sábado, 31 de dezembro de 2022

Bom Ano Novo

Não tenho por hábito fazer balanços de fim de ano, e, menos ainda, uma lista de resoluções para os trezentos e sessenta e cinco dias seguintes: são muitas horas para planear e prever, e também vivo de improvisos. Mas, neste ano que ainda não terminou, tenho uma palavra; aliás, duas palavras, que formam um nome: Mahsa Amini. E Nika Shakarami, e Hadis Najafi, e Majidreza Rahnavard, e outro, e outro, e tantos outros, dessas mulheres e desses homens, não para falar de Morte, da sua morte, mas para falar de Vida e de Esperança: se há quem seja capaz de resistir arriscando a vida pela Liberdade de viver sem mordaça, o Mundo ainda tem conserto e importa celebrá-Lo. A coragem das Mulheres iranianas, insubmissas, rejeitando ser caladas, tapadas, abusadas, desafiando esses esbirros sinistros da moralidade (insuportavelmente hipócritas tantas vezes), são um exemplo de coragem, de bravura, daquilo que a vontade pode se ameaçada. As Iranianas, como as Afegãs que os terroristas talibãs proibiram de estudarem nas universidades e de trabalharem em ONG, de receberam os seus diplomas universitários, as que já tinham terminado os seus cursos, essas mulheres, como os homens que as apoiam e morrem por elas, são um farol de insolência que também merece exaltação e glória. Que 2023 seja também o seu ano. E, claro, que Vladimir Putin caia de podre.


Aos que passam por aqui, Bom 2023. Não se esqueçam de viver. Um dia de cada vez. Intensamente, como a Vida merece.


Porque gosto de Luas

 



"Moon over Makemake, Illustration Credit: Alex H. Parker (Southwest Research Institute)"


sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

 

Tenho a cabeça cheia de pensamentos a que não tenho sido capaz de dar forma. Ando, como tantos, demasiado cansada, demasiado zangada, demasiado perplexa. Abençoados os que escrevem sem esforço.

Mas, o meu Natal, que não é de Pai Natal e muito pouco de menino Jesus, que não é de grandes Graças nem de Missa do Galo, é, pelo menos, de colo, de sorrisos rasgados e abraços demorados. De pequenos excessos. Digo mais vezes “gosto de ti”, gosto muito de ti, e isto apetece-me partilhar.

 

Bom Natal a quem é de Natal. Bom Natal a quem não é de Natal.



terça-feira, 13 de dezembro de 2022

quarta-feira, 30 de novembro de 2022



sábado, 26 de novembro de 2022

sexta-feira, 25 de novembro de 2022


 

Tenho dez minutos para deixar o sofá, o livro, a chávena de café e aquela linha do horizonte, ao fundo, sobre o dorso liso do meu mar de zinco. Não sei se me apetece...

 

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Na semana pré-covid bateram-me no carro. Pela segunda vez na mesma rotunda. Dizem que não sabemos fazer rotundas e é verdade, não sabemos fazer rotundas.

Da primeira vez, o outro condutor não quis assumir a culpa, e as seguradoras engendraram um plano para partilhar custos e, portanto, culpas, sabe como é, uma deve quinhentos a outra deve quinhentos, nas palavras do perito para me “explicar”, o suposto entendimento entre ambas as companhias: como?, não, não sei como é, alguma vez, o meu cadastro para lá de impecável manchado por um palerma que não sabe fazer rotundas – tive de recorrer a um daqueles julgados de paz, não sei se ainda existem, para fazer valer a minha razão.

Desta vez, o outro condutor era uma mulher prática: peço imensa desculpa vinha distraída tenho aqui uma declaração amigável se não se importa despachamos isto que tenho um compromisso inadiável e a culpa, evidentemente, é minha. Ainda me enviou uma mensagem duas horas antes da minha companhia de seguros a informar-me que, sim, o seguro dela assumiria o arranjo a cem por cento, e, se nos voltarmos a encontrar, que sejam circunstâncias mais simpáticas. Com emoji e tudo. Fiquei chocada, uma mulher prática não usa emojis. Ou usa? Estou a pensar que ainda lhe telefono para marcar um café. Nos dias que correm, não convém desperdiçar gente decente; até lhe perdoo o emoji.


Ouves, como o vento despe as árvores num fervor de novidade, como se de cada vez fosse a primeira vez? 


domingo, 20 de novembro de 2022



sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Dois anos e vários meses depois, finalmente e oficialmente, cedi. Dizem-me que é covid, mas, se me dissessem que alguém moldou um boneco de vodu à minha imagem e semelhança e entretanto se entretém a espetar-lhe estacas finas e afiadas várias vezes ao dia desde há vários dias, não sei se me sentiria pior.


segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Miguel Alves como ainda Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro: como é que isto se explica?


"O meu errante não fazer nada vive e espalha-se pela variedade da noite.
A noite é uma longa festa solitária.
No meu secreto coração louvo-me e justifico-me.
Testemunhei o mundo; confessei a estranheza do mundo.
Cantei o eterno: a clara lua que regressa e as maçãs do rosto que o amor prefere.
Comemorei com versos a cidade que me cinge

e os arrabaldes que me desterram.
Eu disse assombro onde outros dizem apenas costume.
Perante a canção dos tíbios, acendi a minha voz em poentes.
Os antepassados do meu sangue e os antepassados dos meus sonhos.
exaltei e cantei.

