, tornam-no mais forte a cada dia. A nova democracia alimenta-se de um po(l)vo que, afinal, não gosta da antiga tanto quanto se pensava. A não ser, claro, quando as regras da senhora servem sofregamente os seus próprios interesses. Duterte é um facínora, Trump é um estadista brilhante e destemido. Omnisciente. O Pentágono não possui qualquer prova das intenções de Soleimani em atingir alvos americanos, mas "O Presidente" (o único, o melhor, o enviado) sabe mais. Muito mais. Sempre. E quem olha para a morte de Soleimani como, conveniente e maioritariamente, um assassínio encomendado por Trump e para Trump, claro que está com o regime do Irão. Imbecis.
Um processo de impeachment aplicado a um presidente acusado de perjúrio e de obstrução da justiça num caso de relações extraconjugais é uma prova exemplar do bom funcionamento da democracia; já se o presidente for Trump, acusado de chantagear um outro país a troco de benefícios pessoais e políticos, enquanto proíbe testemunhos vitais, insulta quem se lhe atravessa ao caminho e despede os que ousam contrariá-lo, nesse caso, trata-se de uma injuriante caça às bruxas, um embuste, uma vingançazinha ranhosa da "crazy Nancy". O despotismo alcançou o estatuto do melhor dos regimes, alimentando-se das mesmas regras que faziam da democracia o pior deles à excepção de todos os outros.  Richard Nixon está próximo de se converter num elevado exemplo de nobreza de carácter. E o banquete ainda vai no adro. No antro. Que irrompeu das entranhas do submundo digital para as cadeiras do poder. Os anti-sistema sabem bem como usá-lo, porque o esvaziaram de empecilhos morais e éticos.  

Os jornalistas – protagonistas desse suposto quarto poder imprescindível para a democracia como a conhecíamos – que não alinham nem embalam o discurso trumpista (ou bolsonarista, a propósito) são uns corruptos abjectos sem direito a livre-arbítrio; os que trocaram o jornalismo pelo entretimento televisivo à imagem e semelhança do seus fanfarrões-in-chief de estimação são os detentores únicos da verdade dos factos encomendados à medida, para consumo e deleite da turba. As mentiras mais descaradas na boca de Donald Trump são pérolas de soberba estratégia política, não obstante a sua sofrível retórica; os seus fãs vêem provas inequívocas de incontestável genialidade nos seus discursos erráticos, na gritaria que sobeja na sua admirável conta de Twitter quando a hora é de cólera, ou de outra coisa qualquer que se lhe assome ao espírito.

Porém, o mesmo discurso que apontamos aos apoiantes de trumps e seus derivados vira-se contra nós. Deixámos que a liberdade servisse os propósitos perversos de gente para quem a mentira serve, ora como divertimento, ora como lucro: seja na forma de likes que engordam contas bancárias de influencers virais, ou na de um inusitado cargo político inatingível de outra forma. Os “padrões das comunidades” várias de Mark Zuckerberg servem para censurar o nu de Courbet ou o cozido galelo, mas não para impedir que as mentiras mais sórdidas proliferem como larvas no lixo. E com o deepfake ao virar do todo-poderoso algoritmo, estamos prestes a entrar num outro nível

Não sei se vamos a tempo de evitar maiores desgraças, mas receio bem que o caminho para isso não passe apenas por continuar a apontar as afrontas destes novos democratas. Trump e o seu séquito – como Bolsonaro e outros que tais – chegaram, viram e já venceram uma vez, neste tempo que achávamos de paz (deste lado do mundo, pelo menos). Derrotá-los vai exigir muito mais do que criticar-lhes o método, por mais nojento.