Já fui e sou.
Travei em firmes palavras o meu sentimento, que poderia

dissipar-se em ternura.
A lembrança de uma antiga maldade volta a meu coração.
Como um cavalo morto que a maré lança à praia, volta ao meu coração.
Ainda estão a meu lado, no entanto, as ruas e a lua.
A água continua a ser doce na minha boca e as estrofes não me negam sua graça.
Sinto o pavor da beleza; quem se atreverá a condenar-me se esta grande lua da minha solidão me perdoa?"

Quase Juízo Final
Jorge Luis Borge


Continuo de volta da poesia de Jorge Luis Borges. Os livros e as letras, as palavras, como algumas dessas minhas lâminas de sobrevivência. E o silêncio. Um silêncio inteiro para atender o Mundo.


domingo, 6 de novembro de 2022



Corrupções à la carte

Parte da direita portuguesa que renega com enfático nojo a corrupção de Lula da Silva e, consequentemente, a sua reeleição no Brasil, convive bem com a escolha do ex-presidiário Isaltino Morais para a presidência da câmara de Oeiras. É só uma Câmara Municipal, eu sei, não é o mesmo que o (des)governo de um país inteiro. Ainda assim, já existe um precedente, não é preciso fantasiar com o regresso de José Sócrates, que, na verdade, ainda não foi condenado, provavelmente nunca será julgado, e, portanto, até "prova em contrário", é inocente, mesmo que ninguém em pleno uso das suas faculdades mentais (se calhar, basta um uso assim-assim) acredite na extraordinária história do amigo e da mãe e do cofre. Essa é outra parte interessante da coisa: os mesmos que não duvidam da patifaria de Sócrates, também não duvidam da seriedade do "dinheiro vivo" com que a família Bolsonaro comprou umas dezenas de imóveis. Eu duvido da lisura de qualquer um daqueles quatro, mas há uns patifes mais (ou menos) insuportáveis do que outros e, aparentemente, é entre esses que andamos condenados a escolher. 

Imagino que nunca chegaremos ao dilema Sócrates ou Ventura. E se não tenho dúvidas quanto ao primeiro, não sei bem se o segundo merece tão ameaçador estatuto: comparado com os seus congéneres, parece um menino do coro. Nada disso, porém, me livra da presente sensação de uma espécie de orfandade de representação política, e não devo ser a única. Este fosso inconsertável entre "a direita" e "a esquerda" não me move e não me serve, mas seria incapaz de me sentar à mesa com um tipo como o ainda presidente do Brasil.  

Os mais de cinquenta milhões de votos que Jair Bolsonaro conseguiu ainda, como os mais de setenta milhões de votos em Donald Trump nas últimas eleições presidenciais nos EUA, devem servir, pelo menos, para moderar a aversão dos livre-pensadores àquela ideia de rebanho: rebanho por rebanho, parece haver dois, a originalidade já não é o que era; e o mesmo para o “pensamento único”, ou a “superioridade moral”, embora, devo confessar, superioridade moral seja pecado que me assalta amiúde quando ouço os argumentos de alguns dos mais acérrimos defensores dos bolsonaros e dos trumps: não são contra a "ideologia do género" – eu também sou –, a favor do controlo da emigração  eu também posso ser –,  pró-família-tradicional  não sei se sou, não sei se sei, mas sei que não há nada de errado em sentirmo-nos identificados com –, ou anti-aborto: são assumida e ferozmente contra todos os que ousem beliscar o seu mundo, o seu modo de vida. "Bolsonaristas" e "Trumpistas" continuam a berrar, sem conseguirem apresentar qualquer prova, contra a fraude das eleições presidenciais, alguns por convicção, talvez, mas muitos, sem dúvida, por oportunismo: defendem a liberdade e a democracia na medida exacta da sua vontade.  

Pode acusar-se do mesmo a esquerda-radical. O mal-denominado movimento woke veio impor um sem-número de regras, da linguagem ao comportamento, que pretendem salvar a Humanidade das esquinas afiadas da existência: viver deve ser livre da ofensa e da contrariedade, uma infantilização concertada para salvar o mundo dos pecados dos homens, mas sem o calvário e a Paixão de Cristo, sem crucificação. A felicidade ao alcance de um decreto. Evidentemente, não está a resultar. 


sexta-feira, 28 de outubro de 2022

"Las calles de Buenos Aires

ya son mi entraña.

No las ávidas calles,

incómodas de turba y ajetreo,

sino las calles desganadas del barrio,

casi invisibles de habituales,

enternecidas de penumbra y de ocaso

y aquellas más afuera

ajenas de árboles piadosos

donde austeras casitas apenas se aventuran,

abrumadas por inmortales distancias,

a perderse en la honda visión

de cielo y llanura.

Son para el solitario una promesa

porque millares de almas singulares las pueblan,

únicas ante Dios y en el tiempo

y sin duda preciosas.

Hacia el Oeste, el Norte y el Sur

se han desplegado –y son también la patria– las calles;

ojalá en los versos que trazo

estén esas banderas."

Jorge Luis Borges




 
E deixavam os quadros em paz.


sábado, 22 de outubro de 2022

País pobre, pobre País

“São casos de necessidade que dão muita pena. E quando assim é, não costumamos chamar a polícia”, “Temos apanhado muitos idosos a tentar levar pão, salsichas ou atum. Há pouco tempo vi um idoso a tentar roubar batatas e uma senhora de idade a esconder pastéis de bacalhau no bolso. Quando a abordei, pediu muita desculpa e explicou que tinha fome. E há mulheres com filhos que dizem que já não têm como lhes dar de comer. É muito triste. Chego a dizer-lhes: ‘Prefiro que me peçam. Não sou rico, mas posso oferecer alguma coisa.’ E eu próprio vou à caixa pagar”

 

Creio que nunca como hoje Portugal me pareceu um país tão falido. Nem sei bem como olhar para aquela reportagem do Expresso – são retratos de miséria a vários tons. Deve ser real e dramático o aumento do número de bens alimentares básicos roubados nos supermercados porque é preciso qualquer coisa mais que coragem para expor prateleiras onde as garrafas de azeite são protegidas como fino whisky e as latas de atum são guardadas em caixas de acrílico anti-roubo.

E, aquele parágrafo, ainda o tenho às voltas no estômago.

Os números da Pordata sobre a pobreza em Portugal são esmagadores: sem apoios sociais, mais de quatro milhões de pessoas são pobres ou têm rendimentos abaixo do limiar da pobreza. No mesmo país da “querida tecnológica” de Paddy Cosgrave, do paraíso fiscal para reformados ricos e muito estrangeiros, mesmo que a nossa nacionalidade se venda como a ginjinha do Rossio onde, por agora, vivem ao relento um sem número de timorenses atraídos por promessas de trabalho escravo, enquanto se pensam estratégias para atrair nómadas digitais e se ensaiam modelos para a semana de quatro dias de trabalho.


 



Nada do que há em ti me inspira compaixão. Não há nada de generoso no meu tempo, se o que procuro são as palavras que viajam sob a minha pele. Também não sei nada do teu nome soletrado com a misericórdia dos versos lassos como sermões de Domingo, saboreai e vede como o Senhor é bom, cânticos de piedosa doçura, o amor obediente aos caminhos que salvam o corpo e a alma da tentação da desvirtude e do vício. Sei do cheiro húmido da terra fértil, do latejar urgente e mudo da luz sobre o relâmpago, do tempo quieto, suspenso num instante antes do rouquejar do trovão. O grito agoirento da gaivota quando o ar anuncia tempestade e, nos ancoradouros, rangem as cordas que arrancam os barcos à fúria das ondas. Sei do belo e do profano, da embriaguez do Inverno, da ameaça de vertigem quando o teu corpo reclama o meu.


segunda-feira, 17 de outubro de 2022



domingo, 16 de outubro de 2022

 


"Colho esta luz solar à minha volta,
No meu prisma a disperso e recomponho:
Rumor de sete cores, silêncio branco.

Como flechas disparadas do seu arco,
Do violeta ao vermelho percorremos
O inteiro espaço que aberto no suspiro
Se remata convulso em grito rouco.

Depois todo o rumor se reconverte,
Tornam as cores ao prisma que define,
À luz solar de ti e ao silêncio."

José Saramago


quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Liberdade de Expressão

Alex Jones – que, provavelmente, dispensa apresentações – foi condenado ao pagamento de 965 milhões de dólares em indemnizações “às famílias de Sandy Hook”. Segundo a sua muito livre capacidade de ver o mundo de acordo com a teoria mais proveitosa a cada passo – essa liberdade com direito absoluto sobre qualquer contrariedade, e a verdade, como se vai sabendo, é o que um homem quiser –, o tiroteio na escola primária de Sandy Hook, em 2012, não ocorreu como foi noticiado. Aliás, não ocorreu de todo: tratou-se apenas de uma farsa, um elaboradíssimo plano para retirar as armas às pessoas que gostam muito de possuir armas. As famílias que vimos chorar os seus mortos – vinte dos quais, crianças – eram meros actores.

Durante anos, Jones alimentou uma história escabrosa sob a forma de informação e ganhou dinheiro, muito dinheiro, à custa do sofrimento inimaginável daqueles pais e mães que, depois do horror, ainda foram obrigados a lidar com a seita de fanáticos que lhe presta culto: ameaças de morte, ameaças de violação, um tarado qualquer que urinou na campa de uma das crianças mortas.

Há gente capaz de desenterrar o pior que há em mim. Não é bem desejar-lhes a morte, não desejo a morte de ninguém e a morte pode ser o fim, mas não é, seguramente, o mais terrível. O que desejo pode ser impronunciável.


terça-feira, 11 de outubro de 2022



segunda-feira, 10 de outubro de 2022



quarta-feira, 5 de outubro de 2022

 

… eis o que também pensei: guardar-te no verso das histórias que me encontram.


terça-feira, 4 de outubro de 2022



Isto continua a ser embaraçosamente bom.

Coisas realmente estranhas

Não sei bem o que é um NFT. Non-fungible tokens, certo, mas não passo daí; e não gosto da palavra “fungible”, nem na sua versão portuguesa. 

Já houve quem me tentasse com uma explicação simples da coisa, aquilo do como se eu tivesse cinco anos, mas a minha razão tem razões que só a própria reconhece.

Na versão mais ousada e abusada do espantoso fenómeno, um milionário mexicano ou americano, Mobarak de seu nome (é quase engraçado), resolveu queimar o quadro Fantasmones Siniestros, e, assim, operar uma transição permanente para Metaverso da pintura de Frida Kahlo; ou, agora, 10 mil pedacinhos de criptoarte.

A queima foi cerimoniosa, num elegante copo de Martini cheio de pedrinhas azuis, com público e banda sonora apropriada, canta y no llores, anda, que é só um quadro. O dinheiro servirá a caridade. 

Dizem-me que já aconteceu o mesmo ao Fumeur V, de Picasso. Pode ser. Não entendo na mesma, e custa-me a crer que os originais sejam mesmo originais.

Nada disto interessa muito, mas o que interessa muito não anda melhor.


segunda-feira, 3 de outubro de 2022

 


Um dia vou despir-me de ti.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Blonde

Aguentei a primeira hora. São quase três.

Não sei se gosto, não sei se volto. Ana de Armas é extraordinária. Talvez volte.




segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Mahsa Amini

A liberdade das mulheres muçulmanas usarem o (ou um) véu islâmico quando vivem fora dos países que o impõem como norma de conduta “decente” não é a mesma liberdade das mulheres muçulmanas que ousam, como agora nas ruas do Irão, rejeitá-lo ostensivamente, sabendo bem o risco que a sua escolha implica: poderem ser presas, agredidas, torturadas e assassinadas às mãos das autoridades que zelam pelo seu “bom comportamento”.

Não é ignorância, porque a Carmo Afonso não é propriamente ignorante. É aquele mas que tenta comparar o que não é comparável, para validar a conclusão que nos é mais útil ou mais cara.




sábado, 24 de setembro de 2022

O Outono é meu



Pergunto pelo bebé. Em não-frases curtas – ela praticamente não fala português e entende-o pouco, e eu não falo nada de ucraniano.

Diz-me que o bebé "bem, hoje seis meses, gordo", e rabisca um número na parede em frente, com a ponta do indicador direito: "estos quilos", mas percebo demasiado tarde e fico sem saber quantos são os quilos, afinal. "Gosta muito sopa", e enche as bochechas de ar. Ri de olhos fechados, em quase silêncio.

O bebé é neto. Pergunto pela filha. Está bem. "E a N., como está?". Encolhe os ombros, num assento resignado. Sei que o ex-marido continua a viver na Rússia; o filho homem também.

Se a palavra “guerra” não estivesse proibida na Rússia, Putin tê-la-ia proferido no seu recente discurso à nação e ao Mundo: declaro que declaro guerra ao Ocidente encarnado na Trinidad EUA-NATO-UE, qualquer coisa assim, que tem pouco de santa, é verdade, mas continua a escapar-me a equivalência entre um e os outros, e os outros também sou eu. Prefiro este lado imperfeito, se se trata de escolher um lado. A neutralidade é um luxo ao alcance de poucos, e a racionalidade que se poderia impor para evitar ter-se chegado ao que se chegou esgotou-se. Ninguém vai ganhar, porque ninguém ganha quando o cenário é um quadro vivo de Bruegel, mas eu continuo a torcer pela Ucrânia, na sua democracia impura.

O Mundo nunca foi um lugar seguro e o que sobrar não deve ficar melhor – só não nos entendemos quanto à atribuição (ou "distribuição"  não há realmente santos, mas uns são menos bárbaros do que outros) da culpa: ouvindo alguns dos mais acérrimos defensores da virgindade de Putin, dos apelos à Paz, só a Paz e nada mais do que a Paz, anseia-se pelo futuro só para ouvir a História contar a história destes dias; de como o “Mundo Ocidental” se deixou manipular pelos EUA, pela NATO e pelo presidente Zelensky, amputados cavaleiros do apocalipse, capazes de levar a Mãe Rússia a esventrar várias cidades ucranianas contra a vontade do seu presidente, Vladimir Putin, o mais injuriado dos mártires; de como a prepotente Ucrância foi capaz da maior agressão ao seu próprio Estado, soberano contra a vontade do seu povo, torturando-o, violando-o, matando-o, de Bucha a Izium, sob a complacência do Ocidente, Belzebu, interessado apenas em vender armas, ensaiar palcos de guerra e ungir um herói: pode ser, mas é uma hipótese mais retorcida do que a da febre imperial de Putin. 

A Europa não goza de grande saúde e não sei se resiste. Gosto da ideia de Europa, mas é um projecto a ameaçar ruína. Ontem, à hora de almoço, cruzei-me com um discurso de final de campanha de Giorgia Meloni  a Itália que não tem medo da gente de bem; a Itália produtiva não tem medo; não têm medo os que sonham com uma Itália orgulhosa, os que querem voltar a ter orgulho na sua nação, da sua gente, da sua bandeira; essa Itália não tem medo, essa Itália está pronta – e eu, com excepção da gente de bem que não sei bem o que seja, não vejo ali tanto escândalo (o mesmo não digo daquele ar plastificado de Silvio Berlusconi, logo ao lado) e essa é parte do problema: a ideia de que todas as urgências que enfrentamos se resolvem ignorando o descontentamento crescente de um fatia cada vez mais significativa da gente de carne e osso. Há-de haver um equilíbrio entre o chilique enjoado dos Albertos Gonçalves porque a sereia Ariel agora é negra, vejam bem, e esta tentativa de doutrinação absurda que confunde o direito à igualdade com a imposição de uma forma de pensar "boazinha", que não admite deslizes de linguagem, sob pena de nos tornarmos uns proscritos. Há uma diferença entre "não gostar de" e "atentar contra", no limite, ser idiota não é crime e do Crime deve tratar a Justiça, e a Justiça é outro pilar sem o qual uma Democracia não é uma Democracia. Ainda hoje li que "há mais de três anos que o tribunal tenta notificar João Vale e Azevedo". Já me tinha esquecido da pessoa. Já para não falar dos outros. Não é bem o CHEGA de André Ventura que ameaça a nossa Democracia, o que não desmerece em nada o desprezo que se tenha por aquilo, e eu tenho.


sexta-feira, 23 de setembro de 2022

 


Photograph: Xinhua/Rex/Shutterstock 


A imagem (ouvi falar também de um vídeo, mas a fotografia já é suficientemente repugnante, por isso, nem procurei) da mulher coberta de formigas num lar da Santa(?) Casa da Misericórdia de Boliqueime é de um horror obsceno. Não é uma “falha humana” (mas qual “falha humana”!?; falha humana era a senhora ter caído da cama num infeliz momento de desatenção), é o exemplo acabado da ausência absoluta de humanidade e virá a ser outro crime sem culpados, porque a indignação só é indignação quando deixa de ser possível fingir que não se sabe, não se vê, não se ouve, e as punições implacáveis, o investigue-se tudo até ao fim doa a quem doer, tem tudo para acabar como já sabemos.


Mahsa Amini



quarta-feira, 21 de setembro de 2022



segunda-feira, 19 de setembro de 2022

“Does it matter? Do I bother?”



Voltei ao cinema para ver “Moonage Daydream”, o documentário que não é bem um documentário, com David Bowie no princípio, no meio e no fim, nas linhas, nas entrelinhas, no visível e no invisível. David Bowie para quem gosta de David Bowie e para quem não gosta de David Bowie. É fabuloso seja qual for o ângulo. Um caleidoscópio de sons e imagens, de vida e de morte, do tempo e da arte. Obviamente camaleónico. É absurdamente bom e, não, não pode ser visto noutra sala que não numa sala de cinema. Demorei a decidir-me. Outra vez. A pandemia – não sei se ainda se pode dizer – tornou-me mais avessa ainda a espaços fechados com muita gente e, no caso dos cinemas, secou irremediavelmente a minha pouca paciência para todo aquele aparato quase sinistro e ritualista das pipocas e afins, incluindo os donos das pipocas independentemente da idade e do género. Estive quase quase a levar máscara, mas, escolhi a última sessão, fui espreitar os lugares ocupados antes de comprar os bilhetes e imediatamente antes de sair de casa, e, no total, éramos três cadeiras ocupadas: acabei por refrear a paranóia. Acabámos por ser cinco numa sala com mais de 400 lugares – o que também não deixa de ser espantoso –; e ninguém comeu pipocas.


domingo, 18 de setembro de 2022

 

Conta-me. Dos caminhos cruzados onde os nossos silêncios se encontram. Da saudade inacabada, do fogo lento da ausência, punição redenção quarto escuro geada, e o canto da maré cheia quando a noite se encerra numa solidão de túmulo onde batem todos os sentidos e a esperança se despe dos excessos da promessa, até que o amanhecer se levanta e as cinzas se desvanecem no rubor da aurora. Conta-me.


sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Move-se com o roçagar áspero do voo das traças contra a luz baça dos candeeiros de rua. É velha, muita velha, de uma idade corrupta, sem a solenidade do Tempo e da Memória, e tudo nela me repugna, a pele encarquilhada e lívida, o cheiro acre, fermentado, a voz num assobio agudo como o silvo dos répteis. Mas é, sobretudo, o assombro com que me olha; com a devassidão da cobiça. Detesto-a, detesto-a. Torna-se-me insuportável. 

Distrai-me o ressoar lamuriento do vento nos tubos de aço do andaime em frente à Igreja, um colossal corpete de varas metálicas amparando-lhe a ruína de séculos. O ar sabe a penitência. Sexta-feira de cinzas. 

Volto o rosto e já não a vejo, sumiu-se numa nuvem de agoiros, como as bruxas dos contos que não se contam agora. Ainda a detesto.


"Governo decreta três dias de luto nacional pela morte de Isabel II"


Portugal é uma piada. Das más. Não se ria se chore.

sábado, 10 de setembro de 2022

"Tutti li miei pensier parlan d’Amore"


Vita Nuova
 
Dante

sexta-feira, 9 de setembro de 2022



Verde, Amarelo, Decadente

Mantenho desde passado Março uma aposta (mais ou menos) com uma amiga brasileira: ela garante-me que Bolsonaro sairá democraticamente pelo seu pé se perder as próximas eleições no Brasil, e eu garanto que não, que Bolsonaro ensaiará o seu 6 de Janeiro, com consequências talvez mais trágicas. E ela, a minha amiga, que eu sei que há-de apoiar Bolsonaro pelo menos até ao acto de votar (embora ela nunca chegue a assumi-lo frontalmente – coisa a que, evidentemente, não está obrigada), pergunta-me que faria eu se me visse confrontada com a decisão de escolher entre José Sócrates e André Ventura. Não é muito fácil, de facto, embora eu veja Sócrates como mais patife que Lula e Ventura como menos cretino que Bolsonaro. Além de que os brasileiros têm outros candidatos à Presidência do Brasil; talvez entre um corrupto como dizem ser Lula, um energúmeno como eu digo ser Bolsonaro, e outra criatura qualquer, outra criatura qualquer não fosse pior opção.

Não sei quase nada das outras criaturas que se candidatam. Ainda arrisco um “então e o Ciro Gomes?”, mas devo ter dito uma besteira de todo o tamanho, porque a minha amiga ficou roxa, “outro corrupto?”, vociferou, e se calhar também é, sei lá eu.

Claro que, tudo isto, foi antes do dia de ontem. Anteontem, este texto ficou pendente.

Bolsonaro não é "Trump sem a escolaridade obrigatória", como gracejou, uma vez, Pedro Mexia: ao lado do presidente “imbrochável”, vocábulo magnífico, Trump começa a parecer um tipo quase decente. Ver Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa, acompanhar, sorridente, aquele circo é bastante penoso. Havia mesmo necessidade?

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Dos Entardeceres que bastam...

... já o celebrava o poeta.



Judite


Judite Decapitando Holofernes, Artemisia Gentileschi

Fui rever a história de Judite, de quem o Papa Francisco gosta por ser "uma mulher inteira”, “capaz de cortar a cabeça ao inimigo”. Maria, a Virgem, vem em segundo lugar. Fica com Maria, mas já é tarde. Não admira que lhe chamem herege. 

Ocorrem-me dois ou três sítios para onde me sentiria tentada a enviar em missão uma Judite. 

Se me perguntassem agora mesmo com quem gostaria de jantar hoje à noite? responderia com o Papa Francisco, e não é pela Judite nem pela Virgem Maria. É apenas por Francisco – ou Bergoglio, nunca sei onde acaba um e começa outro – ser um conversador apaixonado e apaixonante, magnético, desconcertante. 

Nada disto abona a favor da minha coerência – essa virtude tão exaltada pela gente prenhe de lisura, que nunca erra nunca prega nunca aponta –, deixar-me deslumbrar assim pelo representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana. Há anos que nada me liga à Igreja; passei a vê-la como um organismo obscuro, hipócrita, mais do que qualquer outra coisa, e enoja-me tudo o que se sabe e o que se desconfia sobre os criminosos abusos sexuais sobre as crianças à sua guarda. Se existir esse Inferno bíblico, desejo que esses homens de Deus lá apodreçam, os criminosos e os cúmplices, pela acção ou omissão, numa putrefacção eterna perpétua infinita, sem redenção nem misericórdia, não sem antes padecerem agonias idênticas nesta vida pela justiça da Lei. 


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

"A palavra e a pele
em uníssono pedem
que lhes pegue"

David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Não saberia o que fazer com um blog “popular”. A ideia de uma legião de seguidores, e adoradores, é tentadora para muitos, mas não para todos; desde logo, não para mim. O que não é exactamente o mesmo que assumir ser-me indiferente que haja ou não haja quem se faça presente e me empreste do seu precioso tempo, aqui e ali no meu email: não é. Se fosse, manteria esta página oculta a motores de busca, acho que é assim que se diz. 

Não passa aqui muita gente, mas passa aqui gente de quem gosto muito. Diria que me basta, mas na verdade é mais, porque é mais do que suficiente e sinto-me bastante grata por isso: por voltarem; mesmo quando não estou, mesmo quando não estive. Obrigada, é o que quero realmente dizer.




 


Dera Allah Yar, Pakistan 

Photograph: Fida Hussain/AFP/Getty Images


Salman Rushdie

O primeiro amuo sério – a sério! – que tive com a minha irmã foi a propósito d’Os Versículos Satânicos: eu tinha acabado de ler o livro, fascinava-me (talvez não seja o melhor verbo) tudo aquilo de uma forma que eu não sabia ainda dizer, inclusive a fatwa – era uma miúda na altura, parecia-me coisa acabada de sair das páginas das mil e uma noites.

Tanto contei que (aparentemente) encantei, e uma amiga da minha irmã pediu-lhe que mo pedisse. Emprestei-o e nunca mais o vi; penso que à amiga também. Não sei se foi quando decidi não voltar a emprestar os meus livros a ninguém, mas é verdade, não empresto os meus livros a ninguém: se for alguém que mereça, ofereço um novo exemplar. Por coincidência, precisamente, tinha voltado a comprar para mim um novo exemplar de Os Versículos Satânicos no início deste ano. Não queria acreditar quando soube do atentado contra Salman Rushdie; não por duvidar dos fanáticos, nunca duvidar dos fanáticos, mas por tudo o resto, a idade do rapaz, a facilidade com que levou a cabo o ataque e, sobretudo, o tempo que separa aquela extraordinária condenação à morte desta quase execução. Só não falo dos urros de embrutecido êxtase dos que celebraram o quase assassínio, porque tentar racionalizar o absurdo talvez seja mais absurdo ainda.

Salman Rushdie vem recuperando do bárbaro ataque, e ainda bem. Quase tive um acesso de ciúme e soberba, como Taika Waititi com a febre recente de Running Up That Hill (também gosto de Running Up That Hill, por sinal) e os novos estranhos fãs de Kate Bush – mas quem são estes fedelhos, que descobriram Rushdie agora e correram a comprar-lhe O livro, a carpir as suas dores, sem fazerem ideia da obra (ou do homem, mas sou quase sempre mais pela obra)? Para me redimir, recomecei os versículos, deixei Quichotte na linha de sucessão e pus na lista de compras Os Filhos da Meia-Noite. É imperdoável que nunca tenha lido Os Filhos da Meia-Noite. No fim de contas, também eu sou uma fedelha.

De resto, o jejum prolongado de actualidade requer, como o outro, moderação na hora de ser quebrado. Ainda convalesço. 


sábado, 6 de agosto de 2022

“Te voglio, te cerco, te chiammo,

te veco, te sento, te sonno”

 

(“excerto da letra de uma canção napolitana”)

Está a Fazer-se Cada Vez Mais Tarde

Antonio Tabucchi

 

Escolher o que levar na mala para ler nas férias. Continua a dar-me o mesmo prazer de antes, quando era miúda e as férias grandes duravam uma eternidade e tanto tempo fazia-se-me sempre demasiado tarde.

Levo outra vez Tabucchi – "um romance em forma de cartas", e eu gosto de cartas; e da capa do livro. Também levo duas das irmãs Brontë – há uma que nunca li.

Vinha dizer mais qualquer coisa, mas, por qualquer motivo, deixei que me escapasse. 

Até Setembro.




quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Festival Internacional de Música de Marvão

 



“Acredito que a música é muito mais do que entretenimento. Nem toda agente entende quão importante é termos a arte nas nossas vidas. Com o mundo a ficar cada vez mais difícil, a humanidade tem que se focar nos valores intemporais, em algo a que a próxima geração possa agarrar-se” (...) “É uma experiência enriquecedora que vai muito além de um momento agradável, porque, no contexto de Marvão, parece mais fácil as pessoas abrirem-se e receberem tudo mais intensamente. Isso é perceptível junto de quem fica aqui mais do que um dia: abre-se muito mais à beleza. Eu acredito verdadeiramente no belo”

Christoph Poppen


Não me lembro da última vez que estive no Marvão e acabei de ser atropelada por uma série de sentimentos contraditórios, entre o encantamento e a vergonha, não necessariamente por esta ordem: são escorregadios e ainda não consegui domesticá-los. Vergonha por não recordar ter ouvido falar alguma vez deste Festival, e o Encantamento é coisa que não se explica. Também há agradecimento e reconciliação, numa altura em que me sinto cada vez mais afastada deste país de pequeninos. De quando em quando perco-me de parte da parte de mim que aqui escreve. Estou num desses quandos.  

Também acredito verdadeiramente no Belo, e tenho memória da beleza de Marvão mesmo sem a música, mas vou tentar não perder a edição de 2023.


quinta-feira, 28 de julho de 2022

“Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.”

Felicidade Clandestina

Clarice Lispector

sábado, 23 de julho de 2022

Silly Season, e outros impropérios

Não é que eu deteste o Verão. Detesto o calor de Verão, o Inferno dos incêndios de Verão, a luz escorrente e baça de Verão, as cores mortiças e o ar obeso que me sufoca como uma mortalha de aço. Mas gosto de algumas noites de Verão. Do fim de praia, da areia morna quando o Sol, finalmente, sossega, e do gin tónico gelado com uma rodela de limão. Demasiado vulgar, talvez, mas o meu Verão é melhor assim.

Também gosto do tempo de Verão. O do relógio. Uma transição electrónica entre dois níveis de energia num átomo de césio-133, nove milhares de milhões cento e noventa e dois milhões seiscentos e trinta e um milhares e setecentas e setenta oscilações completas num segundo, todos os segundos de um dia, qualquer dia de qualquer estação, mesmo que os segundos me pareçam sempre mais lentos no tempo que dura o Verão, suponho que como deva ser, para poder desperdiçá-lo sem remorso.

De todas as silly coisas que a desdita season tem, a mais esdrúxula ouvi-a ontem: Pedro Abrunhosa cantou “Vladimir Putin, go fuck yourself”, num concerto em Águeda, e a embaixada russa em Portugal emitiu um comunicado para dizer da indignação russa e da indignidade de um homem da cultura, cujas palavras “foram (ali) ouvidas” e “respectivas conclusões serão tiradas”.

Devia servir-me de consolo a evidência: o calor de Verão ameaça outras razões, não apenas a minha.

Há qualquer coisa de apocalíptico naquele gorgolejar histriónico das gaivotas à minha janela, ainda a manhã não é bem manhã. Um chinfrim circular, sinistro. Lembro-me dos pássaros de Hitchcock, talvez pelo ainda torpor do sono e uma qualquer memória solta que devo ter trazido de um daqueles sonhos que nunca recordo. Depois, uma cascata de estilhaços de vidro, uma sinfonia laminada, quase metálica, cala o alarme das gaivotas. Há de certeza uma lei que proíbe a recolha estrondosa de lixo antes das sete e meia de uma manhã de sábado. Se não há, devia. 

Jafar Panahi

Vou oferecer outro artigo e cometer mais um pequeno crime. Se eu partilhar aqui um artigo "exclusivo" e ninguém o ler, continua a ser um crime? Pois, também me parece. Mas há pessoas e histórias que merecem. 


"E no meio de tudo isto, o cineasta iraniano Jafar Panahi voltou a ser preso. Já perdi a conta ao número de vezes, mas agora é diferente: arrisca ficar na prisão até 2028.

Não vale a pena fingir que a sua prisão perturba o mesmo que a dos outros presos políticos no Irão — e há muitos. Aprendi com uma amiga que os artistas são a consciência do mundo e há anos que Panahi é a consciência do Irão. Não está sozinho, claro. É herdeiro de Abbas Kiarostami e mestre da nova geração, da qual faz parte o filho, Panah Panahi, cujo filme Estrada Fora acaba de estrear em Portugal.

Mas os seus filmes, uma longa crónica do Irão contemporâneo, são manifestos políticos eloquentes que, com histórias simples e uma aparente inocência de contos do quotidiano, desobedecem e desafiam o poder. Com poesia, imaginação, humor e coragem. Difícil pedir mais a um só homem.

Costuma dizer-se que o cinema de Panahi-pai fala de política nas entrelinhas. Mas não consigo pensar em intervenção política mais directa e frontal do que fazer um filme em casa após as autoridades o terem proibido de sair de casa e de filmar e chamar-lhe Isto Não é Um Filme. Foi o que Panahi fez a seguir à sentença de 2010 que o proíbe de viajar e filmar até 2030. É nesse filme que diz: “Sentenciaram-me a uma interdição de filmar durante 20 anos. Mas não há interdição em interpretar ou ler um guião. Graças a Deus!” O trailer cita excertos dos críticos. “Simples, radical, surpreendente, comovente” (New York Times). “Jafar Panahi transforma a censura em arte” (IndieWire).

Desde a proibição, fez, além de Isto Não é um Filme (2011), Cortinas Fechadas (2013), Táxi (2015) e Três Rostos (2018). Num país onde a pena de morte é comum, como são comuns as sentenças para amputar, cegar e chicotear os condenados, é difícil pensar num gesto mais político.

No Irão, a violência do Estado é real e diária. Em 2014, sete jovens foram condenados a seis meses de prisão e 91 chicotadas por terem publicado um vídeo caseiro a cantar a canção Happy, de Pharrell Williams. Em 2018, Maedeh Hojabri, de 18 anos, foi presa e condenada a quatro anos de prisão e 80 chicotadas por publicar no Instagram vídeos a dançar no quarto. Em 2021, Hadi Rostami foi chicoteado 60 vezes como castigo por ter feito greve da fome na prisão em protesto contra a possibilidade de a sua sentença de amputação ser aplicada. Pouco depois, Hadi Atazadeh morreu na prisão de Ahar após ter sido chicoteado. Pelo menos 152 pessoas foram condenadas a chicotadas no ano passado. Em Julho desse ano, 11 pessoas foram mortas a tiro durante protestos pela falta de água nas províncias de Khuzestan e Lorestan. Este Julho, os cineastas Mohammad Rasoulof e Mostafa Al-Ahmad foram presos por criticarem a violência policial. Há dez anos que os ex-candidatos presidenciais Mehdi Karroubi e Mir Hossein Mousavi estão em prisão domiciliária.

Por causa da ditadura iraniana, Panahi trata os seus filmes como os traficantes tratam a droga: manda-os para a Europa em pens escondidas em bolos. Sem isso, saberíamos menos do que se passa no Irão hoje.

Caro leitor: isto não é um obituário. Panahi, espero, vai voltar a filmar. Isto é um convite para vermos e revermos o cinema de Panahi, para falarmos do cinema de Panahi e para nos juntarmos às campanhas da Amnistia Internacional e de todos os que pedem a libertação dos presos políticos no Irão. Resulta. Ainda ontem li a história dos irmãos Afkari. Vahid, Navid e Habib Afkari foram às manifestações de 2017 e de 2018 de protesto contra a pobreza, a corrupção e a repressão do regime. Quase 30 pessoas foram mortas logo ali, pela polícia, e milhares foram detidas arbitrariamente. O irmão Vahid foi um deles. A sua história destacou-se porque foi condenado a 33 anos e 9 meses de prisão e a 74 chicotadas, mas também porque, a seguir, a polícia prendeu os dois irmãos. Em Setembro de 2020, Navid Afkari foi executado em segredo. Com dois filhos destruídos pelo regime — um morto e outro em isolamento e condenado a morrer na prisão —, a família montou uma campanha global para salvar o terceiro filho. Após anos de cartas, apelos e protestos de activistas e organizações de direitos humanos, Habib Afkari foi libertado em 2022.

Como nas alterações climáticas e em tudo o que importa, não fazer nada é uma opção esquisita. Até nas férias."

Bárbara Reis, PÚBLICO